Discurso à Cúria romana para os bons votos de Natal

 Discurso à Cúria romana para os bons votos de Natal  POR-052
28 dezembro 2021

Participação, missão e comunhão: são as palavras-chave para um estilo sinodal da Igreja recomendadas pelo Papa Francisco à Cúria romana durante a anual audiência para os bons votos de Natal, realizada a 23 de dezembro, na Sala da Bênção.

Queridos irmãos e irmãs
bom dia!

C

omo acontece cada ano, temos hoje ocasião de nos encontrar alguns dias antes da festa do Natal; é um modo de expressar “em voz alta” a nossa fraternidade através da troca recíproca das boas festas natalícias, mas é também um momento de reflexão e exame de consciência para cada um de nós, a fim de que a luz do Verbo encarnado nos mostre cada vez melhor quem somos e qual é a nossa missão.

Como todos sabemos, o mistério do Natal é o mistério de Deus que vem ao mundo pelo caminho da humildade. Encarnou: aquela grande synkatabasis! Infelizmente o nosso tempo parece ter-se esquecido da humildade ou simplesmente tê-la limitado a uma forma de moralismo, esvaziando-a da força incisiva de que é dotada.

Mas, se tivéssemos de expressar todo o mistério do Natal numa palavra, creio que o termo que mais nos poderia ajudar é humildade. Os Evangelhos falam-nos de um cenário pobre, sóbrio, impróprio para acolher uma mulher que está para dar à luz. E, contudo, o Rei dos reis vem ao mundo, não dando nas vistas, mas suscitando uma atração misteriosa nos corações de quantos sentem a presença incisiva de uma novidade que está prestes a mudar a história. Por isso apraz-me pensar e também dizer que a humildade foi a sua porta de entrada e convida-nos, a todos nós, a atravessá-la. Vem-me ao pensamento esta frase dos Exercícios: não se pode avançar sem humildade, nem se pode avançar na humildade sem humilhações. E Santo Inácio diz-nos para pedir humilhações.

Não é fácil compreender o que seja a humildade. Esta resulta de uma mudança que o próprio Espírito realiza em nós através da história que vivemos, como acontece, por exemplo, ao sírio Naaman (cf. 2 Rs 5). Gozava de grande fama, no tempo do profeta Eliseu. Era um general valoroso do exército arameu, que demonstrara o seu valor e coragem em várias ocasiões. Mas por trás da fama, da força, da estima, das honras, da glória, este homem vive um drama terrível: é leproso. A sua armadura, a mesma que lhe proporciona fama, na realidade cobre uma humanidade frágil, ferida, doente. Esta contradição, encontramo-la frequentemente na nossa vida: às vezes, os grandes dons constituem a armadura para encobrir grandes fragilidades.

Naaman compreende uma verdade fundamental: não se pode passar a vida escondendo-se atrás de uma armadura, de uma função, de uma consideração social. No fim, magoa. Na história de cada um, chega o momento em que se tem o desejo de não viver mais atrás da capa da glória deste mundo, mas na plenitude de uma vida sincera, sem precisar mais de armaduras nem de máscaras. Este desejo impele o valoroso general Naaman a sair à procura de alguém que o possa ajudar; e fá-lo partindo da sugestão de uma escrava, uma judia prisioneira de guerra, que fala de um Deus capaz de curar tais contradições.

Munido de prata e ouro, Naaman põe-se a caminho e chega assim à porta do profeta Eliseu. Este pede a Naaman, como única condição para a sua cura, o gesto simples de se despir e banhar sete vezes no rio Jordão. Nada conta a fama, nada contam as honras, o ouro e a prata! A graça que salva é gratuita, não se pode reduzir ao preço das coisas deste mundo.

Naaman recebe com relutância tal pedido; parece-lhe banal, simples demais, demasiado terra a terra. Parece que, na sua imaginação, não havia lugar para a força da simplicidade. Mas as palavras dos seus servos fazem-no mudar de opinião: «Mesmo que o profeta te tivesse mandado uma coisa difícil, não a deverias fazer? Quanto mais agora, ao dizer-te: “Lava-te e ficarás curado?”» (2 Rs 5, 13). Naaman rende-se… E, com um gesto de humildade, “desce”, tira a sua armadura, mergulha nas águas do Jordão «e a sua carne tornou-se como a de uma criança e ficou limpo» (2 Rs 5, 14). Grande lição aqui temos! A humildade de expor a própria humanidade, segundo a palavra do Senhor, obtém a Naaman a cura.

A história de Naaman lembra-nos que o Natal é um tempo em que cada um de nós deve ter a coragem de tirar a própria armadura, desfazer-se das importâncias do cargo, da consideração social, do brilho da glória deste mundo, e assumir a sua própria humildade. Podemos fazê-lo a partir de um exemplo mais forte, mais convincente, de maior autoridade: o do Filho de Deus, que não se recusa à humildade de “descer” à história fazendo-se homem, tornando-se menino, frágil, envolto em panos e deitado numa manjedoura (cf. Lc 2, 7). Despojados das nossas roupas, das nossas prerrogativas, funções, títulos, todos, todos nós, somos leprosos que precisam de ser curados. O Natal é a memória viva desta certeza e ajuda-nos a compreendê-la mais profundamente.

Queridos irmãos e irmãs, se esquecermos a nossa humanidade, vivemos apenas das honras das nossas armaduras, mas Jesus lembra-nos uma verdade incómoda e desafiadora: «Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida?» (Mc 8, 36).

Esta é a tentação perigosa — já a lembrei outras vezes — do mundanismo espiritual, que, ao contrário de todas as outras tentações, é difícil de desmascarar, porque está encoberta por tudo aquilo que normalmente nos tranquiliza: a nossa função, a liturgia, a doutrina, a religiosidade. Como escrevi na Evangelii gaudium, «neste contexto, alimenta-se a vanglória de quantos se contentam com ter algum poder e preferem ser generais de exércitos derrotados antes que simples soldados de um batalhão que continua a lutar. Quantas vezes sonhamos planos apostólicos expansionistas, meticulosos e bem traçados, típicos de generais derrotados! Assim negamos a nossa história de Igreja, que é gloriosa por ser história de sacrifícios, de esperança, de luta diária, de vida gasta no serviço, de constância no trabalho fadigoso, porque todo o trabalho é “suor do nosso rosto”. Em vez disso, entretemo-nos vaidosos a falar sobre “o que se deveria fazer” — o pecado do “deveriaquismo” — como mestres espirituais e peritos de pastoral que dão instruções ficando de fora. Cultivamos a nossa imaginação sem limites e perdemos o contacto com a dolorosa realidade do nosso povo fiel» (n. 96).

A humildade é a capacidade de saber habitar — sem desespero, com realismo, alegria e esperança — a nossa humanidade, esta humanidade amada e abençoada pelo Senhor. A humildade é compreender que não devemos envergonhar-nos da nossa fragilidade. Jesus ensina-nos a ver a nossa miséria, com o mesmo amor e ternura com que se olha uma criança pequena, frágil, necessitada de tudo. Sem humildade, buscaremos garantias e talvez as encontremos, mas certamente não encontraremos o que nos salva, o que nos pode curar. As garantias são o fruto mais perverso do mundanismo espiritual, que revela a falta de fé, esperança e caridade, e deixam a pessoa incapaz de saber discernir a verdade das coisas. Se Naaman tivesse continuado apenas a acumular medalhas para dependurar na sua armadura, acabaria por ser consumido pela lepra: aparentemente vivo, sim, mas fechado e isolado na sua doença. Mas não, procura corajosamente o que pode salvá-lo, e não o que o gratifica imediatamente.

Todos sabemos que o contrário da humildade é a soberba. Um versículo do profeta Malaquias (que muito em impressionou) ajuda-nos, por contraste, a compreender a diferença que há entre o caminho da humildade e o da soberba: «Todos os soberbos e todos os que cometem a iniquidade serão como a palha; este dia que vai chegar queimá-los-á — diz o Senhor do universo — e nada ficará deles: nem raiz, nem ramos» (3, 19).

O profeta usa uma imagem sugestiva que descreve bem a soberba: esta — afirma ele — é como palha. Quando vem o fogo, a palha transforma-se em cinza, é queimada, desaparece. E acerca da pessoa que se deixa levar pela soberba afirma que se encontra privada do que temos de mais importante: as raízes e os ramos. As raízes falam da nossa ligação vital com o passado, donde recebemos a seiva para poder viver no presente. Por sua vez os ramos são o presente que não morre, mas torna-se amanhã, torna-se futuro. A permanência num presente que já não tem raízes nem ramos, significa viver o fim. Assim o soberbo, encerrado no seu pequeno mundo, já não tem passado nem futuro, já não tem raízes nem ramos e vive com o sabor amargo da tristeza estéril que se apodera do coração como «o mais precioso elixir do demónio».1 Ao contrário, o humilde deixa-se guiar constantemente por dois verbos: recordar — as raízes — e gerar, fruto das raízes e dos ramos, vivendo assim a jubilosa abertura da fecundidade.

Recordar significa, etimologicamente, “trazer de novo ao coração”, re-cordar. A memória viva que temos da Tradição, das raízes, não é culto do passado, mas gesto interior por meio do qual trazemos constantemente ao coração aquilo que nos precedeu, que atravessou a nossa história, que nos fez chegar até aqui. Recordar não é repetir, mas arrecadar, reavivar e, agradecidos, deixar que a força do Espírito Santo nos faça, como aos primeiros discípulos, arder o coração (cf. Lc 24, 32). Mas, para que o recordar não se torne uma prisão do passado, precisamos de outro verbo: gerar. O humilde — o homem humilde, a mulher humilde — tem a peito também o futuro, e não só o passado, porque sabe olhar para diante, sabe contemplar os ramos com a memória repleta de gratidão. O humilde gera, convida e impele para o que não se conhece; ao passo que o soberbo repete, torna-se rígido — a rigidez é uma perversão; é uma perversão atual — e fecha-se na sua repetição, sente-se seguro daquilo que conhece e teme o novo porque não pode controlá-lo, sente-se desestabilizado... porque perdeu a memória.

O humilde aceita ser posto em questão, abre-se ao novo; e fá-lo porque se sente forte com aquilo que o precede, com as suas raízes, a sua filiação. O seu presente é habitado por um passado, que o abre para o futuro com esperança. Diversamente do orgulhoso, sabe que nem os seus méritos nem os seus “bons costumes” são o princípio e o fundamento da sua existência; por isso é capaz de ter confiança. O soberbo não a tem.

Todos nós somos chamados à humildade, porque somos chamados a recordar e a gerar, somos chamados a reencontrar a justa relação com as raízes e com os ramos. Sem eles, deterioramo-nos e estamos destinados a desaparecer.

Vindo ao mundo pela via da humildade, Jesus abre-nos um caminho, indica-nos um estilo de vida, mostra-nos uma meta.

Queridos irmãos e irmãs, se é verdade que, sem humildade, não se pode encontrar Deus nem é possível fazer experiência de salvação, é igualmente verdade que, sem humildade, não se pode sequer encontrar o próximo, o irmão e a irmã que vivem ao nosso lado.

No passado dia 17 de outubro, demos início ao percurso sinodal que nos ocupará nos próximos dois anos. Também neste caso, só a humildade é capaz de nos colocar na justa condição para nos podermos encontrar e ouvir, para dialogar e discernir, para rezar juntos, como indicava o Cardeal Decano. Se cada um permanece fechado nas próprias convicções, na própria experiência, na carapaça apenas do seu sentir e pensar, é difícil dar espaço àquela experiência do Espírito que — como diz o Apóstolo — está ligada à convicção de sermos filhos de «um só Deus e Pai de todos, que reina sobre todos, age por todos e permanece em todos» (Ef 4, 6).

“Todos” não é palavra que se preste a equívocos. O clericalismo, cuja tentação — perversa — se insinua diariamente entre nós, sempre nos faz pensar num Deus que fala apenas a alguns, enquanto os outros devem apenas escutar e cumprir. O Sínodo procura ser a experiência de nos sentirmos, todos, membros de um conjunto maior — o Santo Povo fiel de Deus — e, por conseguinte, discípulos que escutam e, precisamente em virtude desta escuta, podem também compreender a vontade de Deus, que sempre se manifesta de maneira imprevisível. Mas seria errado pensar que o Sínodo fosse um acontecimento reservado à Igreja como entidade abstrata, distante de nós. A sinodalidade é um estilo, ao qual, os primeiros a converter-se, devemos ser nós que estamos aqui e vivemos a experiência do serviço à Igreja universal através do trabalho na Cúria romana.

E a Cúria — nunca o esqueçamos! — não é apenas um instrumento logístico e burocrático para as necessidades da Igreja universal, mas é o primeiro organismo chamado a dar testemunho; e por isso mesmo, na medida em que assume pessoalmente os desafios da conversão sinodal a que é chamada também ela, cresce a sua credibilidade e eficácia. A organização que devemos implementar não é de tipo empresarial, mas evangélico.

Assim, se a Palavra de Deus recorda ao mundo inteiro o valor da pobreza, nós, membros da Cúria, devemos ser os primeiros a comprometer-nos numa conversão à sobriedade. Se o Evangelho anuncia a justiça, nós devemos ser os primeiros a procurar viver com transparência, sem favoritismos nem partidarismos. Se a Igreja percorre o caminho da sinodalidade, nós devemos ser os primeiros a converter-nos a um estilo diferente de trabalho, colaboração, comunhão. E isto só é possível pelo caminho da humildade. Sem humildade, não o poderemos fazer.

Durante a abertura da assembleia sinodal, usei três palavras-chave: participação, comunhão e missão. E todas nascem de um coração humilde: sem humildade não se pode efetuar participação, nem comunhão, nem missão. Estas são as três exigências que gostaria de indicar como estilo de humildade a atingir aqui na Cúria. Três disposições para se colocar concretamente em prática o caminho da humildade.

Em primeiro lugar, a participação. Esta deveria expressar-se através de um estilo de corresponsabilidade. Com certeza que, na diversidade de funções e ministérios, as responsabilidades são diferentes, mas seria importante que cada um se sentisse envolvido, corresponsável no trabalho sem se limitar a viver a experiência despersonalizante da execução de um programa estabelecido por outrem. Fico sempre impressionado quando encontro na Cúria a criatividade — dá-me tanto prazer — e, não raro, esta manifesta-se sobretudo onde há e se encontra espaço para todos, mesmo para quem parece, hierarquicamente, ocupar um lugar marginal. Agradeço estes exemplos — encontro-os e me comprazo neles — e encorajo-vos a trabalhar para sermos capazes de gerar dinâmicas concretas onde todos sintam ter uma participação ativa na missão que devem desempenhar. A autoridade torna-se serviço, quando compartilha, envolve e ajuda a crescer.

A segunda palavra é comunhão. Esta não se expressa com maiorias ou minorias, mas nasce essencialmente da relação com Cristo. Jamais teremos um estilo evangélico nos nossos ambientes, se não colocarmos Cristo no centro; e não este partido ou aquele, esta opinião ou aqueloutra, mas Cristo no centro. Muitos de nós trabalham juntos, mas o que fortalece a comunhão é poder também rezar juntos, escutar juntos a Palavra, construir relações que vão além do simples trabalho e reforçar os laços bons — os laços bons entre nós — ajudando-nos uns aos outros. Sem isto, corremos o risco de ser apenas estranhos que colaboram, concorrentes que procuram a melhor posição ou, pior ainda, as relações que se criam parecem assentar na cumplicidade ditada por interesses pessoais, esquecendo-se da causa comum que nos mantém unidos. A cumplicidade cria divisões, cria fações, cria inimigos; a colaboração exige a grandeza de se aceitar como parcela e abrir-se ao trabalho em grupo, mesmo com quem não pensa como nós. Na cumplicidade, está-se junto para obter um resultado externo. Na colaboração, está-se junto porque se tem a peito o bem do outro e consequentemente de todo o Povo de Deus, a quem somos chamados a servir: não esqueçamos o rosto concreto das pessoas, não esqueçamos as nossas raízes, o rosto concreto daqueles que foram os nossos primeiros mestres na fé. Paulo dizia a Timóteo: “Recorda-te da tua mãe, recorda-te da tua avó”.

A perspetiva da comunhão implica, ao mesmo tempo, reconhecer a diversidade que nos habita como dom do Espírito Santo. Sempre que nos afastamos deste caminho e vivemos como sendo sinónimos comunhão e uniformidade, debilitamos e emudecemos a força vivificante do Espírito Santo no meio de nós. A atitude de serviço pede-nos — apetece-me dizer exige-nos — a magnanimidade e a generosidade para reconhecer e viver com alegria a multiforme riqueza do Povo de Deus; e isto, sem humildade, não é possível. Faz-me bem reler o início da Lumen gentium, aqueles números 8, 12...: o santo povo fiel de Deus; retomar estas verdades é como oxigénio para a alma.

A terceira palavra é missão. Esta salva-nos de nos fecharmos em nós mesmos. Quem se fecha em si mesmo, «olha de cima e de longe, rejeita a profecia dos irmãos, desqualifica quem o questiona, faz ressaltar constantemente os erros alheios e vive obcecado pela aparência. Circunscreveu os pontos de referência do coração ao horizonte fechado da sua imanência e dos seus interesses e, consequentemente, não aprende com os seus pecados nem está verdadeiramente aberto ao perdão. Estes são os dois sinais de uma pessoa “fechada”: não aprende com os próprios pecados, nem está aberta ao perdão. É uma tremenda corrupção, com aparências de bem. Devemos evitá-lo, pondo a Igreja em movimento de saída de si mesma, de missão centrada em Jesus Cristo, de entrega aos pobres» (Evangelii gaudium, 97). Só um coração aberto à missão torna possível que tudo o que fazemos ad intra e ad extra esteja sempre marcado pela força regeneradora da chamada do Senhor. E a missão inclui sempre a paixão pelos pobres, isto é, pelos “carentes”: aqueles que “carecem” de qualquer coisa em termos não só materiais, mas também espirituais, afetivos, morais. Quem tem fome de pão e quem tem fome de sentido [para viver] são igualmente pobres. A Igreja é convidada a ir ao encontro de todas as pobrezas, sendo chamada a pregar o Evangelho a todos, porque todos nós, de uma forma ou de outra, somos pobres, somos carentes. Mas também a Igreja vai ao seu encontro, porque se sente carecida deles: falta-nos a sua voz, a sua presença, as suas questões e disputas. A pessoa com coração missionário sente que lhe falta o seu irmão e, com a atitude do mendigo, vai encontrá-lo. A missão torna-nos vulneráveis — é bom a missão tornar-nos vulneráveis — ajuda-nos a recordar a nossa condição de discípulos e permite-nos descobrir sempre de novo a alegria do Evangelho.

Participação, missão e comunhão são os traços de uma Igreja humilde, que se coloca à escuta do Espírito e mantém o próprio centro fora de si mesma. Henri de Lubac deixou escrito: «Aos olhos do mundo a Igreja, à semelhança do seu Senhor, tem sempre o aspeto da escrava. Aqui na terra existe sob a forma de serva. (...) Não é uma academia de cientistas, nem um cenáculo de espirituais refinados, nem uma assembleia de super-homens. Antes, é exatamente o contrário. Aglomeram-se os aleijados, os deformados, os miseráveis de toda a espécie; sobrepõem-se os medíocres (...); ao homem natural, enquanto não acontecer nele uma transformação radical, é difícil, ou melhor impossível, reconhecer neste facto o cumprimento da kenose salvífica, o traço adorável da humildade de Deus» (Meditações sobre a Igreja, 352).

Para concluir, gostaria de desejar a vós e, primeiro, a mim mesmo a graça de nos deixarmos evangelizar pela humildade, pela humildade do Natal, pela humildade do presépio, da pobreza e essencialidade em que o Filho de Deus entrou no mundo. Até mesmo os Magos — que podemos, sem dúvida, imaginar vindos de uma condição mais abastada do que a de Maria e José ou dos pastores de Belém — quando se encontram diante do Menino, prostram-se (cf. Mt 2, 11). Prostram-se: não é apenas um gesto de adoração; é um gesto de humildade. Os Magos colocam-se à altura de Deus, prostrando-se na terra nua. E esta kenose, esta descida, esta synkatabasis é a mesma que Jesus efetuará na última noite da sua vida terrena, quando «Se levantou da mesa, tirou o manto, tomou uma toalha e atou-a à cintura. Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que atara à cintura» (Jo 13, 4-5). A perplexidade suscitada por tal gesto provoca a reação de Pedro, mas, no fim, o próprio Jesus dá aos seus discípulos a chave de justa interpretação: «Vós chamais-me “o Mestre” e “o Senhor”, e dizeis bem, porque o sou. Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também» (Jo 13, 13-15).

Queridos irmãos e irmãs, lembrando-nos da nossa lepra, evitando as lógicas do mundanismo que nos privam de raízes e ramos, deixemo-nos evangelizar pela humildade do Menino Jesus. Só servindo e só concebendo o nosso trabalho como serviço é que podemos ser verdadeiramente úteis a todos. Estamos aqui — a começar por mim — para aprender a ajoelhar e adorar o Senhor na sua humildade, e não outros senhores na sua vã opulência. Sejamos como os pastores, sejamos como os Magos, sejamos como Jesus. Eis a lição do Natal: a humildade é a grande condição da fé, da vida espiritual, da santidade. Que o Senhor no-la conceda em dom a partir da primordial manifestação do Espírito em nós: o desejo. Aquilo que não temos, podemos ao menos começar a desejá-lo. Peçamos ao Senhor a graça de conseguir desejar, de nos tornarmos homens e mulheres de grandes desejos. E o desejo é já o Espírito a trabalhar dentro de cada um de nós.

Feliz Natal a todos! E peço-vos para rezardes por mim.

Obrigado!

Como lembrança deste Natal, gostaria de vos deixar alguns livros... mas para se lerem, e não para os deixar na biblioteca para os nossos parentes que hão de receber a herança! Primeiro, o livro de um grande teólogo, desconhecido porque demasiado humilde, um Subsecretário da Doutrina da Fé, Mons. Armando Matteo, que se debruça um pouco sobre um fenómeno social e como provoca a ação pastoral. Intitula-se Converter Peter Pan. Sobre o destino da fé nesta sociedade da eterna juventude. É provocatório; faz-nos bem. O segundo é um livro sobre personagens secundárias ou esquecidas da Bíblia, do padre Luigi Maria Epicoco: A pedra descartada, e como subtítulo Quando os esquecidos se salvam. É lindo. Serve para a meditação, para a oração. Foi ao lê-lo que me veio ao pensamento a história do sírio Naaman, de que falei. E o terceiro é de um Núncio Apostólico, Mons. Fortunatus Nwachukwu, que vós bem conheceis. Fez uma reflexão sobre a coscuvilhice; gosto de como a retratou: a coscuvilhice faz com que se “derreta”, se dissolva a identidade. Deixo-vos estes três livros, esperando que nos ajudem a todos nós a seguir em frente. Obrigado! Obrigado pelo vosso trabalho e a vossa colaboração. Obrigado!

E peçamos à Mãe da humildade que nos ensine a ser humildes: “Ave Maria...”.

[Bênção].

1 G. Bernanos, Journal d’un curé de campagne, Paris 1974, 135.