O Papa em diálogo com os jesuítas malteses

Qual é a vocação da Igreja?

 Qual é a vocação da Igreja?  POR-017
26 abril 2022

A 14 de abril «La Civiltà Cattolica» publicou no seu site, assinado pelo diretor, a seguinte transcrição integral da conversa do Papa Francisco com um grupo de jesuítas malteses com os quais se encontrou na manhã de domingo 3 de abril, durante a viagem apostólica à ilha. O encontro teve lugar na sede da nunciatura apostólica em Valeta.

Às 7h20 de domingo, 3 de abril, o Papa Francisco entrou num salão da Nunciatura em Valeta, onde estavam reunidos 38 jesuítas malteses, entre os quais o padre Roberto Del Riccio, provincial da Província euro-mediterrânea, que abrange Malta, Itália, Albânia e Roménia. Francisco saudou todos os presentes, um por um, e depois sentou-se para dar início a uma conversa livre e espontânea, como costuma fazer em tais encontros. O clima era cordial e fraterno. Francisco começou dizendo: «A única recordação que tenho dos jesuítas malteses é a dos meus companheiros de estudos de filosofia. Eram destinados ao Chile. Eu próprio fiz o meu juniorato1 no Chile. Depois iam estudar em Buenos Aires. Falei ao telefone com o último daquele grupo no ano passado, antes da sua morte. Fazei as perguntas que quiserdes para falarmos um pouco juntos...».

Santo Padre, a realidade da Igreja de hoje é diferente. Diminui cada vez mais numa Europa secular e materialista. Ao mesmo tempo, a Igreja desenvolve-se na Ásia e na África. Como será a Igreja do futuro? Será mais exígua, mas mais humilde e autêntica? E o caminho sinodal da Igreja? Para onde vai?

O Papa Bento foi um profeta desta Igreja do futuro, uma Igreja que diminuirá, perderá muitos privilégios, será mais humilde e autêntica, e encontrará energia para o essencial. Será uma Igreja mais espiritual, mais pobre e menos política: uma Igreja dos pequeninos. Bento, quando era bispo, já tinha dito: preparemo-nos para ser uma Igreja menor. Esta é uma das suas intuições mais ricas.

Hoje existe o problema das vocações, sim. É também verdade que há menos jovens na Europa. Antigamente, havia três ou quatro filhos por família. Agora muitas vezes apenas um. Os matrimónios diminuem e as pessoas pensam em crescer na profissão. Diria às mães destes filhos com trinta e cinco anos que ainda vivem na família que deixem de passar as suas camisas! Nesta situação existe também o risco de procurar vocações sem o adequado discernimento. Lembro-me que em 1994 houve um Sínodo sobre a vida consagrada. Vim como delegado da Argentina. Naquela altura houve o escândalo das noviças nas Filipinas: as congregações religiosas iam lá em busca de vocações a fim de “importar” para a Europa. Isto é terrível! A Europa envelheceu. Devemos habituar-nos a isto, mas é preciso fazê-lo com criatividade, de modo a assumir para as vocações as qualidades que na sua pergunta o senhor mencionou em geral para a Igreja: humildade, serviço, autenticidade.

Depois o senhor mencionou também o caminho sinodal. E este é mais um passo em frente. Aprendemos a falar e a escrever “em Sínodo”. Foi Paulo vi que retomou o discurso sinodal, que se tinha perdido. Desde então, progredimos na compreensão, no entendimento do que significa o Sínodo. Recordo que em 2001 fui relator no Sínodo dos bispos. Na realidade o relator era o cardeal Egan, mas devido à tragédia das Torres gémeas, foi obrigado a regressar a Nova Iorque, sua diocese. Fui o substituto. Foram recolhidas as opiniões de todos, até dos grupos individuais, e enviadas para a Secretaria geral. Eu recolhia o material e organizava-o. O secretário do Sínodo examinava-o e dizia para eliminar isto ou aquilo que tinha sido aprovado com a votação dos vários grupos. Havia coisas que ele não considerava oportunas. Em síntese, havia uma seleção prévia do material. Claramente, não se entendia o que é um Sínodo. Hoje progredimos e não se volta atrás. No final do último Sínodo, na sondagem sobre os temas a abordar no próximo, os dois primeiros foram o sacerdócio e a sinodalidade. Pareceu-me claro que se quisesse refletir sobre a teologia da sinodalidade, a fim de dar um passo decisivo rumo a uma Igreja sinodal.

Afinal, quero dizer que não devemos esquecer aquela preciosidade que é a Evangelii nuntiandi, de Paulo vi. Qual é a vocação da Igreja? Não são os números. É evangelizar. A alegria da Igreja consiste em evangelizar. Em síntese, o verdadeiro problema não é se somos poucos, mas se a Igreja evangeliza. Nas reuniões antes do Conclave, falava-se sobre o retrato do novo Papa. Foi ali, nas Congregações gerais, que se usou a imagem da Igreja que sai, em saída. No Apocalipse diz-se: «Estou à porta e bato». Mas hoje o Senhor bate à porta de dentro, para que o deixemos sair. Esta é a necessidade dos nossos dias, a vocação da Igreja de hoje.

Santo Padre, permita que lhe agradeça pela sua vida e exemplo mas também, em particular, pela sua Exortação apostólica “Gaudete et exsultate”. Depois transmito-lhe uma saudação do Venerável Colégio inglês, onde trabalho. Ali rezam por Vossa Santidade e agradecem-lhe. Eis a minha pergunta: qual é a sua sugestão para que os diretores espirituais e os seminaristas estejam preparados para ser sacerdotes no terceiro milénio?

O que o impressionou na Gaudete et exsultate?

Em primeiro lugar, o conjunto. Como viver as bem-aventuranças. Depois, os sinais da santidade. Fiquei muito impressionado com a referência ao humorismo.

Ah! A nota 101, sobre Thomas More! Sim, essa Exortação apostólica foi arquivada. Gostaria que todos os noviços a lessem. O senhor pergunta-me o que fazer. Gostaria de pedir algo aos seminaristas: sede pessoas normais, sem imaginar que sois “grandes apóstolos” ou “santinhos”. Sede jovens normais, capazes de tomar decisões sobre a vossa vida a caminho. E para isso são necessários também superiores normais.

Impressiona-me realmente a hipocrisia de alguns superiores. A hipocrisia como instrumento de governo é terrível! Com a hipocrisia não se resolve a inquietação, o problema, o pecado oculto. É preciso ajudar a remover toda a hipocrisia que prejudica o caminho de um jovem.

Lembro-me de um estudante jesuíta que mais tarde se casou. Estava no primeiro ano de filosofia. Tinha conhecido uma moça e apaixonou-se por ela. Queria vê-la todos os dias. À noite saía às escondidas e ia ter com a jovem para estar com ela. Começou a emagrecer, pois dormia muito pouco. Mas felizmente aquele jovem caiu nas mãos de um padre espiritual idoso que não tinha medo de nada e não era hipócrita. Intuiu qual era a situação. E disse-lhe: «Tens este problema». Disse-lhe! E com atenção, acompanhou-o a sair da Ordem. Depois, este jovem casou-se.

Lembro-me que há muitos anos ouvi um jovem jesuíta de uma Província europeia que fazia o magistério2 depois da filosofia. Pediu ao Provincial e foi transferido para outra cidade a fim de acompanhar a mãe que morria de tumor. Então foi à capela, para que o superior pudesse satisfazer o seu desejo. Ficou ali até altas horas da noite. Quando voltou, encontrou na porta uma carta do Provincial, com a data do dia seguinte, pedindo-lhe para ficar onde estava, e disse-lhe que tomara tal decisão depois de ter refletido e rezado. Mas não era verdade! Dera a carta pós-datada ao ministro para que a entregasse no dia seguinte, mas visto que era demasiado tarde, o ministro tinha pensado em colocá-la no dia anterior. Este jovem sentiu-se aniquilado. Isto é hipocrisia. Que nunca haja hipocrisia na Companhia! É melhor repreender do que ter atitudes cortesãs!

Na Companhia não se pode estar próximo de um irmão sem confiança e clareza. Se a pessoa não confiar nos superiores ou em alguém que o guie, não é bom. Os superiores devem criar confiança. E depois devem fiar-se da “graça de estado”, para que seja o Espírito Santo a dar-lhes os conselhos certos. E que se estude com a sabedoria que a Igreja acumulou ao longo do tempo. Mas não se deve ter medo de nada. Os jovens nunca devem ser uniformizados. Cada um é uma espécie única: para cada um foi feito um molde e em seguida destruído. E que os superiores também se habituem a ter algum enfant terrible. É preciso ter paciência, corrigi-los, mas muitas vezes são realmente bons. Não somos todos iguais: temos documentos de identidade diferentes.

Ontem, ouvindo os discursos proferidos, falava-se de Malta como de um país hospitaleiro para os refugiados. Fiquei intrigado. Também nós temos um acordo com a Líbia que nos permite mandar os migrantes para trás. Deve ter ouvido falar sobre a tragédia no Mediterrâneo no sábado passado, quando 90 migrantes provenientes da Líbia perderam a vida. Apenas quatro sobreviveram. Vossa Santidade encontrar-se-á com alguns refugiados. Mas não verá os campos, onde a situação é muito mais difícil. É também verdade que se trata de um problema de toda a Europa, que não ajuda o nosso país. Isto é válido também para o acolhimento dos ucranianos.

É verdade: a migração é um problema da Europa. Os países não chegam a um acordo. Compreendo que não é fácil para a Itália, Chipre, Malta, Grécia e Espanha. São eles que devem recebê-los, pois são os primeiros portos, mas depois a Europa deve cuidar deles. Na Europa é preciso progredir no campo dos direitos humanos para eliminar a cultura do descarte. Também é necessário deixar de dar legitimidade à cumplicidade das autoridades competentes, sempre, até em meetings e encontros.

No avião deram-me um quadro feito por um jovem, Daniel, que pinta a sua angústia enquanto afoga e quer salvar o seu companheiro que afunda. Recomendo um livro, Hermanito, ou seja, “Irmãozinho”.3 Foi publicado há um ano. É a história de um irmão mais velho que parte da Guiné em busca do irmão mais novo. Faz-nos compreender o que significa a travessia do deserto, o tráfico de migrantes, a prisão, as torturas, a viagem marítima... E obrigado por não falar com meias-palavras. Esta à qual nos referimos é uma das vergonhas da humanidade que faz parte das políticas dos Estados.

Se houvesse um incêndio na sala ao lado, o que faríamos? Ficaríamos aqui e continuaríamos o nosso encontro? É uma imagem: a mesma coisa acontece no mundo com as mudanças climáticas. O mundo arde e nós ficamos tranquilos. Como se relaciona a evangelização com as mudanças climáticas?

Trabalhar neste campo, sim! Não cuidar do clima é um pecado contra o dom de Deus, que é a criação. Para mim, é uma forma de paganismo: significa usar como se fosse ídolo aquilo que o Senhor nos deu para a sua glória e louvor. Para mim, não cuidar da criação é como idolatrá-la, reduzi-la a ídolo, desligá-la do dom da criação. Neste sentido, cuidar da casa comum já é “evangelizar”. E é urgente! Se a situação perdurar como agora, os nossos filhos já não poderão viver no nosso Planeta.

É realmente muito tarde e Vossa Santidade tem que ir. Só lhe faço uma pergunta rápida: quais são as suas consolações e desolações a propósito do processo de sinodalidade?

Há consolações e desolações. Dou-te apenas um exemplo: nas primeiras sessões do Sínodo sobre a Amazónia houve muita concentração sobre a questão dos sacerdotes casados. Depois, o Espírito levou-nos a compreender também que faltavam muitas outras coisas: catequistas, diáconos permanentes, um seminário para os indígenas, sacerdotes que venham de outras dioceses ou que sejam transferidos no âmbito da mesma. Tudo isto foi vivido no meio de consolações e desolações. É a dinâmica espiritual do Sínodo!

Quando chegou o momento de encerrar o encontro, que durou cerca de 40 minutos, Francisco pediu para recitar juntos uma “Ave-Maria”. Depois concedeu a bênção aos presentes, saudou-os e pediu-lhes que rezem por ele, oferecendo a todos um rosário.

1 Período de formação dos jesuítas, que se segue imediatamente ao noviciado.

2 Período de formação na Companhia de Jesus, geralmente de cunho pastoral, entre o estudo de filosofia e de teologia.

3 Trata-se de um romance de Amets Arzallus Antia e Ibrahima Balde, publicado na Itália com o título Fratellino (Ed. Feltrinelli, 2021).

Antonio Spadaro, s.j.