«Ciência e ética da felicidade. Cáritas, amizade social e o fim da pobreza»: eis o tema do encontro dedicado à primeira bem-aventurança — «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus» (Mt 5, 3) — realizado nos dias 3 e 4 de outubro por iniciativa da pontifícia Academia das ciências sociais na Casina Pio iv , nos jardins do Vaticano. Publicamos a seguir a mensagem enviada pelo Papa Francisco aos participantes no congresso, que foi transmitida na manhã do dia 3, na abertura dos trabalhos.
Prezados irmãos e irmãs!
Segundo Santo Agostinho, toda a perfeição da nossa vida está contida no “sermão da montanha” (cf. Mt 5); e demonstra-o com o facto de Jesus Cristo incluir nele a finalidade para a qual nos conduz, nomeadamente, a promessa de felicidade.1 Ser feliz é o que o ser humano mais deseja. Portanto, o Senhor promete a felicidade a quem deseja viver segundo o seu estilo e ser reconhecido como bem-aventurado.
Toda a felicidade está incluída nestas benditas palavras de Cristo. Pois bem, embora todos os seres humanos desejem a felicidade, diferem nos seus juízos concretos sobre ela: uns desejam isto, outros aquilo. Hoje deparamo-nos com um paradigma predominante, muito difundido pelo “pensamento único”, que confunde a utilidade com a felicidade, o divertir-se com o viver bem e pretende tornar-se o único critério válido de discernimento. Uma subtil forma de colonialismo ideológico. Trata-se de impor a ideologia segundo a qual a felicidade consistiria somente no útil, nas coisas e nos bens, na abundância de coisas, de fama e de dinheiro. Mas o salmista deplora esta tergiversação: «Bem-aventurado o povo agraciado com tais bens» (Sl 144, 15). Aproveitam-se do medo das pessoas, do receio de ficar sem o necessário, pois sabem que é aterrador padecer carências no futuro. Qualquer forma de escassez provoca a ganância. Daqui deriva o desejo desmedido de possuir riquezas, que é simplesmente aquilo a que São Paulo chama “avareza”. Tal avareza pode apoderar-se tanto das pessoas como das famílias e das nações, especialmente das mais ricas, embora nem sequer as mais carentes estejam isentas disto. Nalgumas pode suscitar até um materialismo sufocante e um estado geral de conflito, que só consegue multiplicar a pobreza para a maioria. Esta situação é causa de enormes sofrimentos e, ao mesmo tempo, mina a dignidade das pessoas e do planeta, a nossa Casa comum. Tudo isto, com o interesse de manter a tirania do dinheiro que garante privilégios somente a poucos. Podemos viver muito apegados ao dinheiro, possuir muitas coisas, mas no final não as levaremos connosco. Lembro-me sempre do que a minha avó me ensinou: “O sudário não tem bolsos”.
Hoje vemos que o mundo nunca foi tão rico, e, no entanto — não obstante tanta abundância — a pobreza e a desigualdade persistem e, o que é ainda pior, aumentam. Neste tempo de abundância, em que deveria ser possível pôr fim à pobreza, os poderes do pensamento único nada dizem dos pobres, nem sequer dos idosos, dos imigrantes, dos nascituros, dos doentes graves. Invisíveis para a maioria das pessoas, são tratados como “descartáveis”. E quando são tornados visíveis, geralmente são apresentados como um fardo indigno para o erário público. É um crime de lesa humanidade que, devido a este paradigma avarento e egoísta predominante, os nossos jovens sejam explorados pela nova e crescente escravatura do tráfico de seres humanos, especialmente no trabalho forçado, na prostituição e no tráfico de órgãos.
Considerando os enormes recursos disponíveis de dinheiro, riqueza e tecnologia com que contamos, a nossa maior necessidade não consiste em continuar a acumular, nem numa maior riqueza e tecnologia, mas em praticar o paradigma sempre novo e revolucionário das bem-aventuranças de Jesus, a começar pela primeira, que considerais com tanta atenção: «Bem-aventurados são os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus» (Mt 5, 3). Paradoxalmente, o espírito de pobreza é aquele ponto de viragem que abre o caminho rumo à felicidade mediante uma completa mudança de paradigma. Isto, enquanto nos despoja do espírito mundano, leva-nos a utilizar as nossas riquezas e tecnologias, bens e talentos a favor do desenvolvimento humano integral, do bem comum, da justiça social e do cuidado e salvaguarda da nossa Casa comum. O paradoxo da pobreza de espírito, a que somos chamados, consiste na constatação de que, embora seja a chave da felicidade para todos — tanto a nível individual como social — nem todos desejam acolhê-la: «Como é difícil para os ricos entrar no reino de Deus!» (Lc 18, 24).
Então, a pobreza de espírito é aquele caminho surpreendente e incomum, “estreito e apertado” (Mt 7, 14), mas seguro para alcançar a plenitude para a qual, como pessoas e como sociedade, somos chamados.
Mas atenção, Jesus não diz que é uma bênção a pobreza “material”, entendida como privação do necessário para viver com dignidade: alimentação, trabalho, casa, saúde, roupa, educação, oportunidades, etc. Na maioria das vezes, esta pobreza é causada pela injustiça e avareza, e não tanto pelas forças da natureza (aquecimento global, calamidades, pandemias, tremores de terra, inundações, tsunamis, etc.), em algumas das quais, aliás, também se sente frequentemente a manipulação humana. A pobreza como privação do necessário — ou seja, a miséria — é socialmente, como viram claramente L. Bloy e Péguy, uma espécie de inferno, pois debilita a liberdade humana e coloca quantos sofrem na condição de ser vítimas das novas formas de escravidão (trabalho forçado, prostituição, tráfico de órgãos e outros) para poder sobreviver. Trata-se de condições criminosas que, em estrita justiça, devem ser denunciadas e combatidas constantemente. Todos, de acordo com a própria responsabilidade, e em particular os governos, as empresas multinacionais e nacionais, a sociedade civil e as comunidades religiosas, devem fazê-lo. São as piores degradações da dignidade humana e, para o cristão, as chagas abertas do corpo de Cristo que na cruz bradou: tenho sede! «Bem-aventurados vós que sois pobres, porque vosso é o reino de Deus», como afirma São Lucas (6, 20), é um apelo à liberdade que dá prioridade à necessidade de ajudar os doentes e os pobres com alimentação, saúde, abrigo, roupa e outras necessidades básicas. Além disso, Jesus anuncia que no juízo final todos as pessoas, famílias, associações, assim como todos os povos, serão julgados segundo o protocolo de ajuda aos irmãos em necessidade: «Todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes» (Mt 25, 40).
Os pobres de espírito são ricos deste “instinto” do Espírito Santo, são ricos de fraternidade e desejosos de amizade social. Assim o testemunha o jovem Francisco de Assis, filho de um rico comerciante que, no alvorecer da era industrial, do capitalismo e dos bancos, abandona as riquezas e comodidades para ser pobre entre os pobres, dando testemunho desta bem-aventurança mediante o chamado casamento com a senhora pobreza. Impelido pelo espírito de pobreza, sente no sofrimento do leproso que a verdadeira riqueza e a alegria não são as coisas, a posse, o paradigma mundano, mas o amor a Cristo e o serviço solidário ao próximo. Num sentido totalmente sério e entusiasta, afirma Chesterton, São Francisco podia dizer: «Bem-aventurado aquele que nada tem e nada espera, pois possuirá tudo e desfrutará de tudo».2 De igual modo, impressionada pelo sofrimento da multidão de pobres do nosso tempo, que considerava como seus, a misericórdia foi para madre Teresa de Calcutá a água viva e o pão vivo que lhe conferiam beleza a cada uma das suas obras, e a energia que saciava e alimentava quantos nada tinham além da «fome e sede de justiça». Da mesma forma, muitos homens e mulheres de fé viva — e não só — receberam graças dos pobres, pois em cada irmão e irmã em dificuldade abraçamos a carne de Cristo que sofre.
Além do aumento maciço da pobreza, a outra consequência do paradigma materialista predominante é o incremento crescente da lacuna das desigualdades, que causa mal-estar social e generaliza o conflito, não só pondo em perigo a democracia mas também debilitando o necessário bem social. Este aumento trágico e sistémico das desigualdades entre grupos sociais dentro do mesmo país e entre as populações de vários países tem um impacto negativo também a nível económico, político, cultural e até espiritual. Isto deve-se à progressiva erosão do conjunto de relacionamentos de fraternidade, amizade social, concórdia, confiança, fiabilidade e respeito, que representam a alma de toda a convivência civil. Naturalmente, a avareza que impulsiona o sistema já deixou de lado há muito tempo a principal consequência socioeconómica e política do “espírito de pobreza”, aquela que exige a justiça social e a corresponsabilidade na gestão dos bens e dos frutos do trabalho dos seres humanos. «Sou porventura eu o guarda do meu irmão?» (Gn 4, 9). O Catecismo da Igreja Católica recorda que: «O direito à propriedade privada, adquirida ou recebida de maneira justa, não anula a doação original da terra à humanidade no seu conjunto. O destino universal dos bens continua a ser primordial, embora a promoção do bem comum exija o respeito pela propriedade privada, pelo direito a ela e pelo respetivo exercício».3 E pouco depois acrescenta: «Os bens de produção — materiais ou imateriais — como terras ou fábricas, competências ou artes, requerem os cuidados dos seus possuidores, para que a sua fecundidade aproveite ao maior número de pessoas».4 Portanto, quem possui bens deve utilizá-los com espírito de pobreza, reservando a melhor parte para o hóspede, o doente, o pobre, o idoso, o inválido, o excluído; eles são o rosto muitas vezes esquecido de Jesus, que é aquele que procuramos quando buscamos o bem comum. O desenvolvimento de uma sociedade mede-se com base na sua capacidade de socorrer cuidadosamente quantos sofrem.
Já em 1967, São Paulo vi escrevia na encíclica Populorum progressio: «Sabe-se com que insistência os Padres da Igreja determinaram qual deve ser a atitude daqueles que possuem, em relação aos que estão em necessidade: “Não dás da tua fortuna”, assim afirma santo Ambrósio, “ao seres generoso para com o pobre, tu dás daquilo que lhe pertence! Porque aquilo que te atribuis a ti, foi dado em comum para o uso de todos. A terra foi dada a todos e não apenas aos ricos”».5 Um novo passo importante foi dado em 1987 por São João Paulo ii , que introduziu pela primeira vez a noção de “estrutura de pecado” para indicar uma das principais causas da desigualdade social do sistema capitalista, que produz escravos.6
A boa notícia é que, criado à imagem de Deus, o ser humano é chamado a colaborar livremente com o Criador e a desenvolver a terra de modo sustentável e, por sua vez, a moldar a sociedade com o caráter espiritual fraterno que ele mesmo recebeu no programa das bem-aventuranças. Não obstante a globalização da indiferença pareça ser a voz predominante, ao longo de todo este tempo de pandemia vimos como a globalização da solidariedade conseguiu impor-se com a sua discrição caraterística nos vários âmbitos das nossas cidades. Portanto, devemos despojar-nos da mundanidade a fim de que o espírito das bem-aventuranças e, no nosso caso, a pobreza de espírito, adquira forma entre nós e entre os povos. Mas todos os nossos discursos serão, como reza o ditado, palavras levadas pelo vento, se não conseguirem lançar raízes e encarnar-se na vida dos jovens. Isto exige que trabalhemos com ênfase e esperança segundo modelos educativos capazes de promover o espírito das bem-aventuranças nas jovens gerações.
Quero terminar com o eco que tem em São Paulo o espírito de pobreza ensinado por Cristo. Não se pode duvidar que São Paulo considera legítimo desejar o necessário e que, consequentemente, trabalhar para o obter, é um dever: «Quem não quiser trabalhar, não tem o direito de comer» (2 Ts 3, 10). Mas ao mesmo tempo admoesta o seu discípulo Timóteo contra a avareza como origem de muitos males pessoais e sociais: «Aqueles que ambicionam tornar-se ricos caem nas armadilhas do maligno e em muitos desejos insensatos e nocivos, que precipitam os homens no abismo da ruína e da perdição» (1 Tm 6, 9). «Porque a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro. Acossados pela cobiça, alguns desviaram-se da fé e enredaram-se em muitas aflições» (1 Tm 6, 10). Para muitos este texto dará a impressão de ter um valor religioso ou ascético, mas não económico. Além disso, parecer-lhes-á destrutivo para a economia. E no entanto é um texto eminentemente socioeconómico e político, como o são as bem-aventuranças de Cristo, e em particular a do espírito de pobreza em que se inspira. Pois Paulo identifica-o com extrema lucidez: «e enredaram-se em muitas aflições», ou seja, a avareza não lhes proporcionou o bem-estar económico e social que procuravam, nem sequer a liberdade e felicidade que desejavam. Pelo contrário, a avareza escraviza o poder de turno sem misericórdia nem justiça, na luta implacável pelo bezerro de ouro e pelo domínio, como demonstra a economia moderna. Por isso, o próprio bem-estar de cada pessoa, da economia e da sociedade local e global exige um espírito de pobreza, a capacidade de regular o desejo de lucro e a avareza, e de nos deixarmos orientar pelo Espírito Santo, cujos frutos são «caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, mansidão, temperança» (Gl 5, 22).
Para superar esta avareza, somos chamados a realizar um movimento global contra a indiferença que crie ou recrie instituições sociais inspiradas nas bem-aventuranças e que nos estimulem a buscar a civilização do amor. Um movimento que coloque limites a todas as atividades e instituições que, pela sua própria inclinação, visam apenas o lucro, especialmente aquelas a que São João Paulo ii chamava “estruturas de pecado”. Entre elas, aquela que defini “globalização da indiferença”. Peçamos ao Senhor que nos conceda o seu “espírito de pobreza”. Procuremos e Ele ajudar-nos-á a encontrá-lo. Batamos a fim de que se nos abra a porta do caminho das bem-aventuranças e da autêntica felicidade.
Roma, São João de Latrão,
2 de outubro de 2021.
Francisco
1. «Se alguém examinar com fé e seriedade o sermão que nosso Senhor Jesus Cristo proferiu na montanha, como o lemos no Evangelho de Mateus, penso que aí encontrará a norma definitiva da vida cristã» (Santo Agostinho, O sermão do Senhor na montanha, i , 1).
2. G.K. Chesterton, São Francisco de Assis, cap. 5 O jogral de Deus.
3. Catecismo da Igreja Católica, n. 2403.
4. Ibid, n. 2405.
5. N. 23
6. Cf. Carta Encíclica Sollicitudo rei socialis, nn. 36-40.