No Angelus de 1 de janeiro, a prece e a preocupação do Papa Francisco pelas crianças do Iémen

Sem educação sem medicamentos, famintas

 Sem educação  POR-001
05 janeiro 2021

«Sem educação, sem medicamentos, famintas», as crianças do Iémen ocupam um lugar especial no coração do Papa Francisco, que no primeiro Angelus do ano novo quis manifestar «pesar e preocupação pelo agravamento da escalada das violências» naquele país árabe, que causam «numerosas vítimas inocentes», sobretudo entre os mais pequeninos, exaustos pela falta de alimentos. Assim, a oração do Pontífice fez-se também apelo «a fim de que se envidem esforços para encontrar soluções que permitam o regresso da paz àquelas martirizadas populações». O bispo de Roma quis presidir à recitação do Angelus, não obstante a dolorosa ciática que o tinha obrigado a renunciar às tradicionais celebrações de 31 de dezembro e de 1 de janeiro na Basílica de São Pedro, presididas respetivamente pelo cardeal decano e pelo secretário de Estado. Ambos os purpurados leram as homilias preparadas pelo Pontífice para a circunstância.

Angelus


Mudança de ritmo


O Santo Padre disse-o e repetiu-o várias vezes durante o  longo ano de  2020 que já terminou: a crise transforma-nos, no fim da crise somos diferentes do que éramos antes, melhores ou piores, mas diferentes.

No último dia do ano, uma dolorosa inflamação do nervo ciático bloqueou o Papa, que não pôde presidir aos ritos do fim e do início do ano. Não é novidade esta sua dor no nervo ciático, mas a coincidência temporal impressiona e faz repercutir o pequeno e simples episódio “clínico”, levando-o a um nível simbólico. O pensamento vai ao texto bíblico e em particular à dor ciática que atinge Jacob, no final do encontro-confronto noturno com o anjo do Senhor no vau de Jaboc. É o episódio da luta de Jacob com Deus (Gn  32, 23-33), um «acontecimento misterioso», como observou Romano Guardini, que «afunda na memória e nela permanece gravado. Talvez não o compreendamos, ou sintamos que está repleto da realidade mais sagrada. Refletimos sobre ele, extraímo-lo e encontramos sempre algo mais». No final do episódio, após a extenuante luta noturna, chega a aurora e com o nascer do sol vemos que Jacob coxeia «porque ele tinha atingido a articulação da coxa de Jacob no nervo ciático».  A luta, um combate corpo a corpo cheio de surpresas, teve lugar durante toda a noite, quando «Jacob estava sozinho».

Este ano de 2020 foi a longa noite em que a humanidade esteve sozinha, travando uma luta extenuante da qual somente nestes últimos dias podemos entrever o fim, o novo nascer do sol.  Deste ano todos recordarão as imagens de 27 de março, com o Papa sozinho debaixo da chuva, no crepúsculo de uma tarde escura, que na desolação da praça de São Pedro saiu para implorar o Senhor, quase como Noé que sob o dilúvio pediu a salvação em nome de todos. O Papa Francisco como Noé, mas agora também como Jacob, que caminha à luz da aurora com maior sentido de força e confiança, porque pediu e recebeu a bênção da parte do anjo do Senhor, ouvindo as suas palavras: «Lutaste com Deus e com os homens, e venceste!». Não é o mesmo Francisco de antes, de há um ano, como aconteceu com o patriarca bíblico (a quem Deus também mudou de nome, de Jacob para Israel), e ambos coxeiam. Tiveram que mudar o ritmo. É a crise que obriga a isto: é o tempo propício para a mudança, para a conversão. Uma mudança de ritmo; isto é necessário para cruzar o limiar de um tempo inédito, promissor de uma nova luz. Só mudando o ritmo, o modo habitual de caminhar, podemos ver o mundo de outra perspetiva. Quem se obstina a caminhar como antes permanecerá com a rigidez de um rigor mortis , mas quem reconhecer que a crise chegou e, confundindo-nos, atingiu todos nós, sem distinções, então viverá.

Há um “indicador” que revela se esta mudança se verificou realmente em profundidade ou se foi apenas um acontecimento emocional e superficial, e até este pormenor sobressai do episódio bíblico: o “indicador” é a nossa relação com os irmãos. Jacob está ali, sozinho, no vau do rio, na angústia do encontro iminente com o temido irmão Esaú. Só depois do encontro-confronto com Deus poderá abraçar e reconciliar-se com o irmão. Este é o caminho que o Papa Francisco nos indica com a encíclica Fratelli tutti , pensada antes mas acabada de escrever durante a pandemia: no momento da crise a saída consiste em pedir a Deus a força para se abrir aos outros, para cuidar dos irmãos, rompendo as correntes do vitimismo e do narcisismo. Seremos cuidados se cuidarmos dos outros. Há um vau à nossa frente que devemos atravessar, e podemos fazê-lo, mas só se estivermos prontos para esta dolorosa e vital mudança de ritmo.

Andrea Monda