Entrevista ao padre Juan Gabriel Arias, missionário argentino em Moçambique

Recuperar a humanidade para habitar o mundo digna e responsavel

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10 novembro 2020

Todos os dias, sem exceção, um “exército” de valor incalculável e muitas vezes invisível composto por milhões de missionários e missionárias, sem outras armas além da dedicação, solidariedade e esperança, leva o Evangelho e também o Magistério e a palavra do Papa Francisco a todos os cantos do planeta. Graças a estes enviados, a nova encíclica do Papa sobre fraternidade e amizade social chegou também a Moçambique — um país duramente atingido durante décadas pela guerra, violência e pobreza — como um sopro de paz e esperança. «Para a Igreja em Moçambique, Fratelli tutti faz parte de um caminho iniciado no ano passado durante a visita apostólica de Francisco. Não há dúvida de que em Moçambique a fraternidade é o complemento da paz e da misericórdia», diz Juan Gabriel Arias, um sacerdote argentino enviado pelo então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio em 2000 a este país africano, um dos mais pobres do continente e do mundo.

A sua paixão pela África tinha nascido muito antes, era fruto do seu desejo de ajudar os outros, da sua vocação como missionário de dedicar a sua vida a proclamar o Evangelho àqueles que ainda não o conhecem. Assim que pôs os pés em Moçambique, mergulhou na realidade das populações mais abandonadas e carenciadas e iniciou todo o tipo de atividades educativas, sanitárias e de ajuda social na comunidade. Acabou por se tornar uma enciclopédia viva do lugar, aprendendo as línguas locais e vivendo em lugares onde poucos conseguem chegar. A sua missão é evangelizar, mas em África o conceito ocidental de evangelização não faz justiça a essa realidade.

O padre Juan Gabriel, nesta entrevista a “L'Osservatore Romano”, apresenta a realidade de um continente frequentemente esquecido e descreve como as pessoas estão a viver ali, com solidariedade, o tempo da pandemia. Ele explica como, no meio da crise, os mais necessitados partilham com o próximo, através da Igreja, o pouco que têm. E relata também a importância para a Igreja moçambicana das reflexões feitas pelo Papa Francisco na sua nova encíclica e a forma como foi acolhida nas suas comunidades.

Como se pode definir a última encíclica do Papa Francisco?

A Encíclica Fratelli tutti é, sem dúvida, um manifesto para o nosso tempo. Ao lê-la sentimo-nos chamados a uma tomada decisiva de responsabilidade, tanto individual como coletiva. É certamente uma encíclica para reorientar a própria vida. Perante a pandemia, a crise económica, o aumento da pobreza, a crise da representação política, as guerras sangrentas e intermináveis, as migrações e muito mais, Francisco propõe-se redescobrir e praticar a “fraternidade universal”, ou seja, convida-nos a recuperar a humanidade. Recuperar a humanidade não é uma alternativa, mas a única maneira de habitar o mundo de uma forma digna e responsável. São João da Cruz disse que no ocaso da vida seremos julgados pelo amor e penso que toda a civilização humana também o será. A encíclica expressa claramente a necessidade dos valores de paz, justiça, solidariedade e proteção ambiental... mas não de uma forma abstrata!

Francisco retoma no seu documento o impulso de renovação que animou o Concílio Vaticano ii, começando com João xxiii e passando por São Paulo vi e São João Paulo ii, onde a fraternidade indica o caminho à humanidade. Para a Igreja em Moçambique, este documento faz parte de um caminho iniciado no ano passado durante a visita apostólica, quando Francisco lançou apelos contínuos a favor da paz. Não há dúvida de que em Moçambique a fraternidade é um complemento da paz e da misericórdia. É um texto que infunde esperança!

A esperança num mundo onde, todos os dias, e não só em África, a lógica da opressão, utilitarismo e violência parece prevalecer.... Como pode esta realidade ser invertida?

A  encíclica é apenas uma advertência a que não nos concentremos em coisas passageiras mas a dedicar a nossa atenção àquilo a que estamos destinados. A paz interior da qual Santo Agostinho nos fala não é possível se não nos esforçarmos ativamente para nos entregarmos ao outro, para falarmos com aqueles que esperam para nos ouvir. Estes são temas tratados por Francisco nesta encíclica, juntamente com outros ainda mais profundos, tais como perdão, aceitação, amizade e fraternidade.

A África continua a ser o continente menos atingido pela Covid-19 em termos de número de mortes e casos positivos. As previsões dos organismos internacionais em março e abril foram muito alarmistas...

Quando a pandemia de coronavírus surgiu, tudo indicava que os seus efeitos seriam devastadores em África. E em muitos países africanos a transmissão foi elevada, mas a gravidade e a mortalidade foram muito inferiores às previsões iniciais, com base na experiência da China e da Europa. Em Moçambique as pessoas pensavam que em África uma explosão de casos de Covid-19 como a europeia teria sido catastrófica, considerando a sobrecarga e subfinanciamento dos sistemas de saúde. Mas, na realidade, a letalidade do vírus é atualmente inferior à de outros lugares. Existem várias teorias sobre a razão pela qual o vírus é menos letal aqui. Algumas envolvem diferenças climáticas, imunidade preexistente, fatores genéticos e diferenças comportamentais. Então a África está fora de perigo? Claramente não. O vírus ainda está a circular e não sabemos o que irá acontecer à medida que a sua interação com as pessoas aumentar.

Mas uma coisa é clara: os efeitos secundários da pandemia serão um verdadeiro desafio para a África. Refiro-me às graves interrupções das atividades económicas e sociais, aos efeitos potencialmente devastadores da redução dos serviços de assistência que protegem milhões de pessoas, tais como vacinações regulares e programas de controlo da malária, tuberculose e vih. A pobreza, a desigualdade e a crise ambiental são alguns dos problemas que agravam os efeitos da Covid-19.

Qual foi a reação da sua comunidade eclesial à Covid-19?

As pessoas estavam mal informadas. Tive de preparar em pouco tempo 12 jovens para levar a cabo uma campanha de prevenção do vírus em todas as comunidades. A minha paróquia presta assistência a 45 comunidades que, por razões geográficas, estão divididas em 9 áreas. As distâncias entre elas são enormes e não há eletricidade. Não têm acesso à informação da Internet e da televisão. Os 12 operadores foram de casa em casa, batendo em cada porta, para dar informações sobre o vírus e deixar folhetos explicativos escritos por nós. O momento mais difícil foi sem dúvida a Semana Santa. A suspensão dos serviços religiosos afetou grandemente a comunidade, e além disso a proibição do governo de orar nas igrejas gerou um curto-circuito cultural em duas das nove áreas. No passado, durante a guerra, estas áreas foram as protagonistas de uma verdadeira perseguição religiosa. E a falta de informação levou as pessoas a pensar que, como aconteceu durante o comunismo, tinham de defender a sua fé e, por isso, reuniram-se na selva para rezar clandestinamente e defender a Igreja. Saíram de casa com os cântaros tradicionais na cabeça onde, em vez de água, colocaram os textos do catecismo. Lutámos para que as pessoas compreendessem que a pandemia era algo diferente. Numa das zonas mais pobres as pessoas pensavam que não podendo eu visitar as comunidades não recebia ofertas, por isso deviam ajudar-me  porque talvez eu estivesse a morrer de fome.

É um costume local que quando se vai à missa ou quando visito pessoalmente as comunidades, as pessoas que nada têm oferecem à paróquia os poucos frutos do seu trabalho nos campos: milho, mandioca e outros produtos da terra. Chamaram-me e juntaram a recolha comunitária para a paróquia, o fruto do trabalho das terras dos mais pobres. Recebi muitas mensagens dos meus fiéis e testemunhei gestos verdadeiramente incríveis.

Nunca como hoje compreendemos que estamos “todos no mesmo barco”, e que “ninguém se pode salvar sozinho”, como o Papa Francisco nos lembrou. Mas parece que, nalguns casos, a solidariedade entrou em “quarentena”...

A Igreja nunca entra em quarentena. Em muitas ocasiões, enquanto as ongs ou programas de agências internacionais enviam pessoal para situações de perigo, nós permanecemos. Geralmente todos fazem um bom trabalho, mas quando a situação se torna perigosa, é sempre a Igreja e os seus missionários que ficam. Não podemos abandonar as pessoas que estão a atravessar uma crise. É normal que com a pandemia as instituições internacionais, os países e, atrevo-me a dizer, até as famílias que ajudavam, estão a reorganizar-se, a apertar o cinto face à crise, e isto tem profundas repercussões na ajuda; nós fazemos o que podemos. Graças a Deus, o projeto de oferecer refeições, que envolve uma população de mais de 15.000 crianças, por enquanto consigo dar-lhe continuidade, mesmo se o número de pessoas que o pede e precisa dele esteja a aumentar.

Certamente  a vida complicou-se com a pandemia, mas devemos lembrar que isto é apenas uma amostra das dificuldades que virão se não agirmos decisivamente contra os fatores estruturais que condicionam o mundo, tais como a pobreza e as alterações climáticas.

Silvina Pérez