Entrevista com o secretário-geral Mario Grech

O Sínodo transforma-se para dar espaço ao povo de Deus

 O Sínodo transforma-se para dar espaço ao povo de Deus   POR-023
09 junho 2021

OSínodo transforma-se para dar espaço ao povo de Deus, a fim de que todos possam fazer ouvir a própria voz. Este é o significado das novidades introduzidas no processo sinodal. O cardeal Mario Grech, secretário-geral do Sínodo dos Bispos, ilustra-as nesta entrevista concedida aos meios de comunicação do Vaticano.

Por que foi adiado o Sínodo?

A assembleia geral ordinária do Sínodo dos Bispos enquanto tal será celebrada em outubro de 2023. Por um lado, houve a dramática situação da pandemia, que aconselhava paciência para um evento eclesial que, em qualquer caso, exige a presença em Roma dos bispos na sua fase celebrativa. Por outro lado, havia a necessidade de aplicar, num prazo mais curto, as normas estabelecidas na constituição apostólica Episcopalis communio. O Papa Francisco publicou este importante documento a 15 de setembro de 2018, transformando o Sínodo de evento em processo. Anteriormente, o Sínodo era, para todos os efeitos, um evento eclesial que se abria e fechava num tempo determinado — geralmente entre três e quatro semanas — e no qual os bispos membros da assembleia estavam empenhados. Esta forma de celebração respondeu à configuração dada ao Sínodo pelo Papa Paulo vi em 1965. No motu proprio Apostolica sollicitudo, de 15 de setembro de 1965, o Papa estabeleceu um organismo de bispos «submetidos direta e imediatamente à autoridade do Romano Pontífice», que participasse — como diz o título do motu proprio — na função petrina de «solicitude por toda a Igreja». O objetivo do Sínodo era «promover uma estreita união e colaboração entre o Sumo Pontífice e os bispos do mundo inteiro»; «obter informações diretas e exatas sobre os problemas e situações que dizem respeito à vida interna da Igreja e à ação que deve desempenhar no mundo atual»; «facilitar a concordância de opiniões pelo menos acerca dos pontos essenciais da doutrina e sobre a forma de agir na vida da Igreja».

O que nos ensina meio século de história dos Sínodos?

A história do Sínodo ilustra quanto bem estas assembleias fizeram à Igreja, mas também que o tempo era maduro para uma participação mais ampla do povo de Deus num processo decisório que diz respeito a toda a Igreja e todos na Igreja. O primeiro sinal foi pequeno, mas significativo: o questionário enviado a todos na primeira assembleia sinodal sobre a família em 2014. Em vez de enviar aos bispos os Lineamenta preparados por peritos, solicitando respostas que permitissem à Secretaria do Sínodo redigir o Instrumentum laboris a ser debatido na assembleia, o Papa pediu que se pusesse em prática uma escuta mais ampla de todas as realidades eclesiais. O discurso de 17 de outubro de 2015, no cinquentenário da instituição do Sínodo, abriu totalmente o cenário sobre a «Igreja constitucionalmente sinodal». Uma das frases mais citadas do Papa Francisco é tirada desse discurso: «Precisamente o caminho da sinodalidade é o caminho que o Senhor espera da Igreja do terceiro milénio» e descrevia a Igreja sinodal como uma «Igreja da escuta», na qual cada um tem de aprender com o outro: povo de Deus, colégio episcopal, bispo de Roma. De facto, nisto está desenhado o processo sinodal, no qual «o Sínodo dos Bispos é o ponto de convergência deste dinamismo de escuta conduzido a todos os níveis da Igreja»: nas Igrejas particulares, na escuta do povo de Deus; nos níveis intermédios da sinodalidade, sobretudo nas Conferências episcopais, onde os bispos exercem a sua função de discernimento; por fim a nível da Igreja universal, na assembleia do Sínodo dos Bispos. Episcopalis communio não faz mais do que sancionar estas ideias.

Em síntese, quais são todas as novidades introduzidas por este documento?

A primeira e maior novidade é a transformação do Sínodo de evento em processo. Já o assinalei: enquanto antes o Sínodo se concentrava na celebração da assembleia, agora cada assembleia do Sínodo se desenvolve de acordo com fases que se sucedem, que a Constituição chama «fase preparatória, fase celebrativa, fase atuativa». A primeira fase tem como objetivo a consulta do povo de Deus nas Igrejas particulares. No discurso do cinquentenário, o Papa insiste muito em ouvir o sensus fidei do povo de Deus. Pode dizer-se que este é um dos temas mais fortes do atual pontificado: muitos intérpretes sublinham corretamente o tema da Igreja como povo de Deus; mas o que mais carateriza este povo para o Papa é o sensus fidei, o que o torna infalível in credendo. Trata-se de um dado tradicional na doutrina, que percorre toda a vida da Igreja: «A totalidade dos fiéis não pode enganar-se na fé», em virtude da luz que vem do Espírito Santo concedida no batismo. O Concílio Vaticano ii diz que o povo de Deus participa na função profética de Cristo. Por esta razão é necessário ouvi-lo, e para o ouvir é necessário ir onde ele vive, às Igrejas particulares. O princípio que rege esta consulta do povo de Deus é o princípio antigo que «deve ser debatido por todos o que é do interesse de todos». Não é uma questão de democracia, de populismo ou algo semelhante; a Igreja é o povo de Deus, e este povo, devido ao batismo, é sujeito ativo da vida e da missão da Igreja.

Por que é importante esta primeira fase preparatória?

O facto de esta fase ser chamada preparatória poderia enganar, como se não fizesse parte do processo sinodal; na realidade, sem esta consulta não haveria processo sinodal, porque o discernimento dos pastores, que constitui a segunda fase, é feito sobre o que emergiu da escuta do povo de Deus. São dois atos estreitamente relacionados, eu diria complementares: as questões que os pastores são chamados a discernir são as que emergirem da consulta, e não outras. O Instrumentum laboris é redigido com base nestes dois atos, que se referem a dois temas: o povo de Deus e os seus pastores. O discernimento dos pastores tem o seu ponto culminante na assembleia sinodal, que reúne o discernimento de todas as Conferências episcopais, nacionais e continentais, e do Conselho dos Patriarcas das Igrejas Orientais. Um ato comum que envolve todo o episcopado católico no processo sinodal. Como não esperar grandes frutos de um caminho sinodal tão amplo e participativo? E como não esperar que as indicações que emergirem do Sínodo se tornem, através da terceira fase, a da execução, um veículo de renovação e de reforma da Igreja?

Qual foi a razão que levou o Papa e a Secretaria do Sínodo a enveredar por este novo caminho?

O processo sinodal não foi concebido com um planeamento; ele emergiu do próprio caminho da Igreja ao longo do período pós-conciliar. No início, tudo estava circunscrito a uma assembleia de bispos. Mas Paulo vi tinha deixado claro que o Sínodo, como qualquer organismo eclesial, é aperfeiçoável. Foi um começo. Sem esse início, provavelmente não estaríamos aqui a falar de sinodalidade e da Igreja constitutivamente sinodal. O tema da sinodalidade foi-se debilitando na prática eclesial e na reflexão eclesiológica do segundo milénio na Igreja católica. Era uma prática típica da Igreja do primeiro milénio, continuada na Igreja ortodoxa. A novidade na Igreja católica é que a sinodalidade reemerge como coroação de um longo processo de desenvolvimento doutrinal, que leva a esclarecer o primado petrino no Vaticano i, a colegialidade episcopal no Vaticano ii e hoje, através da receção progressiva da eclesiologia conciliar, especialmente o capítulo ii da Lumen gentium sobre o povo de Deus, a sinodalidade como forma de participação de todos no caminho da Igreja. Esta é uma grande perspetiva, que une a tradição da Igreja do Oriente e do Ocidente, entregando à Igreja sinodal aquele princípio de unidade que faltava até na Igreja dos Padres, quando a função de unidade era desempenhada até pelo imperador! Portanto, deste caminho sinodal podem ser esperados com confiança grandes frutos a nível ecuménico. O Papa disse no discurso no cinquentenário da instituição do Sínodo: a sinodalidade como dimensão constitutiva da Igreja também oferece um quadro adequado para compreender o ministério hierárquico, especialmente o ministério petrino, com o Papa que — com as palavras do Papa Francisco — «não está sozinho acima da Igreja; mas dentro dela como batizado entre os batizados, e dentro do colégio episcopal como bispo entre os bispos, chamado ao mesmo tempo — como sucessor de Pedro — a guiar a Igreja de Roma que preside com amor a todas as Igrejas». O processo sinodal é o teste decisivo para esta visão verdadeiramente elevada da Igreja.

Que frutos podemos esperar desta nova modalidade de celebrar o Sínodo?

A próxima assembleia sinodal trata a sinodalidade. Afinal, os frutos que se podem esperar já estão implicitamente indicados no título proposto pelo Papa para a assembleia «Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão». Durante muito tempo falou-se de comunhão como um elemento constitutivo da Igreja. Hoje parece claro que tal comunhão ou é sinodal ou não é comunhão. Parece um slogan, mas o seu significado é claro: a sinodalidade é a forma de comunhão da Igreja — o povo de Deus. Na caminhada conjunta do Povo de Deus com os seus pastores, no processo sinodal em que todos participam, cada um segundo a própria função — povo de Deus, colégio episcopal, bispo de Roma — é determinada uma reciprocidade de sujeitos e funções que move a Igreja no seu caminho em frente sob a guia do Espírito. Não se deve esconder que talvez no passado houvesse muita insistência na communio hierarchica: a ideia de que a unidade da Igreja só poderia ser alcançada através do reforço da autoridade dos pastores. Nalguns aspetos, essa passagem também foi necessária, quando, após o Concílio, surgiram várias formas de dissidência. Mas esta não pode ser a forma ordinária de viver a comunhão eclesial, que exige circularidade, reciprocidade, um percurso conjunto no que concerne as respetivas funções no povo de Deus. Portanto, a comunhão só pode ser traduzida na participação de todos na vida da Igreja, cada um de acordo com a sua condição e função específicas. O processo sinodal mostra bem tudo isto.

Várias vezes o Papa Francisco salientou a importância do povo de Deus e a necessidade de dar mais espaço às mulheres na Igreja, e ao mesmo tempo denunciou o risco do clericalismo. Como responde o documento sobre o processo sinodal a estas tensões? Estais a trabalhar para introduzir outras inovações que permitam uma participação mais plena do povo de Deus em todos os seus componentes?

Todo o povo de Deus está envolvido no processo sinodal. A importância dada ao povo de Deus é evidente na consulta, que é o ato fundador do Sínodo. Repito: a consulta já faz parte do processo sinodal, constitui o seu primeiro e indispensável ato. O discernimento depende desta consulta. Aqueles que disserem que não é relevante, que no fundo é apenas um ato preparatório, provavelmente não compreendem bem a importância do sensus fidei do povo de Deus. Como já disse, na Igreja primitiva este era o único exemplo de infalibilidade reconhecido na Igreja: «A totalidade dos fiéis não se engana na fé». Aqui todos têm o seu lugar e a possibilidade de se expressarem. A vontade da Secretaria Geral é permitir que todos possam fazer ouvir a sua voz; que a escuta seja a verdadeira “conversão pastoral” da Igreja. Queira Deus que um dos frutos do Sínodo possa ser que todos nós compreendamos que um processo de tomada de decisões na Igreja começa sempre com a escuta, porque só assim podemos compreender como e para onde o Espírito quer conduzir a Igreja.

Qual será o papel dos bispos?

Não devemos esquecer que o momento de discernimento é confiado sobretudo aos bispos reunidos em assembleia. Alguns dirão que isto é clericalismo, que é um desejo de manter a Igreja em posições de poder. Mas pelo menos duas coisas não devem ser esquecidas. A primeira, reiterada continuamente pelo Papa: que uma assembleia sinodal não é um parlamento. Fazê-lo funcionar com sistemas de representação ou quotas corre o risco de ressuscitar uma espécie de conciliarismo, já em grande parte enterrado. A segunda: o Concílio diz que os bispos são «princípio e fundamento da unidade nas suas Igrejas particulares». Por conseguinte, os bispos têm uma função de discernimento, que lhes pertence em virtude do ministério que desempenham para a Igreja. Na minha opinião, a força do processo reside na reciprocidade entre a consulta e o discernimento. Nisto consiste o princípio fecundo que pode levar a um maior desenvolvimento da sinodalidade, da Igreja sinodal e do Sínodo dos Bispos. Mas não podemos saber isto hoje: quanto mais caminhamos, mais aprendemos à medida que caminhamos. Estou convencido de que a experiência do próximo Sínodo nos dirá muito sobre a sinodalidade e a forma de a concretizar.

Andrea Tornielli