O Papa invocou um novo modelo de organização social contra a devastação causada pela pandemia

Solidariedade e justiça
para a América Latina

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01 dezembro 2020

Na América Latina — onde a pandemia «amplificou e tornou ainda mais evidentes os problemas e as injustiças socioeconómicas» — a sociedade deve reorganizar-se com base em três verbos: «contribuir, compartilhar e distribuir», afirmou o Pontífice na seguinte mensagem de vídeo enviada aos participantes no seminário virtual sobre o tema «América Latina: Igreja, Papa Francisco e os cenários da pandemia». Organizado pela Pontifícia Comissão para a América Latina, pela Pontifícia Academia das Ciências Sociais e pelo Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), o encontro teve lugar de 19 a 20 de novembro.

Saúdo os participantes neste seminário virtual intitulado «América Latina: Igreja, Papa Francisco e os cenários da pandemia», cujo objetivo é refletir e analisar a situação da pandemia de Covid-19 na América Latina, as suas consequências e, sobretudo, as possíveis linhas de ação e ajuda solidária que deverão ser fomentadas por todos aqueles que fazem parte e tecem a beleza e a esperança do continente. Estou grato aos organizadores por esta iniciativa e espero que possa inspirar caminhos, despertar processos, criar alianças e impulsionar todos os mecanismos necessários para garantir uma vida digna aos nossos povos, especialmente aos mais excluídos, através da experiência da fraternidade e da construção da amizade social. Quando digo os mais excluídos, não o digo como no sentido de dar esmola aos mais excluídos, nem como um gesto de caridade, não, digo-o como chave hermenêutica. Temos que começar por ali, por todas as periferias humanas, todas; se não começarmos por ali, erraremos. E talvez esta seja a primeira depuração do pensamento que temos de fazer.

A pandemia de Covid amplificou e tornou ainda mais evidentes os problemas e as injustiças socioeconómicas, que já afetavam gravemente toda a América Latina e, com maior incisividade, os mais pobres.

Perante as desigualdades e a discriminação, que aumentam o fosso social, há também as condições difíceis em que se encontram os doentes e muitas famílias que atravessam momentos de incerteza e sofrem situações de injustiça social. E isto evidencia-se pela constatação de que nem todos dispõem dos recursos necessários para tomar as medidas básicas de proteção contra a Covid-19: teto seguro onde poder manter o distanciamento social, água, e produtos sanitários para higienizar e desinfetar os ambientes, trabalho estável que garanta o acesso aos serviços, citando os mais imprescindíveis. Penso que devemos ter isto muito presente. Significa ser concreto. Não só como medida de proteção — como disse há pouco — mas também como factos que nos devem preocupar. Todos têm um teto seguro? Todos têm acesso à água? Têm produtos para higienizar e desinfetar os ambientes? Têm um emprego estável? A pandemia tornou ainda mais visíveis as nossas vulnerabilidades preexistentes.

Neste momento penso inclusive nos irmãos e irmãs que, além de sofrer o impacto da pandemia, veem com tristeza que o ecossistema à sua volta está em sério perigo, devido aos incêndios florestais que destroem vastas áreas como o pantanal e a Amazónia, que são o pulmão da América Latina e do mundo.

Estamos conscientes de que continuaremos a sentir os efeitos devastadores da pandemia durante muito tempo, especialmente nas nossas economias, que exigem atenção solidária e propostas criativas para aliviar o fardo da crise. No Reino de Deus, que começa já neste mundo, o pão chega para todos e sobra; a organização social baseia-se na contribuição, partilha e distribuição, e não na posse, exclusão e acumulação. Acho que estas duas tríades devem cadenciar um pouco o ritmo do nosso pensamento. No Reino de Deus, o pão chega para todos e sobra; e a organização social baseia-se na contribuição, partilha e distribuição, e não na posse, exclusão e acumulação. Por conseguinte, todos nós somos chamados, individual e coletivamente, a levar a cabo o nosso trabalho ou missão com responsabilidade, transparência e honestidade.

A pandemia trouxe à tona o melhor e o pior dos nossos povos, o melhor e o pior de cada pessoa. Agora, mais do que nunca, é necessário retomar a consciência da nossa pertença comum. O vírus lembra-nos que a melhor maneira de cuidar de nós próprios é aprender a cuidar e proteger quantos estão ao nosso lado: consciência de bairro, consciência de povo, consciência de região, consciência de casa comum. Sabemos que, além da pandemia de Covid-19, existem outros males sociais — falta de teto, de terra e de trabalho, os famosos três “tês” — que servem como indicadores e exigem uma resposta generosa e a atenção imediata.

Diante deste panorama sombrio, os povos latino-americanos ensinam-nos que são povos com almas que souberam enfrentar as crises com coragem e gerar vozes que, gritando no deserto, aplanaram o caminho para o Senhor (cf. Mc 1, 3). Por favor, não deixemos que nos roubem a esperança! O caminho da solidariedade como justiça é a melhor expressão de amor e proximidade. Podemos sair melhores desta crise, e muitas das nossas irmãs e irmãos testemunharam isto na doação diária da própria vida e nas iniciativas que o Povo de Deus gerou.

Vimos «a força ativa do Espírito, derramada e plasmada na dedicação corajosa e generosa» (Momento extraordinário de oração em tempos de epidemia, 27 de março de 2020). Sobre este aspeto, dirijo-me também a quantos exercem responsabilidades políticas e, uma vez mais, permito-me convidar a reabilitar a política, que «é uma vocação muito elevada, uma das formas mais preciosas de caridade, porque procura o bem comum». Como disse na recente Encíclica Fratelli tutti: «Reconhecer todo o ser humano como um irmão ou uma irmã e procurar uma amizade social que integre a todos não são meras utopias. Exigem a decisão e a capacidade de encontrar percursos eficazes que assegurem a sua real possibilidade. Todo e qualquer esforço nesta linha torna-se um exercício alto da caridade. Com efeito, um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, entra no “campo da caridade mais ampla, a caridade política”. Trata-se de avançar para uma ordem social e política, cuja alma seja a caridade social» (n. 180).

E isto exige de todos nós, que desempenhamos um papel de liderança, que aprendamos a arte do encontro e não encorajemos nem apoiemos ou utilizemos mecanismos que façam da grave crise um instrumento de caráter eleitoral ou social. A profundidade da crise exige proporcionalmente a competência da classe política dirigente, capaz de elevar a sua visão e de dirigir e orientar as diferenças legítimas na busca de soluções viáveis para os nossos povos. A única coisa que desacreditar o próximo obtém é minar a possibilidade de encontrar acordos que ajudem a aliviar os efeitos da pandemia nas nossas comunidades, mas principalmente para os mais excluídos. E na América Latina, não sei se em toda a parte, mas em boa parte da América Latina, temos a grande capacidade de progredir no descrédito do outro. Quem paga por este processo de descrédito? É o povo que o paga, nós progredimos no desacreditar o outro em desvantagem dos mais pobres, à custa do povo. É tempo que a marca distintiva daqueles que foram eleitos pelo seu povo, para o governar, seja o serviço do bem comum e não que o bem comum seja posto ao serviço dos seus interesses. Todos nós conhecemos as dinâmicas da corrupção que se verifica nesta área. E isto vale também para os homens e mulheres de Igreja; pois as dinâmicas eclesiásticas internas são uma verdadeira lepra que faz adoecer e mata o Evangelho.

Exorto-vos, impelidos pela luz do Evangelho, a continuar a sair com todas as pessoas de boa vontade em busca de quantos pedem ajuda, à maneira do Bom Samaritano, abraçando os mais fracos e construindo — trata-se de uma expressão muito gasta, mas digo-a de igual modo — uma nova civilização, pois «o bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam de uma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia» (Fratelli tutti, 11).

Face a estes grandes desafios, peçamos à Virgem de Guadalupe que a nossa terra latino-americana não se “desmadre”, ou seja, que não perca a memória da sua mãe. Que a crise, longe de nos separar, nos ajude a recuperar e a valorizar a consciência desta mestiçagem comum que nos irmana e torna filhos de um mesmo Pai.

Mais uma vez, far-nos-á bem recordar que a unidade é superior ao conflito. Que o seu manto, o seu manto de Mãe e de Mulher, nos proteja como um só povo que, lutando pela justiça, possa dizer: «Acolheu a Israel, seu servo, recordando a sua misericórdia, conforme prometera aos nossos pais» (Lc 1, 54-55). Muito obrigado!