O Pontífice no trigésimo aniversário do Fórum internacional da Ação católica

Fraternidade e amizade social para reconstruir um mundo ferido

14 dezembro 2021

O Fórum internacional da Ação católica (Fiac) «sinta muito profundamente a urgência de trabalhar a favor da fraternidade e da amizade social como meios de reconstrução de um mundo ferido», escreveu o Papa Francisco na carta pelos 30 anos da associação. Em particular, o Pontífice recordou o testemunho do cardeal Eduardo Francisco Pironio, «um sonhador profundo que deu início e impulso à criação deste Fórum». O Papa pediu à Ação católica para estar presente, e para desempenhar a missão de evangelização, «onde passam a vida e a história dos nossos povos». Eis o texto da carta de Francisco divulgada a 26 de novembro na abertura do evento comemorativo de dois dias que teve lugar online na Domus Mariae de Roma.

Cidade do Vaticano,
9 de novembro de 2021

Estimados irmãos!

Esta celebração, que olha para um momento fundacional, faz-nos inevitavelmente olhar para o passado em grata contemplação. Neste olhar retrospetivo, encontramos sonhadores que ousaram olhar para a frente com esperança. Por isso hoje estais aqui.

Neste olhar não podemos esquecer um sonhador profundo que deu início e impulso à criação deste fórum; e que hoje se regozija ao ver-vos celebrar estes 30 anos: o cardeal Eduardo Pironio; aquele que, com um amor muito grande pela Ação Católica e plena confiança na sua missão, disse: «No caminho da Ação Católica houve luzes e sombras, momentos de desorientação e fadiga, receio de que possa ter sido superada por tempos novos e pelas exigências eclesiais. Creio que chegou o momento providencial do Espírito para uma renovação mais profunda do seu compromisso espiritual, doutrinal, apostólico e missionário. Para isto contribuirá certamente a celebração deste Fórum, que visa abrir a outros países a fecundidade de uma experiência associativa muito rica em frutos e tão cheia de esperanças».

O cardeal Pironio foi um homem com raízes profundas, com a memória ancorada no dinamismo da história como um Kairós, um tempo forte de salvação, tempo de trabalho, provação, purificação e esperança. Amou a Ação Católica e acreditou na sua vocação laical missionária. A Igreja pode testemunhar que a Ação Católica abriu novas perspetivas no campo da responsabilidade do leigo na Evangelização. Muitos evangelizados e formados pela Ação Católica levaram verdade, profundidade e Evangelho a âmbitos civis, muitas vezes proibidos à fé. Os santos e beatos leigos da Ação Católica são uma riqueza para a Igreja. Aqueles que foram “os santos da porta ao lado” de tantas comunidades.

Mas a história não é linear: no caminho da Ação Católica, como no da própria Igreja, houve, há e haverá luzes e sombras, momentos de profunda desorientação, de fadiga, de indiferença, de receio de ter sido superado pelas exigências dos novos tempos. A grande tentação nos momentos de crise ou dificuldade é fechar-se para cuidar do pouco que se tem, esperando, escondidos e acarinhando recordações, a chegada de tempos melhores. A parábola dos talentos é um reflexo fiel do que acontece quando esta tentação se instala e se transforma num modo de ser, de estar no mundo, vivendo a realidade de uma irrealidade.

Para não sucumbirmos à tentação, para não esquecermos quem somos e para onde vamos: torna-se essencial para nós lembrar-nos repetidamente — como fazia o povo de Deus no deserto com a promessa que o próprio Javé lhes fizera — de onde viemos, qual é a nossa origem, conhecer o coração da mãe que um dia nos deu à luz.

E a Ação Católica tem a sua origem no seio da própria Igreja católica. Não tem fundador nem carisma particularíssimo. O seu objetivo é o mesmo da própria Igreja: a evangelização. Não assume como seu um ou outro campo de apostolado particular, mas a finalidade da Igreja: o anúncio do Evangelho a todos os homens e a todos os âmbitos. Portanto, o “carisma próprio” é não ter algo próprio, mas oferecer disponibilidade a todas as necessidades da Igreja em todos os lugares. Como Igreja, experimentamos que, com o poder do Espírito, devemos dar uma resposta aqui e agora aos clamores do mundo. Para os ouvirmos, devemos sair, ser Igreja em saída, que se aproxima como o samaritano a cada homem e mulher que sofre na própria carne e no seu espírito a dor deste tempo.

Atravessamos ainda a primeira pandemia global na história da humanidade, que atingiu indiscriminadamente todos os países do nosso mundo. Com a pandemia, tornou-se evidente o estado de vulnerabilidade sofrido por centenas de milhões de homens e mulheres no nosso planeta, que não têm possibilidade de ter possibilidade. A vulnerabilidade colocou-nos em risco de morrer sem qualquer tipo de previsão e independentemente de onde vivemos, da condição moral, crença religiosa ou posição socioeconómica. Toda a humanidade foi atingida do mesmo modo. A vulnerabilidade conseguiu superar tudo o que nos dividia e nos tornava desiguais. Descobrimo-nos iguais na necessidade, embora diferentes nas possibilidades.

Como eu disse no início da pandemia: a tempestade «deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade.  A tempestade põe a descoberto todos os propósitos de “empacotar” e esquecer o que alimentou a alma dos nossos povos; todas as tentativas de anestesiar com hábitos aparentemente “salvadores”, incapazes de fazer apelo às nossas raízes e evocar a memória dos nossos idosos, privando-nos assim da imunidade necessária para enfrentar as adversidades». Todos nós, inclusive eu, sentimos esta experiência de impotência.

Pertencemos a uma época fortemente marcada pela globalização; globalização económica, cultural, etc., com os seus sucessos, mas também com as estruturas de pecado que dela emergiram. Tudo é global, até o vírus se tornou global!

Vós, enquanto Fórum, tendes uma missão global precisamente quando se celebram os vossos primeiros trinta anos; celebrá-los é um desafio e um convite. Desafio para descobrir cada vez mais, e de maneira sempre mais forte, por onde passam a vida e a história dos nossos povos, sem preconceitos, sem receios, sem classificações e sem nos sentirmos reguladores da fé de ninguém. Convido a estar ali, onde estão os vossos interesses, as vossas preocupações, as vossas feridas mais profundas e as vossas maiores angústias. Sabemos que não há pobreza maior do que não ter Deus, isto é, viver sem a fé que dá sentido à vida, sem a esperança que nos dê força para trabalhar, sem nos sentirmos amados por alguém que não desilude. Este é o lugar e o povo onde a Ação Católica deve cumprir a sua missão.

Perante a globalização da indiferença, deveis sentir que o trabalho de construir pontes e criar comunhão é a chamada profunda que Deus vos faz. A Igreja é Comunhão para a missão. A Comunhão não é uma ideia, é uma realização, e a missão não é uma atividade entre muitas, é a essência da vida eclesial. Isto pressupõe para a Ação Católica comunhão com a pastoral diocesana e com os seus pastores, uma formação que se experimente em chave missionária. A Ação Católica não deve formar para o cristão futuro, mas deve e precisa de acompanhar o processo de fé do cristão atual, de acordo com as caraterísticas próprias da fase da vida em que se encontra.

A comunhão não é acomodar-se, mas a certeza da presença do Senhor para a missão. Evangelizar deve ser a paixão de cada batizado, de cada membro da Ação Católica, viver em constante saída para poder permanecer fiel à nossa identidade. «A Ação Católica deve descobrir de novo a paixão pelo anúncio do Evangelho, única salvação num mundo desesperado sem Ele» (Paulo vi ). A Ação Católica precisa de criar espaços de presença, de testemunho, de evangelização missionária. Ao fazê-lo, vive a missão da Igreja, que é: ser serva da humanidade inserida na Igreja de Cristo, que se realiza na nossa diocese e na nossa paróquia, em perfeita comunhão com a Igreja universal.

Dou graças a Deus por todo o trabalho que realizastes nestes trinta anos, que sem dúvida exigiu muito esforço. Sobretudo nos primeiros tempos, quando a tecnologia não vos permitia chegar com tanta facilidade aos diversos lugares do mundo e tudo precisava de ser “feito com sacrifício”. Agradeço-vos por todas as iniciativas solidárias e de acompanhamento das dioceses mais periféricas, especialmente as do terceiro mundo onde estou consciente de que a presença da Ação Católica é fortemente missionária e apoia o trabalho das Igrejas locais.

Antes de concluir, gostaria de vos pedir três coisas:

— Que o Fórum sinta muito profundamente a urgência de trabalhar em prol da fraternidade e da amizade social como meios de reconstrução de um mundo ferido.

— Que semeeis nos corações de todos a ideia de que a autêntica espiritualidade cristã é aquela que afunda no desejo de santidade e este é um caminho que parte das bem-aventuranças e se realiza a partir de Mateus 25; amando e trabalhando pelos nossos irmãos que mais sofrem.

— Que o espírito que anima todos os vossos projetos e obras seja o de uma Igreja em saída que vive a doce e reconfortante alegria de evangelizar; e que isto seja evidente.

Obrigado por tudo o que fazeis e por tudo o que fareis. Não vos esqueçais de rezar por mim. Que Jesus vos abençoe e que a Santa Virgem vos ampare.

Francisco