Peregrinos do eterno

 Peregrinos do eterno  POR-006
08 fevereiro 2022

«Alegrai-vos e exultai»: é o título de uma exortação apostólica do Papa Francisco acerca do chamamento à santidade no mundo atual. É também assim que Jesus termina as bem-aventuranças no evangelho de São Lucas, convidando os seus discípulos e a multidão que O ouvia a esperar no Céu a verdadeira recompensa divina.

De facto, como afirma São Paulo na primeira epístola aos Coríntios, «se é só para a vida presente que temos posta em Cristo a nossa esperança, somos os mais miseráveis de todos os homens». A proposta evangélica oferecida em Jesus não vive confinada ao mundo presente, mas projeta-se para a bem-aventurança eterna, que move a vontade e alimenta o desejo de plenitude que habita o coração humano. Só deste modo se podem compreender as bem-aventuranças enunciadas por Jesus, que no evangelho de Lucas são mais condensadas (quatro) do que no paralelo de Mateus (oito) e são proferidas em locais diferentes (um sítio plano em São Lucas, um monte em São Mateus). Estes quatro macarismos (nome que advém da palavra grega usada, “makarioi”, que significa “felizes”) sintetizam quatro critérios fundamentais para viver em plenitude a santidade/felicidade a que Deus nos chama.

Em primeiro lugar, Jesus define a pobreza como condição para acolher o reino de Deus. No itinerário lucano, a radicalidade evangélica a que o discípulo de Jesus é chamado exige renúncia e desprendimento. A pobreza espiritual promove a fuga da autossuficiência e autorreferencialidade, ao mesmo tempo que confere uma maior liberdade face aos bens e a tudo aquilo que pode constituir um impedimento para o seguimento mais autêntico de Cristo. O reino de Deus só encontra terreno fértil num coração capaz de aceitar a soberania divina nas decisões e opções fundamentais de vida, e numa vida feita doação e partilha, que faça da solidariedade e do vínculo fraterno com os irmãos o seu modus vivendi e a expressão mais sublime da caridade de Cristo.

Em segundo lugar, não existe verdadeira bem-aventurança sem uma autêntica espiritualidade da fome e da sede. A insaciedade permanente é uma característica do homo viator, peregrino do eterno. O ser humano não deve ter medo de se considerar o “eterno insatisfeito”, se essa insaciedade o move na busca daquilo (ou d’Aquele) que o sacia. Jesus convida-nos a não nos ficarmos por uma espiritualidade demasiado light, que dá a ilusão de nos satisfazer, mas que não tem a capacidade de fazer prolongar, de forma permanente e perene, o sabor sobrenatural da vida. Um verdadeiro discípulo de Cristo não se pode contentar em responder aos seus instintos de sobrevivência espiritual, que muitas vezes se fica pela mediania ou pela mediocridade; pelo contrário, o cristão é aquele que vive dinamicamente a sua vocação à santidade, que ambiciona a perfeição, que não se sacia plenamente senão na comunhão de vida, total e integral, com o Senhor, que encontra nos sacramentos a sua antecâmara mais fiel.

Em terceiro lugar, a santidade não prescinde do choro e das lágrimas de quem não vive indiferente à humanidade e de quem se comove com as suas dores e dramas. O cristão sabe que a vida terrena é passageira e efémera, e que «se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé», como diz São Paulo. Só pode ser santo quem for verdadeiramente humano e assumir esta sua condição de forma profunda. As lágrimas espelham a sensibilidade face à vida dos outros, ao mesmo tempo que nos reconciliam connosco mesmos, na capacidade regeneradora e reconciliadora que exerce em nós. A comoção de Jesus perante o povo, seja na sua dimensão coletiva seja na singularidade de alguns dos seus membros, é um dos traços dominantes do seu ministério. O choro e a comoção surgem frequentemente associados à misericórdia e compaixão, como se constata nas lágrimas de Pedro após a tríplice negação de Pedro, condição fundamental para a sua conversão e recriação a partir do olhar misericordioso de Jesus.

Por fim, em quarto lugar, experimentar a bem-aventurança implica disponibilidade para partilhar o próprio destino (trágico) de Jesus. O discípulo não é superior ao Mestre, pelo que ser santo exige uma configuração Àquele que é o bem-aventurado por excelência (cf. Lc 9, 23; 14, 25-27). O seguimento de Jesus define-se pela categoria do testemunho (martírio), ou seja, pela manifestação visível das obras de Cristo na humanidade dos gestos e palavras do cristão. Esse testemunho não será perfeito enquanto não se traduzir numa configuração total e numa conformação convicta com os valores do evangelho.

Sabemos que esta proposta de Jesus é tudo menos fácil. Porém, a experiência humana e cristã diz-nos que nem sempre felicidade rima com facilidade. A nós cabe-nos acreditar na plausibilidade de tal proposta, sabendo que é «bendito quem confia no Senhor e põe no Senhor a sua esperança».

*Docente de Sagrada Escritura
na Faculdade de Teologia da Universidade católica portuguesa

David Palatino *