O Papa Francisco chegou a Malta por voltas das 10h00 de sábado, 2 de abril. Após a cerimónia de boas-vindas no aeroporto internacional de Luqa, o Pontífice transferiu-se de carro para a capital Valeta, onde teve lugar a visita de cortesia ao presidente da República na residência oficial, no palácio do grão-mestre. Ali, depois de um breve encontro particular com o primeiro-ministro maltês, Francisco deslocou-se para a “Grand Council Chamber”, onde o aguardavam as autoridades e os membros do corpo diplomático. Respondendo à saudação que lhe foi dirigida pelo presidente George William Vella, o Papa proferiu o primeiro discurso da viagem.
Senhor Presidente da República
Membros do Governo
e do Corpo Diplomático
Distintas Autoridades
religiosas e civis
Ilustres Representantes
da sociedade
e do mundo da cultura
Senhoras e Senhores!
Saúdo-vos cordialmente e agradeço ao Senhor Presidente as amáveis palavras que me dirigiu em nome de todos os cidadãos. Os vossos antepassados deram hospitalidade ao Apóstolo Paulo durante a sua viagem para Roma, tratando-o a ele e aos seus companheiros de viagem «com invulgar humanidade» (At 28, 2); agora também eu, vindo de Roma, experimento o acolhimento caloroso dos malteses, tesouro que passa de geração em geração no país.
Devido à sua posição, pode-se definir Malta como o coração do Mediterrâneo. E não só pela posição: há milénios que o entrelaçamento de acontecimentos históricos e o encontro de populações fazem destas ilhas um centro de vitalidade e cultura, espiritualidade e beleza, uma encruzilhada que soube acolher e harmonizar influxos originários de muitas partes. Esta diversidade de influxos faz pensar na variedade dos ventos que caraterizam o país. Não é por acaso que, nas antigas representações cartográficas do Mediterrâneo, a rosa dos ventos estava frequentemente colocada perto da ilha de Malta. Servindo-me precisamente desta imagem da rosa dos ventos, que localiza as correntes de ar segundo os quatro pontos cardeais, quero delinear quatro influxos essenciais para a vida social e política deste país.
Sobre as ilhas maltesas, os ventos sopram predominantemente de noroeste. O norte lembra a Europa, em particular a casa da União Europeia, edificada para que nela habite uma grande família unida na salvaguarda da paz. Unidade e paz são os dons que o povo maltês pede a Deus cada vez que entoa o Hino Nacional. Com efeito assim reza a oração escrita por Dun Karm Psaila: «Concedei, Deus Omnipotente, sabedoria e misericórdia a quem governa, saúde a quem trabalha e assegura ao povo maltês unidade e paz». A paz vem depois da unidade e brota dela. Isto faz pensar na importância de trabalhar juntos, colocar a coesão antes de toda a divisão, revigorar raízes e valores partilhados que forjaram a unicidade da sociedade maltesa.
Mas, para garantir uma boa convivência social, não basta consolidar o sentido de pertença; é necessário também reforçar os alicerces da vida comum, que assenta sobre o direito e a legalidade. A honestidade, a justiça, o sentido do dever e a transparência são pilares essenciais de uma sociedade civilmente avançada. Por isso o empenho em eliminar a ilegalidade e a corrupção seja forte como o vento que, soprando de norte, varre as costas do país. E sempre se cultivem a legalidade e a transparência, que permitem erradicar a candonga e a criminalidade, unidas pelo facto de não agirem à luz do sol.
A casa europeia, que está empenhada na promoção dos valores da justiça e equidade social, encontra-se também na vanguarda da tutela da casa mais ampla da criação. O ambiente onde vivemos é uma dádiva do céu, como reconhece também o Hino Nacional ao pedir a Deus que olhe pela beleza desta terra, mãe adornada com a mais alta luz. É verdade! Em Malta, onde a luminosidade da paisagem alivia as dificuldades, a criação aparece como o dom que, por entre as provas da história e da vida, recorda a beleza de habitar a terra. Por isso deve ser preservada da ganância devoradora, da sofreguidão do dinheiro e da especulação imobiliária, que compromete não só a paisagem, mas também o futuro. Ao passo que a defesa do ambiente e a justiça social preparam o futuro, e são ótimos caminhos para fazer apaixonar os jovens pela boa política, libertando-os das tentações do desinteresse e alheamento.
O vento norte mistura-se muitas vezes com o vento que sopra de oeste. De facto este país europeu, particularmente a sua juventude, partilha os estilos de vida e de pensamento ocidentais. Daqui derivam grandes bens — penso por exemplo nos valores da liberdade e da democracia —, mas também riscos sobre os quais é preciso vigiar, para que a ambição do progresso não leve a separar-se das raízes. Malta é um maravilhoso «laboratório de desenvolvimento orgânico», onde progredir não significa cortar as raízes com o passado em nome de uma falsa prosperidade ditada pelo lucro, as necessidades sugeridas pelo consumismo, bem como pelo direito de ter todo e qualquer direito. Para um desenvolvimento saudável, é importante preservar a memória e tecer respeitosamente a harmonia entre as gerações, sem se deixar absorver por homogeneizações artificiais e colonizações ideológicas, que muitas vezes ocorrem, por exemplo, no campo da vida, do princípio da vida. São colonizações ideológicas que vão contra o direito à vida desde o momento da conceção.
Na base de um sólido crescimento, está a pessoa humana, o respeito pela vida e pela dignidade de todo o homem e mulher. Conheço o empenho dos malteses em abraçar e proteger a vida. Já nos Atos dos Apóstolos vos distinguíeis por salvar tantas pessoas. Encorajo-vos a continuar a defender a vida desde o início até ao seu fim natural, mas também a preservá-la sempre de ser descartada e negligenciada. Penso especialmente na dignidade dos trabalhadores, dos idosos e dos doentes. E aos jovens, que correm o risco de desperdiçar o bem imenso que são, perseguindo miragens que deixam no íntimo tanto vazio. A provocar tudo isto é o consumismo exasperado, o fechamento às necessidades dos outros e a praga da droga, que sufoca a liberdade ao criar dependência. Protejamos a beleza da vida!
Continuando na rosa dos ventos, olhemos para sul. De lá chegam muitos irmãos e irmãs à procura de esperança. Quero agradecer às Autoridades e à população pelo acolhimento que lhes dão em nome do Evangelho, da humanidade e do sentido de hospitalidade típico dos malteses. Segundo a etimologia fenícia, Malta significa «porto seguro». Mas, perante o afluxo crescente dos últimos anos, medos e inseguranças geraram desânimo e frustração. Para se enfrentar adequadamente a complexa questão da migração, é preciso situá-la dentro de perspetivas de tempo e espaço mais amplas. De tempo: o fenómeno migratório não é uma conjuntura do momento, mas marca a nossa época. Traz consigo as dívidas de injustiças passadas, de tanta exploração, de mudanças climáticas e de desditosos conflitos cujas consequências se pagam. Do sul pobre e povoado, massas de pessoas deslocam-se para o norte mais rico: é um dado real, que não se pode enjeitar com anacrónicos fechamentos, porque não haverá prosperidade nem integração no isolamento. Depois há que considerar o espaço: o agravamento da emergência migratória — pensemos nos refugiados da martirizada Ucrânia — exige respostas amplas e partilhadas. Não podem apenas alguns países arcar com o problema inteiro, na indiferença de outros! Nem podem países civis sancionar, para seu próprio interesse, acordos obscuros com criminosos que escravizam as pessoas. Isto, infelizmente, acontece. O Mediterrâneo precisa de corresponsabilidade europeia, para voltar a ser teatro de solidariedade e não a dianteira de um trágico naufrágio da civilização. O mare nostrum não pode tornar-se o maior cemitério da Europa.
E a propósito de naufrágio, penso em São Paulo que, durante a sua última travessia no Mediterrâneo, chegou a estas costas de maneira inesperada e foi socorrido. Depois, mordido por uma víbora, foi julgado um criminoso, passando pouco depois a ser considerado uma divindade por não ter sofrido consequências (cf. At 28, 3-6). Por entre os exageros dos dois extremos, escapava a evidência primária: Paulo era um homem, necessitado de acolhimento. A humanidade vem em primeiro lugar e antepõe-se a tudo: ensina-o este país, cuja história beneficiou com a penosa chegada do Apóstolo naufragado. Em nome do Evangelho que ele viveu e pregou, alarguemos o coração e descubramos a beleza de servir os necessitados. Continuemos por esta estrada. Enquanto hoje, a respeito de quem atravessa o Mediterrâneo à procura de segurança, prevalecem o medo e «a narração da invasão», e o objetivo primário parece ser a tutela a todo custo da própria segurança, ajudemo-nos a não ver o migrante como uma ameaça não cedendo à tentação de construir pontes levadiças e erguer muros. O outro não é um vírus do qual nos devemos defender, mas uma pessoa a acolher, e «o ideal cristão convidará sempre a superar a suspeita, a desconfiança permanente, o medo de sermos invadidos, as atitudes defensivas que nos impõe o mundo atual» ( Francisco , Exort. ap. Evangelii gaudium, 88). Não deixemos que a indiferença apague o sonho de vivermos juntos! Claro, acolher custa fadiga e exige renúncias. Foi assim também com São Paulo: para se porem a salvo, foi necessário primeiro sacrificar os bens do navio (cf. At 27, 38). Mas trata-se de santas renúncias as que são feitas por um bem maior, pela vida do homem, que é o tesouro de Deus!
E temos, enfim, o vento de leste, que sopra muitas vezes ao amanhecer. Homero chamava-o «Euro» (Odisseia v , 379.423). Entretanto foi precisamente do leste da Europa, do Oriente onde primeiro aparece a luz, que chegaram as trevas da guerra. Pensávamos que invasões doutros países, combates brutais pelas estradas e ameaças atómicas fossem sombrias recordações de um passado distante. Mas o vento gelado da guerra, que só traz morte, destruição e ódio, abateu-se prepotentemente sobre a vida de muitos e sobre os dias de todos. E enquanto mais uma vez um poderoso qualquer, tristemente fechado em anacrónicas reivindicações de interesses nacionalistas, provoca e fomenta conflitos, a gente comum sente a necessidade de construir um futuro que será vivido conjuntamente por todos ou então não subsistirá. Agora, na noite da guerra que caiu sobre a humanidade, por favor não façamos evaporar-se o sonho da paz.
Malta, que resplandece luminosa no coração do Mediterrâneo, pode inspirar-nos, porque é urgente devolver beleza ao rosto do homem, desfigurado pela guerra. Uma bela estátua mediterrânica, que remonta a séculos antes de Cristo, retrata a paz, Irene, como uma mulher segurando Plutão, a riqueza. Recorda que a paz gera bem-estar, e a guerra só pobreza. E impressiona o facto de, na estátua, a paz e a riqueza aparecerem retratadas como uma mãe que segura um filho nos braços. A ternura das mães, que dão ao mundo a vida, e a presença das mulheres são a verdadeira alternativa à perversa lógica do poder, que leva à guerra. Precisamos de compaixão e cuidados, não de visões ideológicas e populismos, que se alimentam com palavras de ódio e não têm a peito a vida concreta do povo, da gente comum.
Há mais de sessenta anos, da bacia do Mediterrâneo para um mundo ameaçado pela destruição, onde ditavam lei as contraposições ideológicas e a lógica férrea dos alinhamentos, ergueu-se uma voz contracorrente, que contrapôs, à exaltação da própria parte, um salto profético em nome da fraternidade universal. Era a voz de Jorge La Pira, que disse: «A conjuntura histórica que vivemos, o choque de interesses e ideologias que abalam a humanidade a braços com um infantilismo incrível, devolvem ao Mediterrâneo uma responsabilidade capital: definir de novo as normas de uma Medida onde se possa reconhecer o homem abandonado ao delírio e aos excessos» (Discurso no Congresso Mediterrânico de Cultura, 19/ ii /1960). São palavras atuais; podemos repeti-las, porque têm uma grande atualidade! Quanto precisamos de uma «medida humana» face à agressividade infantil e destrutiva que nos ameaça, frente ao risco de uma “guerra fria alargada” que pode sufocar a vida de gerações e povos inteiros! Infelizmente, aquele «infantilismo» não desapareceu. Ressurge prepotentemente nas seduções da autocracia, nos novos imperialismos, na difusa agressividade, na incapacidade de lançar pontes e começar pelos mais pobres. Hoje é tão difícil pensar com a lógica da paz; habituamo-nos a pensar com a lógica da guerra. Disto começa a soprar o vento gelado da guerra, que esta vez também foi alimentado ao longo dos anos. Sim, desde há tempos que a guerra tem vindo a ser preparando com grandes investimentos e tráficos de armas. E é triste ver como o entusiasmo pela paz, surgido depois da ii Guerra Mundial, se debilitou nas últimas décadas, bem como o percurso da comunidade internacional, com alguns poderosos que avançam por conta própria à procura de espaços e zonas de influência. E assim não só a paz, mas também muitas questões importantes, como a luta contra a fome e as desigualdades, foram efetivamente canceladas das principais agendas políticas.
Mas a solução para as crises de cada um é ocupar-se das crises de todos, porque os problemas globais requerem soluções globais. Ajudemo-nos a auscultar a sede de paz das pessoas, trabalhemos por colocar as bases de um diálogo cada vez mais alargado, voltemos a reunir-nos em conferências internacionais pela paz, onde seja central o tema do desarmamento, com o olhar fixo nas gerações vindouras! E os enormes fundos que continuam a ser destinados para armamentos sejam aplicados no desenvolvimento, na saúde e na nutrição.
Olhando ainda para leste, gostaria por fim de dirigir um pensamento ao Médio Oriente, cuja proximidade se reflete na língua deste país, que se harmoniza com outras, como se quisesse recordar a capacidade que têm os malteses de gerar benéficas convivências, numa espécie de convívio das diferenças. Disto precisa o Médio Oriente: o Líbano, a Síria, o Iémen e outros contextos dilacerados por problemas e violência. Que Malta, coração do Mediterrâneo, continue a fazer palpitar a esperança, o cuidado pela vida, o acolhimento do outro, o anseio de paz, com a ajuda de Deus, cujo nome é paz.
Deus abençoe Malta e Gozo!