Prefácio do Papa Francisco a um volume sobre o seu magistério social

Do Concílio Vaticano ii a luz da fraternidade

 Do Concílio Vaticano  ii   a luz da fraternidade  POR-043
26 outubro 2021

O

coração do Evangelho é o anúncio do Reino de Deus, que é Jesus em pessoa, o Emanuel e Deus connosco. Efetivamente, nele Deus cumpre de modo definitivo o seu desígnio de amor pela humanidade, estabelecendo o seu senhorio sobre as criaturas e introduzindo na história humana a semente da vida divina, que a transforma a partir de dentro.

Sem dúvida, o Reino de Deus não deve ser identificado nem confundido com qualquer realização terrena e política; contudo, também não deve ser imaginado como uma realidade puramente interior, pessoal e espiritual, nem como uma promessa que diz respeito unicamente ao além. Na realidade, a fé cristã vive deste fascinante e cativante “paradoxo”, um termo muito apreciado pelo teólogo jesuíta Henri de Lubac: é o que Jesus, unido para sempre à nossa carne, alcança já aqui e agora, abrindo-nos a uma relação com Deus Pai e realizando uma libertação contínua na vida e na história que vivemos, pois n’Ele o Reino de Deus já se tornou próximo (cf. Mc 1, 12-15); ao mesmo tempo, enquanto ainda estamos nesta carne, o Reino permanece também uma promessa, um profundo anseio que trazemos dentro de nós, um clamor que se eleva da criação ainda marcada pelo mal, que geme e sofre até ao dia da sua plena libertação (cf. Rm 8, 19-24).

Portanto, o Reino anunciado por Jesus é uma realidade viva e dinâmica, que nos convida à conversão e pede à nossa fé que abandone a estaticidade de uma religiosidade individual ou reduzida a legalismo, para ser ao contrário uma busca inquieta e contínua do Senhor e da sua Palavra, que todos os dias nos chama a colaborar para a obra de Deus nas diversificadas situações da vida e da sociedade. De várias formas, muitas vezes silenciosas e anónimas, frequentemente até na história dos nossos fracassos e feridas, o Reino de Deus realiza-se no nosso coração e na história que nos circunda; como uma pequena semente escondida no terreno (cf. Mt 13, 31-32), como um pouco de fermento que leveda a massa (cf. Mt 13, 24-30), Jesus introduz na nossa história os sinais da nova vida que veio inaugurar e pede-nos que colaboremos com Ele nesta obra de salvação: cada um de nós pode contribuir para realizar a obra do Reino de Deus no mundo, abrindo espaços de salvação e de libertação, semeando a esperança, desafiando as lógicas mortíferas do egoísmo mediante a fraternidade evangélica, comprometendo-nos na ternura e na solidariedade a favor do nosso próximo, especialmente dos mais pobres.

Nunca se deve neutralizar esta dimensão social da fé cristã. Como recordei também na Evangelii gaudium, o querigma da fé cristã possui em si mesmo um conteúdo social, convidando a construir uma sociedade em que triunfe a lógica das bem-aventuranças e de um mundo solidário e fraterno. O Deus amor, que em Jesus nos convida a viver o mandamento do amor fraterno, cura as nossas relações interpessoais e sociais através do amor, chamando-nos a ser pacificadores e construtores de fraternidade entre nós: «A proposta é o Reino de Deus (cf. Lc 4, 43); trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz e de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais» (Evangelii gaudium, 180). Neste sentido, o cuidado da nossa Mãe Terra e o compromisso de edificar uma sociedade solidária em que somos “todos irmãos” não só não são alheios à nossa fé, como constituem uma sua realização concreta.

Este é o fundamento da Doutrina Social da Igreja. Não é um simples aspeto social da fé cristã, mas uma realidade com um fundamento teológico: o amor de Deus pela humanidade e o seu desígnio de amor e de fraternidade que Ele cumpre na história através de Jesus Cristo, seu Filho, a quem os fiéis estão intimamente unidos mediante o Espírito.

Por isto, estou grato ao cardeal Michael Czerny e ao padre Christian Barone, irmãos na fé, por esta contribuição que oferecem sobre a fraternidade e por estas páginas que, enquanto têm a intenção de introduzir à Encíclica Fratelli tutti, procuram trazer à luz e tornar explícita a profunda ligação entre o atual Magistério social e as afirmações do Concílio Vaticano ii .

Às vezes esta ligação não sobressai à primeira vista e procuro explicar o motivo. Na história da América Latina, em que fui imerso, primeiro como jovem estudante jesuíta e depois no exercício do ministério, respiramos um clima eclesial que, com entusiasmo, absorveu e fez suas as intuições teológicas, eclesiásticas e espirituais do Concílio, inculturando-as e praticando-as. Para nós, mais jovens, o Concílio tornou-se o horizonte do nosso credo, das nossas linguagens e da nossa prática, ou seja, tornou-se em breve o nosso ecossistema eclesial e pastoral, mas não adquirimos o hábito de citar frequentemente os decretos conciliares, nem de meditar sobre reflexões de tipo especulativo. Simplesmente, o Concílio entrou no nosso modo de ser cristãos e de ser Igreja e, ao longo da vida, as minhas intuições, noções e espiritualidade foram simplesmente geradas pelas sugestões da doutrina do Concílio Vaticano ii. Não havia muita necessidade de citar os textos do Concílio.

Hoje, provavelmente, passadas várias décadas e encontrando-nos num mundo – inclusive eclesial — que mudou profundamente, é necessário tornar mais explícitos os conceitos-chave do Concílio Vaticano ii , os fundamentos das suas argumentações, o seu horizonte teológico e pastoral, os argumentos e o método que utilizou. O cardeal Michael e o padre Christian, na primeira parte deste precioso livro, ajudam-nos muito nisto. Eles leem e interpretam o Magistério social que procuro levar em frente, trazendo à luz algo que se encontra um pouco escondido entre as linhas, ou seja, o ensinamento do Concílio como base fundamental, ponto de partida, lugar que gera interrogações e ideias e que, por isso, também orienta o convite que hoje dirijo à Igreja e ao mundo inteiro sobre a fraternidade. Pois a fraternidade, que constitui um dos sinais dos tempos que o Concílio Vaticano ii traz à luz, é aquilo de que têm grande necessidade o nosso mundo e a nossa Casa comum, na qual somos chamados a viver como irmãos e irmãs.

Além disso, neste horizonte o livro que apresento tem também a vantagem de reler na atualidade a intuição conciliar de uma Igreja aberta, em diálogo com o mundo. O Vaticano ii procurou responder às questões e aos desafios do mundo moderno, com o fôlego da Gaudium et spes; mas hoje, prosseguindo no sulco daquele caminho traçado pelos Padres conciliares, compreendemos que há necessidade não só de uma Igreja no mundo moderno e em diálogo com ele, mas sobretudo de uma Igreja que se coloque ao serviço do homem, cuidando da criação e anunciando e realizando uma nova fraternidade universal, em que as relações humanas sejam curadas do egoísmo e da violência, fundamentando-se no amor recíproco, no acolhimento e na solidariedade.

Se é isto que a história de hoje nos pede, de modo especial numa sociedade fortemente marcada por desequilíbrios, feridas e injustiças, damo-nos conta de que isto está também no espírito do Concílio, que nos convidou a ler e a ouvir os sinais que derivam da história humana. O livro do cardeal Michael e do padre Christian tem também este mérito: oferece-nos uma reflexão sobre a metodologia utilizada pela teologia pós-conciliar e pelo próprio Magistério social, mostrando como ela está intimamente ligada à metodologia usada pelo Concílio, ou seja, um método histórico-teológico-pastoral, em que a história é o lugar da revelação de Deus, a teologia desenvolve as orientações através de uma reflexão e a pastoral encarna-as na prática eclesial e social. Neste sentido, o Magistério do Santo Padre tem sempre necessidade de ouvir a história e precisa da contribuição da teologia.

Concluindo, gostaria de agradecer ao cardeal Czerny também por ter envolvido nesta obra um jovem teólogo, o padre Barone. Esta união é fecunda: um cardeal, chamado ao serviço da Santa Sé e a ser guia pastoral, e um teólogo fundamental. É um exemplo do modo como se podem unir o estudo, a reflexão e a experiência eclesial, e também isto nos indica um método: uma voz oficial e uma voz jovem, juntas. É preciso caminhar sempre assim: o Magistério, a teologia, a prática pastoral, a liderança. Sempre juntos! A fraternidade será mais credível, se começarmos também na Igreja a sentir-nos “todos irmãos” e a viver os nossos respetivos ministérios como serviço ao Evangelho e à edificação do Reino de Deus e ao cuidado da Casa comum.

Francisco