Em diálogo com o cardeal Mario Zenari

Não abandonemos a Síria

A woman carries a child as they walk in the snow at a camp for internally displaced people in the ...
01 março 2022

O núncio apostólico em Damasco, cardeal Mario Zenari, ilustra a conferência para a Síria, que terá lugar na capital desse país a partir de 17 de março, com o encorajamento do prefeito da Congregação para as Igrejas orientais, cardeal Leonardo Sandri. “Igreja sinodal e exercício da Caridade”: eis o título do evento, que explica de modo eficaz os objetivos práticos e a raiz espiritual da iniciativa, que reunirá representantes de alguns dicastérios do Vaticano, de várias Conferências episcopais do mundo, empenhadas na ajuda ao país e das principais agências humanitárias das Nações unidas. «Estamos perante 13 milhões de pessoas que vivem em condições de extrema dificuldade», afirmou Zenari, recordando a triste imagem destas semanas de inverno: a morte de uma criança esmagada debaixo de uma tenda de refugiados que caiu sob o peso da neve. «O processo de paz está parado, enquanto a pobreza continua a galopar», acrescentou, agradecendo ao Papa Francisco a proximidade constante e as muitas ações humanitárias postas em prática nos últimos anos pelos principais atores neste campo. «Há necessidade deste evento de três dias para reforçar o ministério da caridade», declarou, referindo-se ainda ao encontro como a um exemplo da “Igreja em saída”. Uma Igreja que na Síria convive todos os dias com esta enorme crise e deve caminhar ao lado da Igreja universal para responder à mais grave tragédia humanitária desde a segunda guerra mundial.

Nestes dias Vossa Eminência veio a Roma para participar na plenária da Congregação para as Igrejas orientais...

Sim, e emprego estas últimas horas que restam da minha viagem para preparar um evento especial, que terá lugar na Síria em meados do próximo mês: uma conferência em que participarão os membros de alguns dicastérios romanos, convocada pela Igreja na Síria por sugestão e com o encorajamento do cardeal Leonardo Sandri, prefeito da Congregação para as Igrejas orientais, há cerca de três meses. O tema desta conferência, que é única no seu género, é “Caridade e sinodalidade”: a Igreja que deve ativar ainda mais todas as suas energias e que unida, precisamente em espírito sinodal, se esforça por exercer o ministério da caridade.

Podemos dizer que é um modo de dar vida aos constantes encorajamentos do Papa?

É o encorajamento para uma “Igreja em saída”, como o Bom Samaritano, que o Papa Francisco repete frequentemente e que é válido para toda a Igreja e, em particular, para a Igreja na Síria. Nunca como hoje, a Igreja síria é chamada a sair, a sair em sínodo, unida: todos os bispos, toda a Igreja síria já saiu, mas deve sair de novo, com espírito renovado. E deve fazê-lo com a Igreja universal. Com efeito, nesta conferência participarão — além de alguns membros de dicastérios romanos — também a comunidade católica internacional e os representantes das Conferências episcopais de vários países que contribuem para o ministério da caridade.

O que vê a Igreja síria no facto de estar em saída?

Vê a catástrofe humanitária mais grave do pós-guerra. Pensemos em mais de meio milhão de mortos e feridos e em 90% da população, segundo as estatísticas das Nações unidas, que vive abaixo da linha da pobreza. Tal como o Bom Samaritano, que encontrou um homem pobre que tinha caído nas mãos dos salteadores, roubado, deixado meio-morto à beira da estrada, também a Igreja síria vê 13 milhões de pessoas que vivem em tais condições, que têm fome e precisam de aquecimento, porque agora está muito frio. Acabei de partir da Síria; havia neve e temperaturas abaixo de zero. Há duas ou três semanas algumas tendas de refugiados caíram sob o peso da neve. Até uma criança foi esmagada debaixo de uma tenda que caiu sob o peso da neve e depois outras crianças morreram de frio. É isto que a Igreja síria vê.

Portanto, esta conferência torna-se o instrumento para canalizar as energias e entrar em ação.

Devo dizer que todos veem o que acontece na Síria. Mas, como disse o Papa Bento xvi , «é preciso um coração que veja». Inclusive na parábola do Bom Samaritano havia duas pessoas que viram antes dele, mas olharam para o outro lado e continuaram o seu caminho. Por isso é necessário um coração que veja. E é a Igreja que deve ter o coração do Bom Samaritano que vê, que se compadece. Precisamos da «criatividade do amor» de que fala o Papa Francisco: é preciso fazer algo, agir. E há outra bonita expressão de São João Paulo ii , que se refere à «fantasia da caridade». Diante desta catástrofe humanitária, é necessário desenvolver a fantasia da caridade, é preciso ver com o coração.

No entanto, nestes últimos anos não faltaram iniciativas assistenciais da Igreja.

Sem dúvida! E estou aqui também para recordar e agradecer aos membros da Igreja síria que nos últimos anos desenvolveram algumas formas muito bonitas de assistência e de caridade humanitária: o pão diário — de que as pessoas precisam — os cuidados de saúde — pois há necessidade de remédios — sem descuidar a educação e a assistência às crianças que não vão à escola. É bom ver esta fantasia da caridade e este sair juntos. Por isso é necessária esta conferência, para a qual serão convidados também representantes das Nações unidas que ali trabalham. Somos como os discípulos que se interrogam quando Jesus disse: «Dai-lhes vós mesmos de comer», em referência às pessoas que tinham fome. A primeira reação espontânea, também a minha, é: como dar de comer a todas aquelas pessoas, como encontrar remédios, cobertores e roupas, agora que estamos no inverno!

Qual é o principal objetivo da conferência?

Serão três dias de reflexão deveras necessários. Haverá uma Igreja sinodal que procurará desenvolver e organizar melhor a caridade. E deverá recorrer também aos organismos internacionais, pois precisamos de toneladas de farinha, arroz e azeite. É claro que devemos agradecer também os esforços do Programa alimentar mundial, da Cruz vermelha... Mas agora é preciso unir tais esforços. E ao mesmo tempo a Igreja, que está presente e vê, deve dar um pouco este sentido, encorajando ou exortando a comunidade internacional a fazer ainda mais.

Quais são as bases espirituais desta iniciativa?

Quando venho a Roma e falo de caridade, lembro-me frequentemente de um grande mártir sírio que foi bispo por volta do ano 100 d.C.: o bispo de Antioquia da Síria, Santo Inácio. A caminho de Roma, prisioneiro para ser martirizado, devorado pelas feras, dizia sobre a Igreja de Roma: «A Igreja de Roma, com o seu bispo, com o Papa, preside à caridade». E cada vez que venho aqui, vejo o Papa e sinto que Francisco realmente tem a peito esta situação dos pobres do mundo inteiro, e em especial da Síria. E teria muitos exemplos a dar também sobre as ajudas que ele me ofereceu. Mas ao mesmo tempo, evocando a figura de Santo Inácio de Antioquia, quando foi tirado da sua diocese, lembro-me também do apelo que dirigiu às várias comunidades durante a sua viagem: «Nas vossas orações, lembrai-vos da Igreja na Síria». Repito este apelo porque a Síria precisa não só do pão que recebe das Cáritas do mundo inteiro, mas também de uma caridade especial: a caridade da oração, para praticar melhor este exercício e este ministério da caridade.

Na sua opinião, a pandemia fez diminuir a atenção do mundo pela Síria em termos de fraternidade e solidariedade?

Infelizmente, a Síria foi esquecida há dois ou três anos. Alguns jornalistas, a quem mencionei a questão, disseram-me: «Infelizmente, após 10 anos de guerra, não se vendem mais notícias sobre a Síria». Ser esquecido fere muito, é deveras triste. Entretanto, surgiram outros problemas, como o vizinho Líbano; agora há a Ucrânia; a Covid. Mas em relação à pandemia, devo dizer que houve uma graça na desgraça: até agora não aconteceu aquela catástrofe que se temia, dado que ninguém vai à Síria. No país não existem aeroportos ativos, tudo está fechado e há anos que se vive um lockdown que impediu a entrada e a propagação da Covid. Assim, de acordo com as estatísticas oficiais, mas também vendo a situação real, felizmente, esta pandemia ainda é limitada. No entanto, este isolamento é negativo, pois a Síria é esquecida pelos meios de comunicação. Ninguém fala dos sírios que, contudo, precisam da solidariedade física e, portanto, de ver pessoas que chegam ao país, para não se sentir abandonados. Para dar um exemplo, uma vez eu estava na rua e um jovem casal perguntou-me onde ficava um certo restaurante. Eu não estava de batina e respondi: “Desculpe, não sou daqui, não posso dar esta informação”. O jovem disse-me imediatamente: “Não importa, não é um problema, mas obrigado por estar aqui connosco, por estar aqui na Síria!”.

O que pode cada um de nós fazer concretamente para estar próximo dos irmãos sírios?

Diria: não abandonemos a Síria. Vi imagens que não tinha visto nem sequer durante os últimos anos, quando as bombas caíam em toda a parte: filas de pessoas em frente de padarias, que vendem a preços mitigados pelo Estado. Vejo que a pobreza galopa enquanto, infelizmente, o processo de paz está num impasse. Por isso, gostaria de dirigir um apelo sobretudo à comunidade internacional, às instituições internacionais, a fim de que se ponham em ação: não se pode deixar uma população à deriva, a sofrer de fome, a padecer a falta de hospitais e de remédios. E depois dirigiria um apelo também a todo o mundo da mídia: não se esqueçam desta tragédia! Repito: a Síria sofre e ainda hoje é a catástrofe humanitária mais grave desde o fim da segunda guerra mundial em termos numéricos.

Eugenio Bonanata