Reflexões litúrgico-pastorais
Para o domingo IV de Páscoa

Jesus é o único Pastor

 Jesus é o único Pastor  POR-018
03 maio 2022

O iv Domingo da Páscoa é definido como o Domingo do Bom Pastor. De todas as imagens com que Jesus se autodenomina, nos famosos «egw eimi» (Eu sou) do Evangelho de São João, a do Pastor é aquela que provavelmente apresenta maiores ressonâncias bíblicas e que mais faz eco do quotidiano do povo israelita. É na sequência destas afirmações qualificativas de Jesus sobre Si próprio que se insere o excerto do evangelho de hoje.

De facto, Israel desde sempre foi um povo de pastores: Abel, Moisés, Abraão, Isaac, Jacob, etc. Estes tinham como função alimentar, dar de beber, proteger, curar, procurar as ovelhas perdidas, guardar o rebanho nos apriscos — imagética que ajuda a compreender o título de Jesus. A partir desta categoria, com a instituição da monarquia, surge a época dos reis-pastores da Bíblia (assinalados com a unção divina), e David como protótipo (várias são essas referências nos salmos). Mas muitas vezes estes “pastores” abandonaram o rebanho e alimentaram-se das ovelhas, em vez de as alimentar. Vários são os profetas a condenar essa mesma realidade (Isaías, Ezequiel, Zacarias, etc.). 

Começa então a surgir a ideia do Deus-Pastor — Deus como o Pastor de Israel (vede como canta o salmo 80: «Pastor de Israel, escutai»). Acentua-se com o exílio a ideia de voltar a ser um só rebanho com um só pastor e vai crescendo a ideia de que o futuro Messias será um pastor.

É assim que Jesus surge como o Pastor do Novo Povo de Deus, presença do Deus-Pastor: aquele que procura e salva a ovelha perdida, que alimenta o rebanho, que tem para com ela sentimentos de misericórdia. Jesus é o Bom Pastor e único Pastor, e Bom como adjetivo que qualifica a Sua ação em oposição aos maus pastores do passado. 

Com efeito, nunca no Novo Testamento o termo pastor é aplicado aos apóstolos e discípulos. Em Jo 21, Jesus diz a Pedro para apascentar as ovelhas, como escutámos no domingo passado; em 1 Pd 5, 2 diz-se aos presbíteros que «apascentem o rebanho de Deus». Mas sempre no sentido de conduzir, cuidar. Pastor há só um, Cristo, e a Sua ação junto do povo, o rebanho, deve ser o modelo inspirador da ação da Igreja, ou seja, da ação pastoral. A pastoral da Igreja deve, por isso, inspirar-se no pastoreio de Cristo e no Seu modo de ser pastor. Como testemunhas qualificadas da fé, participantes da missão profética, sacerdotal e real de Cristo, o segredo da nossa missão cristã (a missão de todos os batizados) consiste em “encarnar” / atualizar hoje este capítulo 10 do Evangelho de João, de acordo com os critérios que em seguida enumeramos. 

Em primeiro lugar, devemos aprender a reconhecer a voz do Pastor, sem descurar a escuta das ovelhas, como exige a natureza sinodal da Igreja. Uma das missões perenes da Igreja é saber captar a voz de Deus no mundo, o que exige um esforço pessoal e comunitário na disponibilidade de tempo — para rezar, para escutar a voz implorante do mundo, para saber calar as nossas “vozes” pessoais. 

Jesus tem esta capacidade de conhecer todas as ovelhas e de as chamar cada uma pelo nome. É essa proximidade e conhecimento que granjeia a Jesus a confiança das ovelhas. Uma Igreja verdadeiramente pastoral requer, por parte dos seus membros, a aposta numa verdadeira “pastoral do contacto”, do encontro pessoal e não da superficialidade. Há que ter a iniciativa de ir ao encontro, sem se limitar a ficar na expetativa que nos procurem. Uma missão evangelizadora bem sucedida não pode prescindir de um conhecimento verdadeiro e profundo daqueles a quem se dirige a Palavra de Deus, pelo que a aposta na proximidade pressupõe o risco de entrar na intimidade pessoal dos destinatários do anúncio cristão.

Em terceiro lugar, seguir Jesus como ovelhas implica arriscar sair para fora do conforto do redil, o mesmo é dizer, para as periferias, uma vez que se confia no Pastor (como refere o salmo 23) e não na segurança cómoda e inerte dos limites do aprisco (da igreja, da sacristia). É Jesus que abre a porta para uma Igreja em saída (“Ide”), sem descurar o “vinde” da intimidade relacional, fonte e alimento da vida espiritual do crente.

Em quarto lugar, a Igreja será verdadeiramente pastoral quando souber caminhar, fazer-se peregrina com os seus filhos. O testemunho cristão arrebata, transmite segurança e confiança, mas na solidariedade de quem não se esconde. Enquanto discípulos-missionários, precisamos de deixar que Jesus caminhe à frente, enquanto nós vivemos no meio do mundo sem ser do mundo, porque somos de Deus. Porém, só no sentir o “cheiro da ovelha” é que o discurso eclesial não se fecha numa linguagem hermética, incompreensível para o exterior e para quem ainda não foi iniciado na linguagem simbólica da fé. 

Por fim, é missão da Igreja continuar a oferecer aquilo que Jesus oferece: a vida eterna. Se ao mesmo tempo devemos proteger e conservar aqueles que fazem parte da família dos filhos de Deus («ninguém as arrebatará da minha mão»), por outro lado não devemos obstaculizar excessivamente o acesso aos dons de Deus. Como afirma invariavelmente o Papa Francisco, os cristãos são chamados a ser facilitadores da graça, canais da vida divina e não alfandegários da fé.

Que o Bom Pastor nos inspire a sermos uma Igreja verdadeiramente “pastoral”, que vive a compaixão do Bom Pastor e abre a porta a todos aqueles que nela quiserem entrar.

David Palatino
Docente de Sagrada Escritura na Faculdade de Teologia da Universidade católica portuguesa