Com os formadores e seminaristas

Promover a arte da proximidade

 Promover a arte  da proximidade  POR-008
22 fevereiro 2022

«Para ser pastores ao serviço do Povo de Deus, é preciso desenvolver aquela atitude interior de acolhimento, hospitalidade e solidariedade para com o outro, que nos faz superar distâncias e desconfianças, introduzindo na arte da proximidade», disse Dom Edgar Peña Parra, substituto da secretaria de Estado aos seminaristas teólogos do Porto na manhã de 19 de fevereiro no seminário maior da cidade, concluindo a sua visita a Portugal no dia 20, com a celebração da Eucaristia no santuário diocesano de Santa Rita de Cássia, em Ermesinde.

Queridos formadores e seminaristas!

Sinto-me feliz por estar entre vós e partilhar convosco alguns pensamento sobre a formação e a vida sacerdotal.

Começo por agradecer ao Senhor, que não deixa de suscitar no coração de numerosas pessoas, como vós, o desejo de oferecer a vida pelo Evangelho, servindo o Povo de Deus através do ministério ordenado. Mas a sublimidade da vocação do Senhor chama-nos a abrir o coração acolhendo um dom que nos convida à responsabilidade: a unção sacerdotal não se deve a nós mesmos, como se fosse sinal de uma predileção especial ou prémio pelas nossas capacidades, mas é-nos dada para ir ao encontro do Povo de Deus, ungir as suas feridas, acompanhá-lo no caminho da vida e da fé, tornar-se ministros de libertação e salvação em nome de Jesus. Esta missão importante só vos encontrará prontos, audazes e criativos, se souberdes viver dia a dia este tempo da vossa formação sacerdotal. Por isso, é preciso um cuidado diário no trabalho de cada um sobre si próprio; mas sobretudo há que crescer no desejo de confiar-se às mãos pacientes de Deus que, como sábio artesão e solícito oleiro, vos forma e molda de modo especial através do percurso do Seminário. Permiti-me, pois, algumas reflexões sobre a identidade do padre e sobre a formação sacerdotal, seguindo algumas intuições do Papa Francisco.

Jovens seminaristas como vós necessitam, em primeiro lugar, de uma leitura realista do tempo em que vivemos. Sois filhos de um país com antiga tradição cristã, de um passado em que o anúncio do Evangelho permeou o terreno cultural e cimentou a sociedade, plasmando os seus valores e perspetivas fundamentais. Hoje, porém, as sociedades ocidentais veem-se atravessadas por profundas mudanças e, sob muitos aspetos, apresentam-se mais indiferentes à questão de Deus e mais carecidas de uma renovada evangelização. O Papa Francisco ofereceu-nos, neste sentido, uma leitura teológica profunda do nosso tempo, afirmando que «estamos a viver, não simplesmente uma época de mudanças, mas uma mudança de época. Encontramo-nos, portanto, num daqueles momentos em que as mudanças já não são lineares, mas epocais; constituem opções que transformam rapidamente o modo de viver, de se relacionar, de comunicar e elaborar o pensamento, de comunicar entre as gerações humanas e de compreender e viver a fé e a ciência» (Discurso à Cúria romana para a apresentação de votos natalícios, 21 de dezembro de 2019).

Simultaneamente cada crise da nossa vida pessoal e eclesial, por mais que nos possa destabilizar fazendo vacilar as nossas certezas, é também uma grande oportunidade e constitui um momento de reflexão, mudança e graça, tratando-se por isso de uma realidade que devemos ler com os olhos da profecia e da esperança. De facto, o Santo Padre acrescentava que, até há pouco tempo, a realidade — e isto provavelmente aplica-se também a Portugal — podia ser interpretada de forma simples: «De uma parte, um mundo cristão e, da outra, um mundo carecido ainda de ser evangelizado. Agora, esta situação já não existe. Efetivamente as populações que ainda não receberam o anúncio do Evangelho não vivem apenas nos Continentes não ocidentais, mas habitam em toda a parte, especialmente nas enormes concentrações urbanas, requerendo também elas uma pastoral específica (...): já não estamos na cristandade! Hoje, já não somos os únicos que produzem cultura, nem os primeiros nem os mais ouvidos. Por isso precisamos de uma mudança de mentalidade pastoral» (ibidem).

Tomemos consciência disto, sem nos prendermos com saudade a um passado que já não existe, nem nos enrijecermos contra os desafios que nos aguardam: a identidade do padre e o seu ministério pastoral estão inseridos num contexto novo, certamente mais complexo, mas também rico de desafios que devemos abraçar com paixão, a começar por aquele que o Papa nos deu, com tanto entusiasmo, na Exortação Evangelii gaudium: sair e levar a todos a alegria do Evangelho, para favorecer um novo encontro com o Senhor na vida de tantas pessoas que já não O conhecem. Então que padre se pretende? E que formação? Detenho-me em duas palavras essenciais: discípulo e pastor.

Em primeiro lugar, o Papa Francisco usa uma palavra-chave para delinear os traços da identidade presbiteral. Afirma que o padre é um discípulo do Senhor. Nesta imagem decisivamente evangélica, podemos apreender o eixo à volta do qual gira a nossa existência presbiteral: não é a nossa habilidade como não são os sucessos pastorais que conseguiremos obter, mas a relação pessoal com o Senhor. Ser discípulo para toda a vida, isto é, caminhar atrás do Mestre significa não cair vítima da lógica clerical que entende o presbiterado como um poder usufruível ou algo que temos à nossa disposição de uma vez por todas. Somos e permanecemos discípulos em caminho e este itinerário de discipulado — que não nos permite jamais «sentir-se chegado à meta», convidando-nos incessantemente a renovar a memória do encontro com Aquele que nos escolheu — dura a vida inteira.

Esta dimensão ajuda-nos a velar sobre o risco da habituação e da tibieza e sobre aquela «alzheimer espiritual» — segundo a expressão do Papa Francisco — típica de quantos «perderam a memória do seu encontro com o Senhor» e vivem «um progressivo declínio das faculdades espirituais» (Discurso à Cúria romana para a apresentação dos votos natalícios, 22 de dezembro de 2014). Ser padre não é o ponto de chegada de uma conquista humana, um título honorífico ou a vocação para exercer uma tarefa administrativa e burocrática. É, antes de mais nada, viver o discipulado a que todos somos chamados, na forma específica de uma vida que se consagra ao Senhor para ser sinal da sua presença e do seu amor misericordioso no meio do Povo de Deus. Neste sentido, a formação sacerdotal começa no tempo do Seminário, mas dura toda a vida, como «uma experiência de discipulado, que aproxima de Cristo e permite conformar-se cada vez mais com Ele. Por isso mesmo, não pode ser uma tarefa a prazo, porque os sacerdotes nunca deixam de ser discípulos de Jesus, de O seguir (...). Portanto, a formação enquanto discipulado acompanha toda a vida do ministro ordenado e diz respeito à sua pessoa na sua totalidade, intelectual, humana e espiritualmente» (Discurso à Assembleia plenária da Congregação para o clero, 3 de outubro de 2014).

Assim chego à segunda palavra: pastor. O padre, configurado a Jesus, é chamado a ser pastor do Povo de Deus. Trata-se de assumir os próprios sentimentos de Cristo, para se tornar homem da misericórdia e da compaixão, capaz de caminhar na história do povo, levar a todos a alegria e a consolação do Evangelho, deixar-se ferir pelo clamor de quem sofre no corpo e no espírito, recolher as dúvidas, as esperanças e os desafios que surgem da própria vida diária das pessoas a quem é enviado. Na oração pessoal, na relação íntima com o Senhor, na frequentação da Palavra e na celebração da Eucaristia, o sacerdote é chamado a moldar a sua vida à imagem de Cristo, que Se ofereceu, fez em pedaços e deu aos irmãos. Assim, a contemplação ajuda a pôr Deus no centro e, ao mesmo tempo, impele-nos a ser instrumentos do seu amor para as pessoas que nos confia, a tornar-se ministros que propagam «o gosto de Deus ao seu redor» (Discurso aos sacerdotes do colégio São Luís dos franceses em Roma, 7 de junho de 2021). Durante o Jubileu dos Sacerdotes, o Papa Francisco recordou que «os tesouros insubstituíveis do Coração de Jesus são dois: o Pai e nós. As suas jornadas transcorriam entre a oração ao Pai e o encontro com as pessoas». E disso tirou a consequência de que «também o coração do pastor de Cristo só conhece duas direções: o Senhor e as pessoas» (Homilia da Santa Missa no Jubileu dos sacerdotes, 3 de junho de 2016).

Para ser pastores ao serviço do Povo de Deus, temos, antes de mais nada, de contemplar a fisionomia de Jesus Bom Pastor, tal como no-la dão os Evangelhos. Por outras palavras, é preciso desenvolver aquela atitude interior de acolhimento, hospitalidade e solidariedade para com o outro, que nos faz superar distâncias e difidências e introduz na arte da proximidade. Tal é, de facto, o Bom Pastor descrito no Evangelho de João: conhece as suas ovelhas uma a uma, chama-as pelo nome, caminha com elas, tem compaixão delas (cf. Jo 10, 1-21). E assim o sacerdote é chamado à proximidade, a participar na história concreta do seu povo, a ter um olhar atento, a medir o passo da ação pastoral pelo ritmo dos seus fiéis, porque «muitas vezes é melhor diminuir o ritmo, pôr de parte a ansiedade para olhar nos olhos e escutar, ou renunciar às urgências para acompanhar quem ficou caído à beira do caminho» (Evangelii gaudium, 46). É preciso que a autoridade do guia seja animada e sustentada pela paternidade de quem se dá conta quando alguém cai ou fica para trás. Trata-se de desenvolver uma capacidade de amar e doar-se nas relações humanas e pastorais, a que sereis chamados dia a dia, especialmente a favor de quem vive na pobreza e no sofrimento.

Queridos amigos, é para uma tarefa tão importante e fascinante que vos preparais dia após dia neste tempo especial que é dedicado plenamente à formação. A finalidade do Seminário é precisamente esta: pôr-vos a caminho atrás do Senhor para vos fazer tornar pastores segundo o seu coração. Este é um tempo que vos prepara, com a oração, a formação humana, o estudo e o tirocínio pastoral, para maturar no coração a consciência de que a graça da pertença ao Senhor no ministério ordenado não nos é dada para nos separarmos do mundo, mas para mergulharmos mais profundamente na história do Povo de Deus e ser servidores, arautos e testemunhas do Evangelho. O padre, especialmente num contexto como o atual, muitas vezes indiferente à fé e marcado por tantas situações complexas, é chamado a tornar-se um «bom samaritano» que se faz próximo, levanta quem está caído, caminha ao lado dos pobres, cuida de quem está ferido. O coração de um sacerdote nunca se deve blindar num recinto sagrado, separado da vida, porque é chamado a deixar-se comover pelas necessidades do seu povo. Ao comentar o encontro entre Jesus e Bartimeu, o Papa Francisco afirmou que Jesus «Se deteve perante o clamor de uma pessoa. (...) E, longe de o mandar calar, pergunta: “Que posso fazer por ti?”. Não precisa de se diferenciar, não precisa de se separar, não lhe faz um sermão (...) não existe compaixão que não se detenha. Se não te deténs, se não “padeces com”, não tens a compaixão divina. Não existe uma compaixão que não escute. Não existe uma compaixão que não se solidarize com o outro» (Discurso aos sacerdotes, religiosos e seminaristas, Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, 9 de julho de 2015).

Para ser pastor desta maneira é necessária, além de uma vida espiritual fervorosa, uma formação humana completa. Precisamos de sacerdotes que sejam peritos de humanidade, psicologicamente maduros, afetivamente serenos, capazes de relações saudáveis, de saber exprimir as próprias emoções, de viver um envolvimento autêntico na vida dos irmãos e irmãs. Por isso, o primeiro trabalho a fazer neste tempo, acompanhado pelos formadores, é sobre si mesmo. Trata-se de um verdadeiro e próprio percurso interior que chegue até às próprias raízes, que torne capazes de apreender as luzes e as sombras da própria personalidade, que faça discernir as maturidades e as fragilidades sobre as quais ainda há necessidade de trabalhar, e — deixem-me que o diga — que torne a pessoa, antes de mais nada, honesta consigo mesma. Trata-se de ocupar-se agora das dificuldades e obstáculos da vida psíquica, afetiva e emocional; caso contrário, será tarde! Permanecerão como o pó debaixo do tapete, saindo fora de forma preocupante mais tarde.

«Um bom sacerdote — disse o Santo Padre — é antes de tudo um homem dotado da própria humanidade, que conhece a sua história, com as suas riquezas e as suas feridas, e que aprendeu a fazer as pazes com ela, alcançando a serenidade de fundo, própria do discípulo do Senhor. Portanto, a formação humana é uma necessidade para os presbíteros, a fim de que aprendam a não se deixar dominar pelos seus limites mas, ao contrário, a fazer frutificar os seus talentos. O sacerdote que for um homem pacificado saberá difundir a serenidade ao seu redor, inclusive nos momentos difíceis, transmitindo a beleza da relação com o Senhor. Ao contrário, não é normal que o sacerdote esteja frequentemente triste, nervoso ou tenha uma índole dura; não é bom e não faz bem, nem ao próprio sacerdote, nem ao seu povo» (Discurso no Congresso pelo cinquentenário dos decretos conciliares “Presbyterorum ordinis” e “Optatam totius”, 20 de novembro de 2015). Neste sólido terreno humano, poder-se-á enxertar a espiritualidade sacerdotal, fundada na relação pessoal com o Senhor, na escuta e meditação da Palavra, na celebração dos Sacramentos, num percurso constante e progressivo de configuração a Cristo. Estes dois traços — ser discípulo e pastor — a que se chega através de uma sólida formação humana e espiritual, formam o padre como homem voltado para Deus e para o povo. Ajudam-nos a vencer a tentação do narcisismo clerical e fazem-nos assumir um “estilo sinodal”, porque nos fazem sentir parte do Povo de Deus e impelem-nos a caminhar, junto com os leigos e os religiosos, na corresponsabilidade pela construção do Reino dos céus.

Queridos amigos, como afirmou o Papa Francisco, «o rosto mais bonito de um país e de uma cidade é o dos discípulos do Senhor — bispos, sacerdotes, religiosos, fiéis leigos — que vivem com simplicidade, no dia-a-dia, o estilo do Bom Samaritano e se aproximam da carne e das chagas dos irmãos, nas quais reconhecem a carne e as chagas de Jesus» (Mensagem vídeo aos participantes no encontro dos consagrados da Hungria no Ano da vida consagrada, 18 de setembro de 2015). De coração vos agradeço pelo vosso sim e invoco sobre vós a proteção da Santíssima Virgem, para que sejais discípulos e pastores autênticos e com um coração grande, prontos a embelezar e, se necessário, renovar o rosto da Igreja portuguesa.