Em preparação para o Congresso de Varsóvia

O desafio dos abusos sexuais

 O desafio dos abusos sexuais  POR-035
31 agosto 2021

No mundo de hoje, a Igreja enfrenta grandes desafios. O mais fundamental é o da fé e do anúncio de Deus e de Jesus Cristo no mundo contemporâneo, com as suas enormes transformações culturais e antropológicas. Mas há também desafios específicos, que têm um efeito muito profundo na vida da Igreja e na sua missão de evangelização. Um dos mais críticos das últimas décadas, por ter ferido a credibilidade da Igreja e, por conseguinte, a sua autoridade e a sua capacidade de anunciar o Evangelho de modo credível, é o dos abusos sexuais contra menores por parte de membros do clero. Lançou uma sombra de incoerência e de insinceridade sobre a instituição da Igreja, sobre a comunidade eclesial no seu conjunto. Isto é deveras muito grave.

Com o tempo e a experiência, a começar pelos abusos sexuais contra menores — que são os mais graves — aprendemos a alargar a perspetiva sob diversos aspetos, de modo que hoje falamos mais frequentemente de abusos contra pessoas “vulneráveis” e sabemos que devem ser vistos como abusos não só sexuais, mas também de poder e de consciência, como o Papa Francisco repetiu muitas vezes. Além disso, é necessário lembrar que o problema dos abusos, nas suas várias dimensões, é um problema geral da sociedade humana, nos países em que vivemos e nos diferentes continentes, e não se trata de um problema exclusivo da Igreja católica. Aliás: quem estuda com objetividade e amplidão observa que existem regiões, lugares e instituições muito diversas onde a questão está dramaticamente difundida.

Ao mesmo tempo, é correto que abordemos especificamente o problema da Igreja, no que diz respeito — como já foi mencionado — à sua credibilidade e coerência. A Igreja sempre insistiu no seu ensinamento sobre o comportamento sexual e o respeito pela pessoa. Portanto, mesmo que vejamos que não é um problema exclusivo da Igreja, devemos levá-lo absolutamente a sério e compreender que tem uma gravidade terrível no contexto da vida da Igreja e da proclamação do Evangelho do Senhor.

Em particular, é um campo no qual estão em questão a profundidade e a verdade da relação com as pessoas, cuja dignidade deve ser profundamente respeitada. Como cristãos e católicos, orgulhamo-nos de reconhecer a dignidade da pessoa como fundamental, pois a pessoa é imagem de Deus. Pois bem, o facto de abusar, desrespeitar, tratar os outros como objetos, não estar atento ao seu sofrimento, etc., é um sinal de fracasso num ponto fundamental da nossa fé e da nossa visão do mundo.

Na reforma muito recente do direito penal canónico há um aspeto que pode parecer puramente formal, mas é muito significativo deste ponto de vista. Os crimes de abusos estão incluídos no campo dos crimes “contra a vida, a dignidade e a liberdade da pessoa”. Não são “coisas vergonhosas” ou “indignas do clero”, mas salienta-se que na perspetiva da Igreja a dignidade da pessoa deve ser posta no centro e ser respeitada porque e como imagem de Deus. Isto é absolutamente fundamental. O facto de nos converter a levar muito mais a sério a escuta e o respeito por cada pessoa, até pequenina ou débil, é um dos pontos importantes do caminho de conversão e purificação da Igreja no nosso tempo, para sermos credíveis.

O Congresso de 2019: responsabilidade, prestar contas, transparência

Sem ter que refazer toda a história dos dramáticos acontecimentos e posições da Igreja sobre os abusos sexuais, para simplificar, podemos referir-nos à “Cimeira” de fevereiro de 2019. Foi convocada pelo Papa como um momento global, em que a Igreja inteira, através dos representantes de todas as Conferências episcopais, das congregações religiosas masculinas e femininas, se reunisse para uma tomada de consciência e de compromisso, a fim de continuar com mais eficácia o caminho de renovação.

A organização daquele Congresso (cujas atas foram publicadas no volume Consciência e purificação, lev) girava em torno de três pontos principais.

Antes de mais nada, a consciência e a responsabilidade do problema, das questões relacionadas com os abusos sexuais contra menores, e não só; a importância de ouvir e compreender profundamente, com compaixão e participação, as consequências, o sofrimento, a gravidade do que aconteceu e continua a acontecer neste campo. Portanto: a escuta e a compaixão como ponto de partida da atitude a ser tomada. Depois, naturalmente, a necessidade de fazer justiça em relação ao que foi cometido de criminoso e prejudicial contra os outros. Isto significa preparar-se para a prevenção, de tal modo que estes crimes deixem de acontecer — ou, pelo menos, aconteçam cada vez mais raramente — e para que esta realidade dramática possa ser controlada. Isto implica a formação de todos no âmbito da comunidade eclesial e também especificamente de pessoas competentes, a fim de que possam agir e ser um ponto de referência para lidar com o problema. Em suma: consciência e responsabilidade na abordagem conjunta da questão.

Outro ponto muito importante e crucial é o do “prestar contas” (em inglês, fala-se muito da accountability) e da superação da cultura de encobrimento ou ocultação. Um dos aspetos dramáticos desta crise é que ela trouxe à superfície, ao conhecimento público, realidades muito sérias que — mesmo que por vezes soubéssemos que estavam a acontecer — eram sistematicamente (e muitas vezes com uma atitude quase “natural”) mantidas na sombra ou encobertas, por vergonha ou para defender a honra das famílias ou instituições envolvidas, e assim por diante. Por isso, é necessário superar a atitude de esconder e, ao contrário, prestar contas do que é feito, também por parte dos responsáveis. Uma vez que esta realidade de ocultação foi generalizada a todos os níveis, e ainda mais a nível dos responsáveis — superiores de comunidades, bispos, etc. — o facto de trazer à luz e garantir que todos sejam responsáveis pelas suas ações, e portanto ter a certeza de progredir rumo a uma situação de clareza, responsabilidade e justiça, é outro dos passos absolutamente necessários.

Depois, e este é o terceiro ponto que foi muito debatido no Congresso, a “transparência” é consequência do que dissemos. Não significa apenas saber que houve e há crimes, falar sobre eles e realçá-los. Claro que o reconhecimento da verdade dos acontecimentos é essencial, mas transparência significa também conhecer e dar a conhecer o que se faz para responder, que procedimentos a Igreja utiliza em todas as suas dimensões para lidar com estas situações, que medidas toma, quais são as conclusões dos julgamentos dos culpados, e assim por diante. Deste modo, também as comunidades eclesiais e civis se tornam conscientes de que não só se viram falhas e crimes, mas que existe todo um caminho no qual a comunidade está conscientemente envolvida e com o qual responde a estes problemas.

Os passos importantes dados
após o Congresso de 2019

Mas se o Encontro de 2019 pretendia ser um ponto de partida comum, é preciso reconhecer que depois foram efetivamente dados muitos passos, que cumpriram todos os principais compromissos assumidos em 2019 pelo Papa e pelo governo central da Igreja. Ao que nos referimos?

Em primeiro lugar, já no final de março de 2019, foram promulgadas as novas leis e diretrizes relativas ao Vaticano e à Santa Sé, alargando a configuração, além dos abusos contra menores, também às “pessoas vulneráveis”. Então, a 9 de maio de 2019 foi promulgada uma nova lei de grande importância para toda a Igreja, o Motu proprio Vos estis lux mundi — “Vós sois a luz do mundo” — no qual o Papa ordenou que em todas as dioceses fossem criados gabinetes para receber denúncias e iniciar procedimentos para enfrentar os abusos. Não só: estabeleceu a obrigação de todos os sacerdotes e religiosas denunciar quaisquer abusos de que tomem conhecimento, e convidou também os membros leigos da Igreja a denunciar. Agora, todos os sacerdotes e as religiosas são obrigados em consciência a denunciar quaisquer casos de abuso contra menores de que tenham notícia, e não apenas contra menores, que são os mais graves, mas também contra outras pessoas vulneráveis ou outros abusos cometidos com violência. E os leigos também são convidados a fazer o mesmo, e devem conhecer o lugar exato onde podem apresentar a denúncia. Este é um passo deveras decisivo. Naturalmente, é preciso verificar se está totalmente implementado, mas já é lei para toda a Igreja. Trata-se de um passo absolutamente fundamental dado pelo Papa, provavelmente o mais importante neste campo durante quase vinte anos. Não só: a mesma lei também estabelece o procedimento de denúncia dos superiores de grau mais alto — superiores-gerais religiosos, bispos, cardeais... — não só para os abusos, mas também para casos de “cobertura”. Assim, as questões de responsabilidade e do prestar contas foram abordadas de maneira radical.

Além disso, em dezembro de 2019 foi abolido o “segredo pontifício” sobre atos relativos a questões de abusos sexuais, o que permite a colaboração também com as autoridades civis, de modo mais claro e mais livre do que antes. Por conseguinte, mais “transparência”. Depois, em julho de 2020, foi finalizado e publicado o famoso Vade-mécum, que tinha sido solicitado vigorosamente e indicado pelo próprio Papa como um dos primeiros objetivos do Encontro de 2019. Foi elaborado pela Congregação para a doutrina da fé: um bom documento, muito rico, que não apresenta grandes novidades, mas põe em ordem e explica claramente, para uso de cada bispo e de cada responsável, todos os pontos que devem saber e o que devem fazer nas várias situações. Um instrumento realmente necessário. Quando foi publicado não se falou muito dele, mas era um dos pontos essenciais nos pedidos do Encontro de 2019, e foi feito.

Mais recentemente, no Pentecostes de 2021, foi publicado o novo Livro vi do Código de direito canónico, que contém um pouco de todo o direito penal da Igreja, reformulado e organizado de tal modo que as novas normas, que ao longo dos anos tinham sido estabelecidas no campo dos abusos como noutros campos, agora estão reunidas no Código de direito canónico de forma ordenada, enquanto que antes permaneciam “dispersas” por toda uma série de intervenções e documentos.

Agora — insistimos — pode-se dizer que estes aspetos são exatamente os principais que se esperavam do Papa e da Santa Sé após o Encontro de 2019. E já foram feitos.

Pode-se acrescentar que durante este mesmo período, em novembro de 2020, foi também publicado o volumoso “Relatório McCarrick”, depois de ter sido, por vontade do Papa, estudada nos pormenores toda a vicissitude do gravíssimo escândalo que abalou a Igreja nos Estados Unidos e toda a Igreja: como foi possível que um culpado por abusos tenha chegado aos vértices das responsabilidades eclesiásticas, como arcebispo de Washington e cardeal. Esta publicação também pode ser vista como um passo doloroso, mas muito corajoso, no sentido da transparência e da vontade de prestar contas de crimes e responsabilidades, inclusive nos mais altos níveis da Igreja.

Assim, estamos diante de um enorme, difícil e doloroso problema relativo à credibilidade da Igreja. Contudo, não é totalmente verdade que nada foi feito ou que nada ou pouco se faz. Pode e deve ser dito claramente que a Igreja universal enfrentou e continua a enfrentar este problema, tomou as medidas necessárias e estabeleceu normas, procedimentos e regras para o enfrentar corretamente.

O caminho que temos
à nossa frente:
das normas à prática

Naturalmente, isto não significa que já foi feito tudo, pois, como sabemos, uma coisa é estabelecer as normas, o enquadramento, e outra bem diferente é mudar a realidade, pondo-as em prática. O próximo Congresso das Igrejas da Europa centro-oriental em Varsóvia, em setembro, sobre a proteção dos menores e das pessoas vulneráveis, orienta-se exatamente nesse sentido. Com efeito, em cada área geográfica e eclesial, que tem aspetos e problemas comuns de uma perspetiva histórica e cultural, é necessário refletir sobre o ponto ao qual chegamos e sobre quais são as vias concretas para transformar concretamente em realidade as diretrizes da Igreja universal. Isto tem sido feito noutras regiões: por exemplo, houve um grande Congresso na América Latina, no México, há cerca de um ano. Depois, a pandemia impediu muitos programas e provocou atrasos. Mas em vários continentes e regiões está a ser feito — ou já foi feito — o que agora está programado para o centro e o leste da Europa. Portanto, trata-se de um passo fundamental num caminho comum da Igreja universal que, com a sua especificidade, diz respeito a esta área geográfica, cultural e eclesial.

Concluindo, muito tem sido feito, a nível das normas gerais e também das experiências concretas. Nalgumas partes mais, noutras menos. É necessário encontrar-se para fazer circular os conhecimentos e compreender as formas concretas e eficazes de enfrentar os problemas. Estamos a caminho e continuaremos, mas num percurso que em substância é suficientemente claro, no qual é necessário avançar rapidamente e sem incertezas, para curar os sofrimentos, fazer justiça, prevenir os abusos, restaurar a confiança e a credibilidade da comunidade da Igreja no seu interior e na sua missão, para o bem do mundo.

Federico Lombardi