Que parábolas
Comunicação apresentada na assembleia da CNBB a 25 de novembro
Um tipo de comunicação de Jesus que faz pensar é aquele patente em frases como esta que servem de fórmulas introdutivas ao seu discurso: «A que é semelhante o Reino de Deus? A que o hei de comparar?» (Lc 13,18). Talvez ainda não valorizamos devidamente essas frases que parecem apenas simples estruturas de passagem e, na verdade, são bem mais. É importante que nos perguntemos o que pretende Jesus com esse recurso de linguagem e o que é que este nos ensina sobre o seu método de interpretação da realidade. Nesse sentido, eu diria que há três coisas que se tornam manifestas.
A primeira delas é que nem sempre é fácil interpretar a realidade. Em tantas situações esta como que resiste ao nosso modo habitual de a descrever e o mete em crise. Na verdade, a pergunta «A que é semelhante o Reino de Deus?» introduz uma espécie de pausa reflexiva, um distanciamento em relação aos saberes feitos; instaura um tempo mais lento dedicado à escuta.
A segunda coisa que aprendemos com estas interrogações de Jesus é que para explicar a vida de Deus e dos homens em profundidade precisamos de parábolas e comparações. E precisamos de parábolas ou de comparações que sejam novas, que relancem as tarefas do olhar. As perguntas de Jesus, de facto, abrem espaço a um discurso não teórico, mas narrativo, existencial e simbólico. Porque a narrativa e a atenção ao símbolo fazem-nos sintonizar diretamente com o real da vida e é aí que Jesus coloca a revelação do Reino de Deus. Sabemos, no entanto, como não é fácil entrar em comunicação com esse núcleo vital e, pelo contrário, como é tentador sobrevoarmos teoricamente a realidade ou permanecermos indiferentes a ela, mesmo aquela que nos está mais próxima.
A terceira coisa a aprender é o facto do discurso de Jesus ter como finalidade ganhar os corações para o Reino de Deus em vez de se ficar pelos meros exercícios da retórica. A retórica faz uma camuflagem da realidade através das palavras, adiando o desejo de verdade e autenticidade. Tão diferente da persuasão evangélica que procura gerar no sujeito crente a plena autoconsciência do presente modelado por Deus, indicando que o Kairós se desenvolve precisamente dentro do krónos, apresentando como desafio para uma hermenêutica profética aquilo que parece apenas a incerta convulsão da história, desafiando-nos a acolher o aqui e o agora, na sua indefinição e dureza, como um misterioso radar para sondar o futuro.
É bom que nos coloquemos perguntas
«A que é semelhante o Reino de Deus? A que o hei de comparar?» (Lc 13,18). Mergulhados nesta situação histórica distópica aberta pela pandemia, que nos encontrou a todos impreparados e destapou uma vulnerabilidade bem maior do que aquela que supúnhamos ser a nossa, também nós nos fazemos perguntas: «A que é que este tempo é semelhante? A que o havemos de comparar?» Apercebemo-nos, e de uma forma dramática, que os nossos discursos, as nossas práticas estabelecidas, os nossos espaços, a nossa organização foram, de um momento para outro, também colocados em crise ou declarados inadequados. E transcorridos estes meses, dentro de nós sabemos como era o passado, mas não sabemos ainda exatamente como será o futuro.
Contudo, Jesus também aqui é o nosso Mestre, pois Ele nos incita a uma auscultação mais profunda da realidade e a nos colocarmos corajosamente perguntas, em vez de nos precipitarmos em procurar no nosso alforge o que julgamos serem já respostas. De facto, um elemento de novidade destes tempos difíceis que vivemos é o património de perguntas que muitos se estão fazendo, e perguntas que não se debruçam apenas sobre o imediato e a sua obsidiante vertigem, mas que se prendem com o sentido da vida, com a avaliação crítica daquilo que a sociedade moderna coloca como prioritário, com a forma como cada um tem habitado o real. É bom que nos coloquemos perguntas. E também a nível eclesial. Não desperdicemos a oportunidade que representa fazermo-nos perguntas. Isso o escritor João Guimarães Rosa sublinhava: «Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é a fazer outras maiores perguntas». A Igreja tem essa responsabilidade: a de promover as «maiores perguntas».
A praça vazia e a barca onde estamos todos
Que parábolas e comparações podem hoje aproximar o Reino de Deus da nossa linguagem e da nossa experiência vital? Que parábolas e comparações nos estão a abrir à compreensão desde momento do mundo que, como insiste o Papa Francisco, não se carateriza apenas por uma enxurrada de mudanças, mas protagoniza efetivamente uma mudança de época? Recordo as suas palavras em Florença, em novembro de 2015, dirigidas aos participantes do v Congresso da Igreja Italiana: «Pode-se dizer que hoje não vivemos uma época de mudança mas uma mudança de época. Portanto, as situações que vivemos hoje apresentam desafios novos que para nós às vezes são até difíceis de compreender. Este nosso tempo exige que vivamos os problemas como desafios e não como obstáculos».
Foi o próprio Papa Francisco que nos ofereceu, num dos momentos mais terríveis do curso desta pandemia, duas imagens simbólicas que nos ajudam a concretizar aquilo que o Concílio Vaticano ii, na «Gaudium et Spes» chamava o «dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho» (gs, 4). Naquela oração extraordinária no Sagrado diante da Basílica de São Pedro (27 de março de 2020), o Santo Padre ofereceu-nos duas imagens que à primeira vista parecem contrapostas, pois de um lado temos o vazio e do outro lado o cheio; de um lado temos a Praça sem ninguém e do outro temos a Barca onde estão todos. A imagem da Praça de São Pedro representava simbolicamente a inaudita situação dramática das nossas ruas repentinamente silenciosas, dos espaços públicos despovoados, das nossas Igrejas vazias devido à emergência sanitária e à necessidade de confinamento. O vazio é a parábola que os nossos olhos veem. Mas Francisco escolheu para interpretar essa imagem uma imagem evangélica de sentido inverso. De facto, no texto de Marcos 4, 35-41 o Papa sublinhou que, «surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda», «demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento». O vazio, revisto pela comparação que nos é dada pela Palavra de Deus, não é só vazio, mas possibilidade de ganhar uma nova consciência de tudo o que nos liga como comunidade humana. Um dos frutos desta pandemia, podemos dizê-lo, é já a Encíclica «Fratelli tutti» sobre a fraternidade a a amizade social, que vem explicar que «uma tragédia global como a pandemia da Covid-19» nos recorda «que ninguém se salva sozinho, que só é possível salvar-nos juntos» (ft, 32) e que há uma coisa ainda pior que a pandemia: é o vírus do «salve-se quem puder» rapidamente traduzido no lema «todos contra todos» (ft, 36). Na verdade, como escreveu Albert Camus no seu romance «A Peste», o bacilo da peste pode chegar e ir embora sem que o coração do Homem se modifique. A tarefa urgente que hoje se coloca à Igreja é trabalhar o coração humano, persuadi-lo da verdade do Evangelho, acreditando que dentro deste Krónos, com a força generativa do Espírito Santo, pode emergir o Kairós.
A sala dos abraços e o portal
«A que é semelhante o Reino de Deus? A que o hei de comparar?» (Lc 13,18). Se olharmos em nosso redor, mesmo num tempo que parece blindado na sua incerteza, há tantas parábolas que nos estão a ser contadas. Vou referir brevemente três: duas retiradas do jornal e uma da Palavra de Deus. A primeira aconteceu numa Casa de Repouso para idosos, em Itália. Sabemos como a pandemia tem forçado a tantos «lutos relacionais»: desde os distanciamentos interpessoais à suspensão das saudações que trocávamos uns com os outros (o aperto de mão, o abraço entre amigos, o beijo entre os parentes), impedindo o exercício comum da nossa humanidade e fazendo crescer o isolamento e a solidão. Entre a população mais idosa um risco real é o sentimento de abandono e a depressão, pois faltam as visitas, a proximidade e os carinhos. Ora, esta instituição criou a sala dos abraços. Em conformidade com todos os regulamentos de saúde, os utentes da casa de repouso poderão abraçar seus filhos, netos e parentes protegidos por uma cortina especial de plástico que lhes permite dialogar sem dificuldade e ter também um contacto visual e físico que faz com que se sintam amparados e fortalecidos emocionalmente. Esta parábola da sala dos abraços faz-nos interrogar que necessidade é esta? Que parábola nos está a ser contada por todos os abraços não dados e pelo desejo de voltar às expressões habituais dos nossos afetos? Um abraço é uma escola de humanidade. O abraço é uma longa conversa que acontece sem palavras. Tem uma incrível força expressiva. Comunica a disponibilidade para entrar em relação com os outros, superando o dualismo, fazendo cair armaduras e desculpas. Os abraços são a arquitetura íntima da vida, o seu desenho invisível; são plenitude consentida ao afeto que reconcilia e revitaliza. Num abraço, tudo o que tem de ser dito soletra-se no silêncio, e ocorre isto que é tão precioso e afinal tão raro: sem defesas, um coração coloca-se à escuta de outro coração. É bom ver como a pandemia nos acorda para reconhecermos o valor de dimensões da vida e da humanidade e, nesse sentido, nos reconduz ao essencial.
Ainda uma parábola retirada do jornal é aquela que surge num texto da escritora de origem indiana Arundhati Roy: a imagem do portal. Escreve ela: «Historicamente as pandemias obrigaram os seres humanos a romper com o passado e a imaginar de novo o seu mundo. Esta não é diferente. É um portal, uma porta entre um mundo e o seguinte. Podemos optar por cruzá-lo arrastando atrás de nós as carcaças do nosso prejuízo e ódio, da nossa avareza, dos nossos bancos de dados e ideias mortas, dos nossos rios mortos e dos céus cheios de fumos. Ou podemos atravessá-lo caminhando ligeiros, com pouca bagagem, prontos para imaginar outro mundo».
O mensageiro e o campo novo
Quando penso naquilo que hoje a Palavra de Deus nos está dizendo, frequentemente me vem ao pensamento o capítulo 32 do Livro do Profeta Jeremias. A sua situação não podia ser mais complexa, se não mesmo desesperada. Jeremias está preso no palácio real de Judá, acusado de haver profetizado contra o rei Zedequias, anunciando-lhe a derrota contra Nabucodonosor, a destruição de Jerusalém e o exílio do povo em Babilónia. Ora, precisamente neste contexto histórico extremo chega a Jeremias um mensageiro com uma surpreendente proposta em contraciclo. Visita-o o seu primo Hanameel que lhe diz: «Compra a propriedade que tenho em Anatote, no território de Benjamim, porque é teu o direito de posse e de resgate» (v. 8). E por ser uma iniciativa tão nova e desbloqueadora, Jeremias compreendeu que essa palavra provinha do Senhor. Na sua oração, o profeta não deixa, porém, de manifestar o seu espanto: «As rampas de cerco são erguidas pelos inimigos para tomarem a cidade, e pela guerra, pela fome e pela peste, ela será entregue nas mãos dos babilónios que a atacam... Ainda assim, ó Soberano Senhor, tu me mandaste comprar a propriedade e convocar testemunhas do negócio, embora a cidade esteja entregue nas mãos dos babilónios!» (vv. 24-25). E o Senhor lhe responde com uma promessa: «Eu os reunirei de todas as terras para onde os dispersei... Eu os trarei de volta a este lugar e permitirei que vivam em segurança... Farei com eles uma aliança permanente» (v. 37.40).
Que tempo é este que estamos a viver? A que o havemos de comparar? Podemos, efetivamente, olhar apenas para o assédio devastador desta crise que começa por ser sanitária, mas que depressa contaminou tantos outros âmbitos, tornando-se uma crise poliédrica: económica, social, política, eclesial, civilizacional. Ou podemos perceber, numa leitura crente e esperançada da história como o faz Deus incansavelmente, que esta hora, com todos os seus constrangimentos é afinal um kairós, uma oportunidade para relançar a nossa aliança com a vida. Este não é o momento para fazer cair os braços em desânimo, mas é um tempo para apostas de confiança. Não é só um compasso de espera que nos deixa como que suspensos numa dolorosa indefinição: é também um desafio à interlocução com o futuro e a dar passos concretos na sua direção. Não é só um tempo para fechar a semente no celeiro enquanto se aguardam as condições que consideramos propícias: este é um tempo bom para os semeadores saírem para o campo, para os pescadores se aventurarem no lago. Não é só uma estação para gerir aflições crescentes: é também a ocasião em que Deus nos ordena que arrisquemos como Igreja e que compremos um campo novo.
«A que é semelhante o Reino de Deus? A que o hei de comparar?» (Lc 13, 18), perguntava-se Jesus. Hoje cabe-nos a nós fazer esta pergunta. Mas para isso precisamos realizar uma auscultação espiritual e autêntica da vida; precisamos de não nos fecharmos num discurso abstrato ou num sistema fechado, mas de nos abrirmos à leituras das histórias e dos exemplos que estão hoje diante dos nossos olhos; e precisamos, por fim, de uma hermenêutica profética da história que revele que Jesus Cristo é o seu centro.
José Tolentino de Mendonça
Cardeal arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana