O cardeal Parolin presidiu no Aventino à celebração da quarta-feira de Cinzas

Imploremos de Deus a paz que os homens não conseguem construir

 Imploremos de Deus a paz  que os homens  não conseguem construir  POR-010
08 março 2022

O cardeal secretário de Estado, Pietro Parolin, presidiu à celebração da santa missa na quarta-feira de Cinzas, na tarde de 2 de março, na basílica romana de Santa Sabina. O purpurado leu a seguinte homilia preparada pelo Papa Francisco, que não pôde estar presente devido a uma gonalgia aguda, para a qual o médico prescreveu um período de maior descanso.

Amados irmãos e irmãs
leio a homilia que o Santo Padre preparou para esta celebração.

Neste dia, que dá início ao tempo da Quaresma, o Senhor diz-nos: «Guardai-vos de fazer as vossas obras diante dos homens, para vos tornardes notados por eles; de outro modo, não tereis nenhuma recompensa do vosso Pai que está no Céu» (Mt 6, 1). Pode causar surpresa, mas no Evangelho de hoje a palavra que aparece mais vezes é recompensa (cf. 6, 1.2.5.16). Habitualmente, na Quarta-Feira de Cinzas, a nossa atenção concentra-se mais sobre o empenho exigido pelo caminho de fé do que no prémio que daí nos advém. Contudo, hoje, o discurso de Jesus retorna regularmente a este termo, recompensa, que parece ser a mola do nosso agir. De facto em nós, no nosso coração, há uma sede, um desejo de alcançar uma recompensa, que nos atrai e move a cumprir aquilo que fazemos.

Mas o Senhor distingue dois tipos de recompensa, a que pode tender a vida de uma pessoa: por um lado, temos a recompensa junto do Pai e, por outro, a recompensa junto dos homens. A primeira é eterna, é a verdadeira, definitiva, é o objetivo da existência. Ao contrário, a segunda é transitória, é um encandeamento que nos prende quando a admiração dos homens e o sucesso mundano representam para nós a coisa mais importante, a maior gratificação. Mas trata-se de uma ilusão: é como uma miragem que, uma vez alcançada, nos deixa de mãos vazias. A inquietação e o descontentamento sempre aguardam ao virar da esquina quem possui como horizonte a mundanidade, que seduz, mas depois dececiona. Quem tem em vista a recompensa do mundo nunca encontra paz, nem sabe promover a paz, porque perde de vista o Pai e os irmãos. É um risco que todos corremos; por isso nos adverte Jesus: «Guardai-vos...»! É como se dissesse: “Tendes a possibilidade de gozar uma recompensa infinita, uma recompensa sem igual: por isso tende cuidado para não vos deixar deslumbrar pela aparência, perseguindo recompensas insignificantes, que vos morrem na mão”.

O rito das cinzas, que recebemos sobre a cabeça, quer subtrair-nos ao encandeamento de preferir a recompensa junto dos homens à recompensa junto do Pai. Este sinal austero, que nos leva a refletir sobre a caducidade da nossa condição humana, é como um remédio de sabor amargo, mas eficaz para curar a doença da aparência. Trata-se de uma doença espiritual, que escraviza a pessoa, levando-a a tornar-se dependente da admiração dos outros. É uma verdadeira «escravidão dos olhos e da mente» (cf. Ef 6, 6; Cl 3, 22), que nos induz a viver buscando a vanglória, de modo que conta não a pureza do coração, mas a admiração do povo; não o olhar de Deus sobre nós, mas como nos olham os outros. E não é possível viver bem, contentando-se com esta recompensa.

O problema é que esta doença da aparência mina também os âmbitos mais sagrados. É sobre isto que Jesus insiste hoje: também a oração, a caridade e o jejum podem tornar-se autorreferenciais. Em cada gesto, mesmo no mais belo, pode esconder-se a traça da autocomplacência. Assim o coração não é completamente livre, porque não procura o amor ao Pai e aos irmãos, mas a aprovação humana, o aplauso do povo, a sua própria glória. E tudo se pode transformar numa espécie de ficção em relação a Deus, a si mesmo e aos outros. Por isso, a Palavra de Deus convida-nos a olhar o nosso íntimo para ver as nossas hipocrisias. Façamos um diagnóstico das aparências que buscamos; tentemos desmascará-las. Far-nos-á bem.

As cinzas colocam em evidência o nada que se esconde por trás da afanosa procura das recompensas mundanas. Lembram-nos que a mundanidade é como o pó, que um pouco de vento arrasta. Irmãs, irmãos, não estamos no mundo para correr atrás do vento; o nosso coração tem sede de eternidade. A Quaresma é um tempo que o Senhor nos deu para voltarmos a viver, sermos curados interiormente e caminharmos para a Páscoa, para aquilo que não passa, para a recompensa junto do Pai. É um caminho de cura. Não para mudar tudo da noite para o dia, mas para viver cada dia com um espírito novo, com um estilo diferente. Para isto servem a oração, a caridade e o jejum: purificados pelas cinzas quaresmais, purificados da hipocrisia da aparência, reencontra-se a força plena para voltar a gerar uma relação viva com Deus, com os irmãos e consigo mesmo.

A oração humilde, feita «em segredo» (Mt 6, 6), no recanto do próprio quarto, torna-se o segredo para fazer florescer a vida no exterior. É um diálogo ardente de afeto e confiança, que consola e abre o coração. Sobretudo neste tempo de Quaresma, rezemos com os olhos fixos no Crucifixo: deixemo-nos invadir pela comovente ternura de Deus e, nas suas chagas, coloquemos as nossas e as do mundo. Não nos deixemos levar pela pressa, fiquemos em silêncio diante d’Ele. Redescubramos a essencialidade fecunda do diálogo íntimo com o Senhor. Com efeito, Deus não se compraz com as coisas espetaculares; pelo contrário, gosta de se deixar encontrar no segredo. É “o caráter secreto do amor”, longe de toda a ostentação e de tonalidades espalhafatosas.

Se a oração for verdadeira, não pode deixar de se traduzir em caridade. E a caridade liberta-nos da escravidão pior: a escravidão de nós mesmos. A caridade quaresmal, purificada pelas cinzas, reconduz-nos ao essencial, à alegria íntima que existe no dar. A esmola, dada longe dos holofotes, dá paz e esperança ao coração. Revela-nos a beleza do dar que se torna receber, permitindo assim descobrir um segredo precioso: o dar alegra mais o coração do que o receber (cf. At 20, 35).

Por fim, o jejum. Este não é uma dieta; antes, liberta-nos da autorreferencialidade da busca obsessiva do bem-estar físico, para nos ajudar a ter em forma, não o corpo, mas o espírito. O jejum leva-nos de novo a dar o justo valor às coisas. Concretamente, recorda-nos que a vida não deve estar submetida ao cenário passageiro deste mundo. E o jejum não se deve restringir apenas ao alimento: especialmente na Quaresma, deve-se jejuar daquilo que gera em nós dependência. Cada qual pense nisto, para fazer um jejum que incida verdadeiramente na sua vida concreta.

Mas, se a oração, a caridade e o jejum devem amadurecer no segredo, os seus efeitos não são secretos. Oração, caridade e jejum não são remédios só para nós, mas para todos: podem, de facto, mudar a história. Não só porque quem sente os seus efeitos, quase sem se aperceber também os transmite aos outros, mas sobretudo porque a oração, a caridade e o jejum são os meios principais que permitem a Deus intervir na vida nossa e do mundo. São as armas do espírito e é com elas que, neste Dia de oração e jejum pela Ucrânia, imploramos a Deus aquela paz que os homens sozinhos não conseguem construir.

Vós, Senhor, que vedes no segredo e nos recompensais além de toda a nossa expectativa, escutai a oração de quantos confiam em Vós, sobretudo dos mais humildes, dos mais provados, daqueles que sofrem e fogem sob o estrondo das armas. Colocai de novo a paz nos corações, concedei aos nossos dias a vossa paz. Amém!