Apandemia revelou muito sobre a natureza da liderança — o que funciona e o que não. À sua luz, pudemos distinguir facilmente os líderes motivados a servir e fazer sobressair as melhores qualidades do seu povo, daqueles cujas políticas parecem impelidas só pela ambição do poder. Em certas nações o próprio povo elegeu líderes que, em tempos de crise, fazem emergir o pior, ou revelam o pior de nós.
Por que escolhemos líderes deste tipo?
Após a segunda guerra mundial, esta questão foi examinada por muitos pensadores diferentes, como Erich Fromm no seu livro Escape from Freedom. Fromm refletia: «Fomos forçados a reconhecer que milhões de pessoas na Alemanha estavam tanto ansiosas por renunciar à sua liberdade, quanto os seus pais tinham estado para lutar por ela; que em vez de desejar a liberdade, procuravam formas de escapar dela; que outros milhões de pessoas estavam indiferentes e não acreditavam que valesse a pena lutar e morrer para defender a liberdade».
Mas na realidade são questões antigas, já presentes no livro bíblico dos Juízes através da história de Gedeão.
A Bíblia narra que Gedeão rejeita a proposta do povo de se tornar seu rei, respondendo que o único verdadeiro monarca é Deus (cf. Jz 8, 22-23). O povo queria renunciar à própria liberdade. Disse a Gedeão: «Reina sobre nós, tu e os teus descendentes». Mas Gedeão respondeu: «Não reinarei sobre vós (...); o Senhor reinará sobre vós».
Mais adiante, lemos sobre a ambição insaciável de Abimeleque, filho de Gedeão, que matou setenta dos seus meios-irmãos para obter poder. Depois, encontramos a parábola de Jotham (cf. Jz 9, 8-15), que ensina que as pessoas produtivas e frutuosas não aspiram ao poder, deixando um vazio que os líderes destruidores tendem a preencher.
Estas passagens bíblicas ilustram todo o espetro da liderança, da grandeza daqueles que lideram no serviço para o bem do próximo, àqueles que são contaminados pelo que na Grécia antiga era conhecido como hybris: autoconfiança arrogante e autolatria. Conhecemos demasiados líderes deste tipo, especialmente em tempos recentes.
Pode a crise atual, com toda a sua força devastadora que resulta em tantas vidas destruídas e comunidades feridas, servir para eliminar o egoísmo, o egocentrismo e o egotismo da mente e do coração dos nossos líderes? É possível que ressurja uma nova liderança de serviço, quando sairmos completamente desta impetuosa tempestade?
O século xx assistiu à ascensão de demasiados maus líderes. Egoístas. Arrogantes. Loucos? Figuras como Mussolini, Hitler, Stalin, Pol Pot e Idi Amin sabiam atrair uma grande parte do próprio povo para os seguir, inspirando os piores instintos e causando caos e devastação. Consideravam-se frequentemente novos césares, destinados a conquistar o mundo e a criar novos impérios. Os impérios romano, carolíngio e napoleónico serviram-lhes de modelo e ideal.
Agora, no século xxi , há novos canais de dominação. Por exemplo, existem multinacionais que possuem um poder económico muito maior do que muitas nações ou até grupos de nações. O seu poder assusta como outrora o fazia um regime fascista. Os vastos impérios atuais são frequentemente construídos com base na supremacia tecnológica, não na conquista militar. Do mesmo modo, as guerras tornaram-se tecnológicas, atingindo um elevado grau de sofisticação, e quem as vence são aqueles que possuem o que falta aos outros. Fome, miséria e fanatismo continuam a multiplicar-se no meio desta nova realidade, onde o conhecimento acumulado de que agora dispomos para combater todos os nossos males nem sempre é utilizado para o bem de todos.
É necessária uma pandemia para levar os líderes mundiais a voltar o coração para o serviço do seu povo, e não para a dominação? Começaremos a considerar novamente nossa responsabilidade cuidar dos povos de todas as nações, não apenas de nós próprios? Espero que voltemos a apreciar a liberdade e a eleger líderes que procurem desatar os nós de todas as pessoas, com todos os meios à sua disposição. Pergunto-me também se agora finalmente veremos o problema ainda maior, relativo à nossa atitude dominadora: a necessidade de cuidar do planeta que todos nós partilhamos. Os nossos problemas são muito maiores do que um só país pode fazer.
Os rabinos do Talmude conheciam os avanços e recuos que existem em cada coração humano, entre o próprio interesse e o interesse da comunidade em geral. Diziam: «Se eu não lutar por mim, quem o fará? E se eu lutar só por mim, o que serei? E se não for agora, quando será?».
Isto reflete mais uma vez as duas verdades de Maimonides. Podemos cuidar de nós próprios e também dos outros. Com efeito, cuidamos de nós mesmos, cuidando dos outros.
Espero que este novo vírus apavore os nossos líderes, levando-os a abandonar o próprio interesse. E se deixássemos de eleger líderes que apelam aos nossos interesses mais egoístas! Possa esta crise ajudar-nos a olhar para um novo tipo de líder, um líder que possua aptidões que reflitam as nossas melhores qualidades.
Abraham Skorka