Apelo conjunto assinado pelos participantes no encontro «Fé e ciência: rumo à Cop26»

Uma família numa casa comum

 Uma família numa casa comum  POR-041
12 outubro 2021

Publicamos o texto do apelo assinado na manhã de 4 de outubro pelos participantes no encontro «Fé e ciência: rumo à Cop26».

Hoje estamos aqui reunidos, num espírito de fraternidade humana, para sensibilizar sobre os desafios sem precedentes que ameaçam a nós e a nossa vida na nossa magnífica casa comum, a Terra.

Como líderes e estudiosos de várias tradições religiosas, reunimo-nos num espírito de humildade, responsabilidade, respeito mútuo e diálogo aberto. Este diálogo não se limita a uma mera troca de ideias, mas está centrado no desejo de caminhar juntos, reconhecendo a nossa chamada a viver em harmonia uns com os outros e com a natureza.

Na reunião de hoje culminam vários meses de intenso diálogo fraterno entre líderes religiosos e cientistas, reunidos na consciência da necessidade de uma solidariedade cada vez mais profunda face à pandemia global e à crescente preocupação pela nossa casa comum.

A nossa consciência:
a natureza é um dom

A natureza é um dom, mas é também uma força vital, sem a qual não poderíamos existir. As nossas crenças e espiritualidades ensinam o dever individual e coletivo de cuidar da família humana e do meio ambiente na qual vive. Não somos donos sem limites do nosso planeta e dos seus recursos. Somos os guardiães do ambiente natural com um dever inato de cuidar das gerações futuras e uma obrigação moral de cooperar na preservação do planeta.

Somos profundamente interdependentes entre nós e com o mundo natural. Esta ligação é a base para a solidariedade interpessoal e intergeracional e para a superação do egoísmo. Os danos do meio ambiente resultam, em parte, de uma tendência predatória, vendo o mundo natural como algo a ser explorado, sem ter em conta quanto a sobrevivência humana depende da biodiversidade e da saúde dos ecossistemas planetários e locais. As múltiplas crises que a humanidade enfrenta demonstram os fracassos desta abordagem; estes fracassos, em última análise, derivam de uma crise de valores, éticos e espirituais.

A fé e a ciência são pilares essenciais da civilização humana, com valores partilhados e complementaridade. Juntos, devemos enfrentar as ameaças à nossa casa comum. As advertências da comunidade científica estão a tornar-se cada vez mais vigorosas e claras, bem como a necessidade de ações concretas a empreender. Os cientistas afirmam que o tempo está a esgotar-se. As temperaturas globais já subiram ao ponto de o planeta ser mais quente do que tem sido nos últimos 200.000 anos. Estamos a caminhar para um aumento das temperaturas de mais de dois graus em relação aos níveis pré-industriais. Não é apenas um problema físico, mas também um desafio moral. A crise climática atinge todos nós, mas não da mesma forma, porque terá efeitos diferentes e devastadores para as pessoas nos países industrializados e nos não industrializados. Em particular, irá atingir os mais pobres, especialmente mulheres e crianças dos países mais vulneráveis, que são os menos responsáveis por este fenómeno.

A humanidade tem o poder de pensar e a liberdade de escolher. Devemos enfrentar estes desafios usando o conhecimento da ciência e a sabedoria da religião: saber mais e cuidar mais. Devemos procurar soluções dentro de nós, nas nossas comunidades, e com a natureza, adotando uma abordagem integral. Precisamos de pensar a longo prazo para o bem de toda a humanidade, agora e no futuro.

Precisamos de arrancar as sementes dos conflitos: avidez, indiferença, ignorância, medo, injustiça, insegurança e violência. Temos de nos concentrar especialmente em quantos estão nas margens. É necessário agir em conjunto para nos inspirarmos e darmos força uns aos outros. Precisamos de viver em paz entre nós e com a natureza. Agora é o momento de agir de forma diferente como resposta comum. À medida que a pandemia da Covid se alastra, 2021 apresenta o desafio vital de transformar esta crise numa oportunidade de repensar o mundo que queremos para nós e para os nossos filhos. O cuidado deve estar no centro desta conversão, a todos os níveis.

A nossa chamada: a necessidade
de uma maior ambição na Cop26

Precisamos de um contexto de esperança e coragem.

Mas precisamos também de mudar a narrativa do desenvolvimento e de adotar um novo tipo de economia: que coloque a dignidade humana no centro e seja inclusiva; que seja ecologicamente respeitadora, atenciosa e não exploradora; que não se baseie num crescimento ilimitado e em desejos desenfreados, mas que sustente a vida; que promova a virtude da temperança e condene a maldade do excesso; que não seja impulsionada apenas pela tecnologia, mas também pela moral e a ética.

Agora é tempo para uma ação urgente, radical e responsável. A mudança da situação atual exige que a comunidade internacional aja com maior ambição e equidade em todos os aspetos das suas políticas e estratégias.

As alterações climáticas constituem uma séria ameaça. No interesse da justiça e da equidade, apelamos a uma comum ação climática, mas diferenciada a todos os níveis, desde as mudanças comportamentais individuais até à tomada de decisões políticas de alto nível.

O mundo é chamado a eliminar as emissões de carbono logo que possível, com os países mais ricos que assumem um papel de guia na redução das suas emissões e no financiamento da redução de emissões das nações mais pobres. É importante que todos os governos adotem uma via que limite o aumento da temperatura média global a 1,5° c acima dos níveis pré-industriais. Para atingir estes objetivos do Acordo de Paris, a cimeira da Cop26 deverá dar um impulso a ações ambiciosas a curto prazo por parte de todas as nações com responsabilidades diferenciadas. Há também uma necessidade urgente de ação sobre objetivos a médio e longo prazo.

Exortamos as nações com maior responsabilidade e capacidade a: intensificar as suas políticas climáticas nacionais; cumprir os compromissos existentes para fornecer apoio financeiro substancial aos países vulneráveis; concordar novas metas que lhes permitam tornar-se resistentes às alterações climáticas, bem como a adaptar-se às alterações climáticas e às perdas e danos delas resultantes, que já são uma realidade para muitos países.

Acompanharemos as nações na tentativa de proteger e investir recursos em grupos marginalizados e populações vulneráveis dentro das suas fronteiras, que durante demasiado tempo suportaram um fardo desproporcionado e foram mais atingidos pela pobreza, poluição e doenças pandémicas. Os direitos dos povos indígenas e das comunidades locais devem receber atenção especial, protegendo-os de interesses económicos predatórios. Eles foram os guardiães da terra durante milénios. Deveríamos ouvi-los e guiar-nos pela sua sabedoria.

Apelamos aos governos para que elevem as suas ambições e cooperação internacional para: favorecer a transição para a energia limpa; adotar práticas sustentáveis de uso da terra que incluam a prevenção da desflorestação, restauração das florestas e conservação da biodiversidade; transformar os sistemas alimentares a fim de que se tornem ambientalmente sustentáveis e respeitadores das culturas locais; erradicar a fome; e promover estilos de vida, modos de consumo e produção sustentáveis.

Apelamos também aos governos que tenham plenamente em conta os efeitos que a transição para uma economia de energia limpa terá na força de trabalho. Deve ser dada prioridade à criação de empregos dignos, especialmente nos sectores que dependem dos combustíveis fósseis. Apelamos para que seja garantida uma transição justa efetiva e inclusiva para um desenvolvimento com baixas emissões de gases com efeito de estufa e resiliente ao clima. Ao mesmo tempo, exortamo-los a considerar as consequências sociais e económicas a curto e a longo prazo, e a adotar uma abordagem equilibrada que combine os cuidados para as gerações futuras com a garantia de que ninguém no nosso tempo seja privado do seu pão quotidiano.

Apelamos às instituições financeiras, bancos e investidores para que adotem um sistema de financiamento responsável para investimentos que tenham um impacto positivo nas pessoas e no planeta.

Apelamos às organizações da sociedade civil e a cada um para enfrentarem estes desafios com coragem e num espírito de colaboração.

Em paralelo, apelamos aos líderes que participam na Cop26 para assegurar que não haja mais perda de biodiversidade e que todos os ecossistemas terrestres e marinhos sejam restaurados, protegidos e geridos de uma forma sustentável.

A fim de alcançar estes objetivos, temos diante de nós um grande desafio educacional. Os governos não podem gerir sozinhos uma mudança tão ambiciosa. É preciso que toda a sociedade — a família, instituições religiosas, escolas e universidades, as nossas empresas e sistemas financeiros — se envolva num processo transparente e colaborativo, assegurando que todas as vozes sejam consideradas e que todas as pessoas sejam representadas no processo de tomada de decisão, envolvendo quantos são mais atingidos, especialmente as mulheres e as comunidades cujas vozes são frequentemente ignoradas ou subestimadas.

É aqui que nós, instituições e líderes religiosos, podemos dar um contributo importante. A humanidade deve reconsiderar as suas perspetivas e valores, rejeitando o consumismo e a cultura difundida do desperdício, e abraçar uma cultura de cuidado e cooperação.

Sensibilizar a opinião pública será indispensável para a mudança de rumo que é necessário empreender.

O nosso compromisso
e a nossa criatividade

Os fiéis das tradições religiosas têm um papel crucial a desempenhar na resolução da crise da nossa casa comum. Empenhar-nos-emos em agir com muito mais seriedade. Os jovens pedem a nós, mais idosos, que ouçamos as indicações da ciência e que façamos muito mais.

Em primeiro lugar, comprometemo-nos a fazer avançar a transformação educativa e cultural que é crucial para sustentar todas as outras ações. Frisamos a importância de:

— Intensificar os nossos esforços para mudar os corações entre os membros das nossas tradições religiosas na forma como se relacionam com a terra e outras pessoas (“conversão ecológica”). Recordaremos às nossas comunidades que o cuidado da terra e dos outros é um princípio fundamental de todas as nossas tradições. Reconhecendo os sinais da harmonia divina presentes no mundo natural, esforçar-nos-emos por integrar esta sensibilidade ecológica de forma mais consciente nas nossas práticas.

— Encorajar as nossas instituições educativas e culturais a dar prioridade aos conhecimentos científicos relevantes nos seus currículos, para reforçar a educação ecológica integral e ajudar os estudantes e as suas famílias a relacionarem-se com a natureza e com os outros, com um novo olhar. Além da transmissão de noções e de conhecimento técnico, queremos incutir as sólidas virtudes necessárias para apoiar a transformação ecológica.

— Participar ativa e adequadamente no debate público e político sobre questões ambientais, partilhando as nossas perspetivas religiosas, morais e espirituais, dando voz aos mais débeis, aos jovens e àqueles que são demasiadas vezes ignorados, como os povos indígenas. Sublinhamos a importância de colocar os debates sobre questões ambientais num quadro renovado de modo que — em vez de se concentrarem apenas em questões técnicas — incluam a dimensão moral.

— Incluir as nossas congregações e instituições, juntamente com os seus bairros, na construção de comunidades sustentáveis, resilientes e justas, criando e desenvolvendo recursos para a cooperação local, por exemplo, em agricultura regenerativa de pequena escala e cooperativas de energias renováveis.

Em segundo lugar, enfatizamos a importância de empreender uma ação ambiental de amplo alcance dentro das nossas instituições e comunidades, com as informações da ciência e as bases da sabedoria religiosa. Enquanto exortamos os governos e as organizações internacionais a serem ambiciosos, reconhecemos o importante papel que desempenhamos. Salientamos a importância de:

— Apoiar ações para reduzir as emissões de carbono, alcançar a neutralidade carbónica, promover a redução do risco de catástrofes, melhorar a eliminação do lixo, poupar água e energia, desenvolver energias renováveis, assegurar espaços verdes abertos, preservar as zonas costeiras, prevenir a desflorestação e restaurar as florestas. Muitas destas ações requerem a colaboração com as comunidades agrícolas e de pescadores, especialmente as explorações agrícolas familiares e de pequena escala, que apoiaremos.

— Trabalhar no sentido de realizar projetos desafiantes para alcançar a plena sustentabilidade nos nossos edifícios, terrenos, veículos e outras propriedades, participando no esforço global para salvar o nosso planeta.

— Incentivar as nossas comunidades a adotar estilos de vida simples e sustentáveis nas próprias casas para reduzir a emissão coletiva de carbono.

— Esforçar-se por alinhar os nossos investimentos financeiros com padrões ambiental e socialmente responsáveis, assegurando um maior controle e transparência, à medida que a tendência de afastamento dos investimentos em combustíveis fósseis para investimentos em energias renováveis e agricultura restaurativa está a tornar-se mais generalizada. Encorajemos os sectores público e privado a fazer o mesmo.

— Avaliar todos os produtos e serviços que compramos com a mesma perspetiva ética, evitando aplicar dois padrões morais diferentes ao sector empresarial e ao resto da vida social. Por exemplo, sensibilizaremos as nossas comunidades religiosas para a necessidade de analisar as nossas escolhas bancárias, de seguros e de investimento, a fim de as corrigir de acordo com os valores que aqui afirmamos.

A nossa esperança: um tempo
de graça, uma oportunidade
que não podemos desperdiçar

Estamos atualmente a viver numa época de oportunidade e verdade. Rezemos para que a nossa família humana possa unir-se a fim de salvar a nossa casa comum antes que seja demasiado tarde. As gerações futuras nunca nos perdoarão se desperdiçarmos esta preciosa oportunidade. Herdámos um jardim: não devemos deixar um deserto aos nossos filhos.

Os cientistas advertiram-nos que pode restar apenas uma década para restaurar o planeta.

Apelamos à comunidade internacional, reunida na Cop26, a empreender ações rápidas, responsáveis e partilhadas para salvaguardar, restaurar e curar a nossa humanidade ferida e a casa confiada aos nossos cuidados.

Apelamos a quantos vivem neste planeta a unirem-se a nós nesta viagem comum, conscientes de que o que podemos alcançar depende não só de oportunidades e recursos, mas também de esperança, coragem e boa vontade.

Numa época marcada por divisão e desânimo, olhemos para o futuro com esperança e unidade. Procuremos ajudar os povos do mundo, especialmente os pobres e as gerações futuras, encorajando uma visão profética, uma ação criativa, respeitadora e corajosa pelo bem da Terra, a nossa casa comum.