Recuperar a lógica da escuta

 Recuperar  a lógica da escuta  POR-008
22 fevereiro 2022

«A experiência da fé é sempre uma experiência de se fazer ao largo, ousar, abrir e não fechar nem fechar-se. Uma Igreja que se abre não significa uma Igreja que se rende à mentalidade do mundo, mas uma Igreja que retoma a sua vocação primordial de ser fermento, sal e luz», disse na tarde de 18 de fevereiro o substituto da secretaria de Estado, Edgar Peña Parra, no auditório da casa de Vilar no Porto, Portugal, proferindo uma conferência sobre “A Igreja e o futuro do mundo na pós-pandemia”.

Excelências Reverendíssimas

Queridos sacerdotes

Amados irmãos e irmãs!

O Evangelho tem como ponto de partida a lógica da encarnação. O facto da entrada do Filho de Deus no espaço e no tempo, numa história concreta e num lugar específico, não nos proporciona uma indicação simplesmente de natureza teológica, mas oferece-nos também, por assim dizer, uma indicação metodológica.

Deus intervém sempre na realidade e, para fazer experiência de Deus e compreender a sua vontade, sempre devemos tomar a sério a realidade.

Bem o entenderam, ao longo da história da Igreja, os missionários que, ao deparem-se com contextos insólitos, experiências e eventos particulares, começaram por se deixar transformar por tais eventos e espaços a fim de assumir a justa linguagem, o alfabeto melhor para poderem assim expor o Evangelho.

Também em nossos dias não devemos jamais esquecer este princípio que é a realidade. O tempo que estamos a viver é um tempo marcado pela pandemia do coronavírus, um tempo que, no dizer do Papa Francisco, «ha fatto saltare il tavolo — baralhou o jogo», ou seja, pôs em questão os nossos programas, as nossas análises, as nossas prioridades, e fez-nos perceber que o modelo de Igreja e de anúncio a que estávamos habituados precisa de ser repensado justamente a partir daquilo que aconteceu.

Por isso mesmo, devemos recuperar a lógica da escuta.

O processo sinodal, que o Papa Francisco tanto tem almejado e incentivado nos últimos meses e que verá a Igreja empenhada nos próximos anos, podemos defini-lo como uma ampla educação para nos pormos à escuta não só dos outros e da própria realidade, mas também e sobretudo de Deus, que nos fala precisamente através do irmão, da irmã e dos acontecimentos que vivemos.

A lógica da escuta é a lógica de quem renuncia aos preconceitos para deixar que a realidade, com as suas luzes e sombras, possa voltar a surpreender-nos.

Queridos amigos, por mais dificuldades, problemas e provações que passemos, nunca devemos perder um olhar apaixonado sobre o mundo, a história, os acontecimentos, o próximo. Devemos manter sempre um olhar de bênção, isto é, um olhar capaz de encontrar e reconhecer o bem escondido nas coisas, porque cada acontecimento e cada situação vem da mão de Deus e, por isso mesmo, conserva a sua bondade de fundo.

Sempre se revelou muito difícil erradicar de um certo modelo de Igreja a sua atitude continuamente polémica em relação ao mundo. O próprio Jesus, quando entra na história, não se inibe certamente da polémica; contudo não polemiza com o mundo nem com as pessoas que encontra, mas com a mentalidade mundana, aquela mentalidade rasteira que faz Pedro recusar a lógica da Cruz (cf. Mt 16, 22-23; Mc 8, 32-33). É preciso não confundir jamais a mentalidade mundana com o próprio mundo.

Por isso o primeiro grande contributo que, nós cristãos, devemos prestar ao mundo ferido pela pandemia do coronavírus é o de não nos deixarmos levar por um pessimismo generalizado que vê o mal em toda a parte e olha para a realidade sem qualquer esperança. Como seria bom se cada cristão, cada sacerdote, cada bispo, cada batizado pudesse, antes de mais nada, levar este olhar de bênção ao mundo!

Só assim se consegue entender a insistência do Papa Francisco no tema do diálogo. Não se trata simplesmente de uma lógica estratégica de convivência, nem apenas de chegar a um compromisso para se obter o fim do conflito. Só é possível dialogar, se se estiver convencido da presença de Deus em toda parte, da sua presença em toda a experiência autenticamente humana, embora nem sempre de forma palpável. É precisamente através do diálogo, da relação, da amizade que se consegue descobrir este bem escondido por todo o lado.

Ter medo do que é diverso, ter medo do estrangeiro, fechar as nossas fronteiras para que seja preservada a nossa identidade, não é uma atitude de fé; antes pelo contrário, é uma clara falta de fé. De facto os discípulos, no seu primeiro contacto com Jesus, encontram n’Ele um homem que os impele para o mar alto: «Faz-te ao largo — diz Jesus a Pedro — e vós, lançai as redes» (Lc 5, 4).

A experiência da fé é sempre uma experiência de se fazer ao largo, ousar, abrir, e não fechar nem fechar-se. Uma Igreja que se abre, não significa uma Igreja que se rende à mentalidade do mundo, mas uma Igreja que retoma a sua vocação primordial de ser fermento, sal, luz. Na verdade, estes três elementos são inúteis quando estão sozinhos e à margem das coisas, mas produzem fruto quando estão escondidos dentro da realidade. O fermento leveda toda a massa, o sal dá o sabor às coisas, e a luz, quando embate nos objetos, ilumina-os (cf. Mt 5, 13-16). Também nós, cristãos, somos chamados da mesma forma a levedar a história, a levar um sabor novo aos acontecimentos e à história, e a iluminar circunstâncias e lugares que normalmente são invisíveis aos olhos da maioria das pessoas.

Assim nos ensinou Jesus, cujos olhos se voltavam sobretudo para os últimos, os pobres, os abandonados, para os que sofrem, para os pecadores, e fazia-o dizendo explicitamente que viera ao mundo sobretudo para os doentes, os extraviados, os pecadores (cf. Lc 5, 31-32; Mt 9, 12-13). Por isso cada um de nós não pode eximir-se de fazer-se ao largo, ter uma atitude de abertura face ao mundo, conservar um olhar de bênção sobre a realidade, embora mantendo com sagacidade evangélica (cf. Mt 10, 16) a capacidade de se aperceber da lógica do mundo que sempre pode insinuar-se nos nossos raciocínios, nas nossas escolhas.

Mas quais são os desafios que a Igreja deve tomar a sério neste momento histórico? Quais são os desafios que o Magistério do Papa Francisco tem claramente indicado? Gostaria de vos propor pelo menos três: as relações, a misericórdia e a oração. Haverá muitos mais desafios certamente, mas escolhi partilhar convosco estes três por julgar que os mesmos resumem de maneira significativa todo o Magistério do Papa Francisco.

Comecemos pelas relações

Ao longo destes anos, o Papa Francisco tem-nos recordado como todo o método do Evangelho se encerra nas relações humanas. Tudo o que diz respeito à vida de Cristo parece impregnado de amizade. Os Evangelhos aparecem permeados sobretudo de relacionamentos e relações, como se nos quisessem recordar que a boa nova do Evangelho é incompreensível sem as relações, e que o Evangelho não se reduz a uma ideia genial sobre o mundo, nem – pior ainda – a uma moral que atue como barreira aos excessos do homem e do mundo. Já no-lo recordara o Papa Bento xvi na Encíclica Deus caritas est: «Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo» (n. 1). Uma pessoa é cristã, quando entra em relação com a pessoa de Jesus Cristo, e não simplesmente com as suas ideias e valores. E da mesma forma podemos dizer que entramos em relação com a pessoa de Jesus Cristo, quando consideramos igualmente preciosas as relações com o irmão e a irmã que estão junto de nós.

Uma Igreja é digna deste nome, quando sabe construir relações significativas. Uma Igreja atua como sacramento universal de salvação, não quando fornece programas, análises, perspetivas ou propostas, mas quando sabe oferecer pessoas concretas.

Há um texto do Evangelho de Marcos onde se fala de um punhado de amigos que encontram, com criatividade pastoral verdadeiramente excecional, uma maneira para depor um paralítico diante de Jesus (Mc 2, 1-12). A cena é bastante simples: Jesus encontra-Se numa casa e há tanta gente que não existe qualquer possibilidade de passagem pela porta nem pelas janelas. Então um grupo de amigos carrega aos ombros um homem doente, sobe ao teto, descobre uma parte deste e por ali desce o enfermo até ficar diante de Jesus. O Evangelho narra que Jesus, ao ver a fé deles, disse àquele homem: «os teus pecados estão perdoados» (2, 5). A Igreja é isto mesmo: a capacidade de saber carregar concretamente as pessoas para as levar a Cristo.

Que seria daquele homem, se não tivesse tido estas relações para lhe salvarem a vida? A Igreja é sacramento universal de salvação, quando sabe oferecer assim relacionamentos e relações.

Neste sentido, podemos avançar mais um passo no grande desafio das relações, concebendo as nossas comunidades como «hospitais de campanha». Esta expressão do Papa Francisco significa fundamentalmente que as nossas comunidades, mesmo quando têm atrás de si uma história gloriosa, nunca devem cair na armadilha de se enrijecer no próprio passado, nos próprios costumes, mas hão de ter sempre a capacidade de saber-se transformar e mudar segundo as circunstâncias. Não têm de mudar os seus alicerces, mas devem saber destapar o teto.

Uma Igreja em saída não é uma Igreja vazia, mas uma Igreja aberta, uma Igreja onde se possa entrar e fazer uma experiência concreta do amor de Deus.

A condição justa para se poder encontrar Cristo é simplesmente possuir o desejo de procurar e achar um motivo pelo qual a nossa vida possa valer a pena. Quem encontra Cristo, encontra esta salvação; e uma Igreja que é capaz de armar a sua tenda no meio dos homens, pode oferecer ao mundo esta salvação, porque oferece Cristo e oferece-o de dois modos: primeiro, com as relações, como ficou dito; segundo, com os Sacramentos e a Palavra de Deus.

Embora nos sintamos tentados a separar — se não mesmo a contrapor — estas duas dimensões, o desafio profético que o Papa Francisco está a lançar à Igreja inteira já não é simplesmente pedir para não as separar nem contrapor, mas pretende integrar uma dimensão na outra. Não pode haver qualquer compromisso e amor ao próximo sem uma profunda experiência de Deus, que podemos fazer sobretudo nos Sacramentos e na Palavra; e, vice-versa, não teriam sentido a nossa oração e a escuta da Palavra, se as mesmas não nos impelissem mais decididamente para os nossos irmãos, para um amor concreto que sabe encarnar-se e ir ao encontro das reais necessidades do mundo.

Os Padres conciliares escreveram: «As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração» (Gaudium et spes, 1); as relações e a comunidade são apenas duas das experiências onde se patenteiam o primeiro desafio.

O terceiro aspeto deste primeiro desafio, encontramo-lo precisamente na experiência da proximidade. Constroem-se relações, quando se sabe viver a proximidade sobretudo com os últimos, com os mais esquecidos.

A partir justamente da proximidade, entramos no segundo desafio que o Papa Francisco nos lançou no seu Magistério: o desafio da misericórdia.

Nos últimos anos, ouvimo-lo falar com muita frequência da misericórdia; mas também aqui, como já dissemos no tema das relações, o Papa Francisco limitou-se a trazer à luz algo que se encontra já de forma evidente em todo o Evangelho. Se é verdade que o Evangelho está permeado pela amizade, de igual forma o atravessa a experiência da misericórdia.

Que é a misericórdia? É a experiência de se saber amado na própria miséria. Deus salva o homem precisamente através de tal amor, isto é, oferece a cada homem a experiência de saber-se amado não só na sua parte vencedora, mas também e sobretudo na sua parte mais frágil, mais débil. E é justamente a partir deste amor na nossa miséria que experimentamos a salvação.

A experiência da misericórdia é sempre revolucionária. Jesus passou a maior parte da sua vida pública à procura das pessoas que sentiam maior dificuldade, dos mais miseráveis, concretamente daqueles que experimentavam uma carência a nível físico, psíquico, espiritual, afetivo, social; e a tais pessoas anunciou a proximidade do Reino. Por isso a experiência da misericórdia não se reduz à dimensão de se deixar amar e perdoar por Deus, mas requer ao mesmo tempo a componente de transformar a nossa ação pastoral e a nossa ação evangelizadora segundo os moldes da misericórdia.

Várias vezes nos recordou o Papa Francisco que não tem sentido oferecer uma teologia e uma moral rígidas exprimindo simplesmente uma verdade insuportável para o homem. Precisamos de ouvir uma teologia e uma moral que possam salvar a Verdade e, ao mesmo tempo, salvar o homem e a mulher a que ela se refere. Pode ajudar-nos, também neste caso, uma passagem do Evangelho. Desta vez é o episódio da adúltera narrado pelo evangelista João (8, 3-11). Um grupo de escribas e fariseus põe Jesus à prova, trazendo-lhe uma mulher apanhada em flagrante adultério. O Evangelho, apesar de o fazer com imensa delicadeza, diz-nos que não há escapatória para esta mulher: foi apanhada em flagrante adultério, e a Lei é clara a este respeito. E é precisamente a partir da Lei que aqueles homens põem a Jesus a questão: «Mestre, esta mulher foi apanhada a pecar em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou-nos matar à pedrada tais mulheres. E Tu que dizes?» (8, 4-5). Jesus dá uma resposta que nos mostra como se podem manter juntas as duas dimensões — a do amor e a da verdade — e fá-lo a partir de um percurso que poderíamos definir de humanização dos seus interlocutores: «Quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!». Jesus convida aqueles que o interpelam a olhar primeiramente para si mesmos, olhar para a própria debilidade, olhar para a própria miséria, olhar para a sua própria experiência de pecado. Somente a partir desta consciência é que se pode voltar a olhar para aquela mulher com olhos novos. É por isso que o Evangelho observa que todos, do mais velho ao mais novo, deixam cair as suas pedras e regressam a casa (8, 8). Mas a narração do Evangelho não termina aqui, porque poderíamos ter a sensação de que Jesus, colocando-se da parte desta mulher, tenha de alguma forma, por assim dizer, adulterado o Magistério, ou seja, tenha adulterado o princípio de fidelidade que percorre toda a Revelação e se exprime também no pacto nupcial. Ficando sozinhos Ele e esta mulher, Jesus faz à mulher uma pergunta: «Mulher, alguém te condenou?» «Ninguém» — respondeu a mulher. «Também Eu não te condeno — acrescenta Jesus — vai e de agora em diante não tornes a pecar» (8, 10-11). Vemos que Jesus toma sem dúvida o partido da mulher, mas não falta à Verdade; antes, ajuda-a a recuperar aquela verdade que pode não só salvar a sua vida, mas também torná-la digna de ser vivida. Com efeito, não se faz a experiência da misericórdia à custa da Verdade; a misericórdia é uma modalidade através da qual acontece a Verdade. Por isso é errado pensar que esta insistência do Papa Francisco sobre a proximidade se faça à custa do Magistério, da doutrina ou da própria Verdade. Não se põem em discussão estas realidades, mas são evangelizadas, isto é, colocadas de tal forma que possam salvar a vida e não simplesmente julgá-la ou, pior ainda, condená-la. Ao contrário, o que deixa triste é uma visão polarizada de Igreja na qual, de um lado, estão aqueles que, por amor do irmão e da irmã, estão dispostos a lançar fora a Verdade (temos, porém, de nos perguntar: pode-se verdadeiramente amar renunciando à Verdade?) e, do outro lado, estão aqueles que por amor da Verdade estão dispostos até a matar o irmão e a irmã (também neste caso devemos questionar-nos: será verdadeiramente a Verdade de Jesus Cristo, uma verdade que condena e mata?) Não estaremos porventura perante uma verdade ideológica, uma verdade diabólica, isto é, uma verdade que não é autêntica Verdade porque não salva?

Num mundo como o nosso, que tende a simplificar mecanismos complexos, devemos acostumar-nos a saber ler as palavras claras do Papa como palavras que nos ajudam a habitar a complexidade da vida, ou seja, a sabermos assumir a complexidade da existência. A visão dualista da realidade onde tudo é lido como branco ou preto não faz justiça à própria realidade que sempre forma um espetro de cores muito mais amplo do que o simples branco ou preto.

O terceiro e último desafio, que gostaria hoje de partilhar convosco a propósito do Magistério do Papa Francisco para este nosso tempo, tem a ver com o tema da oração. Oração vista como discernimento. Entender a oração significa compreender que também ela, para ser cristã, deve exprimir uma relação, e a relação com Deus tem sempre como objetivo fazer-nos discernir a sua Vontade.

É bom pensar que, enquanto muitas vezes nos afanamos por encontrar modalidades e respostas para os problemas do mundo, o Evangelho diz-nos que, com muita frequência, as respostas objeto da nossa busca encontramo-las sobretudo na oração, na escuta orante da Palavra, na experiência da vida espiritual.

Mas há um paradoxo que muitas vezes esquecemos: a vida espiritual, antes de nos introduzir numa resposta às nossas questões, impõe-nos ela mesma uma questão. Viver a vida espiritual significa aceitar entrar em crise, isto é, aceitar ser conduzido como Jesus ao deserto para viver a experiência da provação. Vivemos num mundo que confunde a experiência espiritual e a oração com a simples busca de um bem-estar. Frequentemente rezamos para estar bem, ao passo que não rezamos para conhecer a vontade de Deus. E a diferença é radical: se a oração só está ligada ao bem-estar, não se trata de vida espiritual, mas apenas de vida psicológica. Ao contrário, a vida espiritual é aceitar ser conduzido pelo Espírito na experiência da crise da dúvida, na experiência da prova, da tentação, e, assim, procurar e encontrar neste tipo de experiência a voz da Deus que nos fala e que muitas vezes nos revela o nosso próprio ser ainda antes de manifestar o que devemos fazer ao nosso redor e pelos outros.

Por isso faz-nos bem pensar que, quando o Papa Francisco nos convida constantemente a rezar, está a convidar-nos para aceitarmos constantemente ser postos em discussão pelo Espírito.

Num discurso feito à Cúria Romana por ocasião da apresentação de votos natalícios em 2020, o Papa explicou-nos claramente a diferença entre a crise e o conflito. Leio-vos na íntegra esta passagem: «Gostaria de vos exortar a não confundir a crise com o conflito. São duas coisas distintas... A crise geralmente tem um desfecho positivo, enquanto o conflito cria sempre um contraste, uma competição, um antagonismo aparentemente sem solução, entre sujeitos que se dividem em amigos a amar e inimigos a combater, com a consequente vitória de uma das partes.

«A lógica do conflito sempre busca os “culpados” a estigmatizar e desprezar e os “justos” a justificar, a fim de introduzir a noção — muitas vezes mágica — de que esta ou aquela situação nada tem a ver connosco. Esta perda do sentido de uma pertença comum favorece o crescimento ou a afirmação de certas atitudes elitistas e de “grupos fechados” que promovem lógicas restritivas e parciais, que empobrecem a universalidade da nossa missão. “Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda da realidade” (Exort. ap. Evangelii gaudium, 226).

«Lida com as categorias de conflito — direita e esquerda, progressista e tradicionalista — a Igreja divide-se, polariza-se, perverte e atraiçoa a sua verdadeira natureza: é um Corpo perenemente em crise, precisamente porque está vivo, mas não deve tornar-se jamais um Corpo em conflito com vencedores e vencidos, pois deste modo semeará temor, tornar-se-á mais rígida, menos sinodal, e imporá uma lógica uniforme e uniformizadora, muito distante da riqueza e pluralidade que o Espírito deu à sua Igreja.

«A novidade introduzida pela crise querida pelo Espírito nunca é uma novidade em contraposição ao antigo, mas uma novidade que germina do antigo e o torna sempre fecundo. (...) Neste sentido, todas as resistências que fazemos ao entrar em crise, deixando-nos conduzir pelo Espírito no tempo da prova, condenam-nos a ficar sós e estéreis, no máximo em conflito. Defendendo-nos da crise, obstaculizamos a obra da graça de Deus, que quer manifestar-se em nós e por meio de nós» (Discurso do Papa Francisco aos membros do Colégio cardinalício e da Cúria romana, para a apresentação dos votos natalícios, 21 de dezembro de 2020).

Sintetizando, quis resumir os desafios para a Igreja atual sobretudo no Magistério do Papa Francisco, em três grandes séries: as relações, a misericórdia e a oração.

As relações são a identidade mais profunda da Igreja como sacramento universal de salvação; a misericórdia é a modalidade verdadeira pela qual a Verdade se oferece a cada homem e cada mulher, isto é, verdade que salva e não simplesmente que combate e condena; ao passo que a oração é o lugar da escuta, o lugar onde o Espírito nos faz tirar proveito das crises, das dúvidas e, por isso mesmo, nos conduz rumo àquela resposta que é o próprio Jesus e que continua a falar no coração, na consciência e no sentir da Igreja.

O tempo atual, caraterizado também pelo caminho sinodal, é antes de mais nada um tempo de escuta de Deus que passa precisamente através da experiência da comunidade.

Almejo a cada um de vós, e a mim em primeiro lugar, que saibamos tirar proveito daquilo que o Senhor nos está a dizer através do Papa Francisco e, assim, podermos testemunhar vigorosamente o que um cristão nunca deveria esquecer: o Evangelho só é credível, se for anunciado por pessoas que se amam e dão a vida umas pelas outras (Jo 13, 34). A comunhão e a unidade são o verdadeiro fruto que testemunha que estamos a fazer a vontade de Deus. Oxalá dê o Senhor a cada um de nós o desejo da comunhão e da unidade em primeiro lugar com Pedro, que é o garante desta comunhão, desta unidade.