Uma chave interpretativa musical para compreender “Fratelli tutti”

Introdução à poesia social

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10 novembro 2020

No âmago da última encíclica do Santo Padre há uma pequena nota de samba (de bossa nova, para ser exato). Quase todos os comentadores prestaram atenção à presença do nome, repetido várias vezes, do imã Ahmad al-Tayyeb; no que me diz respeito, fiquei mais impressionado com o de Vinícius de Moraes, poeta e diplomata.  É sobre esta presença que gostaria de meditar, de modo especial, e sobre a citação da famosa canção de Vinícius, Samba da bênção (numa nota de rodapé, o Papa Francisco chega a especificar a gravação à qual referir-se, a gravação ao vivo de 1962, no restaurante “Au Bon Gourmet”, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro).

Certamente, a citação do compositor de Garota de Ipanema pode parecer anedótica, especialmente se compararmos o refrão com o Documento sobre a fraternidade em prol da paz mundial e da convivência comum, solenemente assinado em Abu Dhabi em fevereiro de 2019. Mas na minha fé, a qual admito que é um pouco ingénua, tenho tendência a pensar que até as anedotas de uma encíclica têm uma relação com o Espírito Santo. Além disso, mencionar uma canção brasileira no momento em que o Brasil é o país da América Latina mais atingido pela pandemia do coronavírus, não pode deixar de ter uma profunda intenção.

Objetar-se-á, certamente, que o samba tem pouco a ver com uma procissão do Santíssimo Sacramento; talvez, pensando no samba do Carnaval, haja indignação ao ouvir-me evocar dançarinas ágeis e seminuas, sobre assuntos tão sérios. Não se está totalmente enganado. Eu também não gostaria de ouvir um prelado falar sobre Fratelli tutti  de um ponto de vista sedutor como este. Mas sou um leigo. Um entre outros. E esta é a minha maneira de ouvir «a música do Evangelho» (n. 277).

Eis a citação que Francisco tira de Vinícius: «A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida» (n. 215). Assim começa a parte do capítulo seis, intitulada «Uma nova cultura». Ela remete para um dos princípios do pontificado: «A unidade é superior ao conflito», o que significa, como em seguida recorda a encíclica (nn. 237-240), que «o conflito é inevitável», «inelutável», e que a unidade só se obtém mediante uma passagem (uma páscoa) para o nível superior, para uma «verdade transcendente», que assume as posições opostas, superando-as. Assim, a bossa nova atravessa as dissonâncias e as síncopes (Desafinado, de Tom Jobim), para alcançar uma harmonia mais elevada, inesperada e inaudita. Longe de ser obstáculos, as divergências constituem ocasiões para se abrir ao outro como outro. Fazem parte da arte viva do encontro.

Na sua origem, o samba é emblemático desta arte viva. É uma manifestação da «cultura popular» que se desenvolve «quando as diferentes riquezas culturais de um país dialogam de modo construtivo» (n. 199). Nasce nos bairros degradados do Rio, pouco depois da abolição da escravatura. O seu nome, tão brasileiro, deriva das línguas bantas. Os seus ritmos são um eco dos tambores africanos. No final da canção, Vinícius de Moraes diz que «o samba nasceu lá na Bahia. E se hoje ele é branco na poesia, ele é negro demais no coração».

Na verdade, o samba é multicolorido e corresponde bastante bem à metáfora do «poliedro» que a caneta do Papa retoma cinco vezes, duas vezes imediatamente após a citação de Vinícius. Cada face desta forma geométrica tem a sua existência e a sua delimitação, cada uma delas está virada para uma própria direção, mas associa-se às demais numa unidade que só se manifesta se sairmos do plano para entrar num espaço tridimensional.

Assim, o samba brota do encontro entre os ameríndios da Bahia, os afro-brasileiros, os judeus russos, os ciganos, os polacos e muitos outros que imigraram com a sua cultura, passando a construir juntos «o mesmo barco» (n. 30), eles que representavam a classe trabalhadora dos estaleiros navais. No início, a classe média alta rejeitou o samba como obsceno e vulgar, mas depois acabou por o reconhecer, por o integrar, concedendo-lhe «plena cidadania», de tal forma que no final esta música reúne numa mesma arca toda a diversidade variegada de um país multifacetado. O mesmo vale para o tango. O escritor Michel Plisson resume assim esta confluência improvável: «Um ritmo afro, em que músicos italianos tocam melodias da Europa do Leste com instrumentos alemães e com palavras provenientes das zarzuelas espanholas». Pouco a pouco, o todo passa das favelas para a alta sociedade, dos bordéis de Buenos Aires para os salões europeus.

Portanto, tango e samba são conquistas e símbolos daquela fecunda fraternidade a que o Papa nos chama. Muitas partes da sua encíclica podem ser lidas à luz desta experiência latino-americana, musical e dançante. Esta, por exemplo: «Exortei os povos nativos a cuidarem das suas próprias raízes e culturas ancestrais, mas esclarecendo que não era “minha intenção propor um indigenismo completamente fechado, a-histórico, estático, que se negue a toda e qualquer forma de mestiçagem”, pois “a própria identidade cultural aprofunda-se e enriquece-se no diálogo com os que são diferentes, e o modo autêntico de a conservar não é um isolamento que empobrece”. O mundo cresce e enche-se de nova beleza, graças a sucessivas sínteses que se produzem entre culturas abertas, fora de qualquer imposição cultural»  (n. 148).

No mesmo sentido, podem-se compreender a atenção e a confiança que é necessário dar aos «movimentos populares» e o dever, não de os controlar, mas de assegurar «que estes movimentos, estas experiências de solidariedade que crescem de baixo, do subsolo do planeta, confluam, sejam mais coordenados, se encontrem».

É por isso que o Papa elogia os «poetas sociais», «promotores de um processo para o qual convergem milhões de pequenas e grandes ações interligadas de modo criativo, como numa poesia».

Não se trata de uma «imagem poética», como diria uma expressão pejorativa. A poesia social é a própria expressão «da fé que opera pela caridade» (Gl 5, 6). A carta de São Tiago realça: «Aquele que escuta a palavra sem a praticar», ou seja, mais literalmente — dado que o vocábulo grego é poiêtês — sem se tornar poeta, «assemelha-se a alguém que contempla num espelho a fisionomia que a natureza lhe deu: contempla-se e, mal sai dali, esquece-se de como era» (Tg 1, 23-24).

Recordar quem somos é ser O poetinha da Palavra divina, pois a criação é uma grande poesia dramática, composta por uma multidão de poemas visíveis que nos permitem divisar o invisível (cf. Rm 1, 20); a nossa tarefa de cristãos consiste em reconhecer em cada criatura uma poesia do Eterno, e como povo que entoa salmos, como pacificadores, seguindo o Verbo que se tornou carpinteiro judeu, para permitir que «o conjunto das diferentes vozes forme um canto nobre e harmonioso, e não gritos fanáticos de ódio» (n. 283).

No final do Samba da bênção, Vinícius de Moraes recita um rosário de nomes próprios, nomes de músicos que tinham contribuído para a renovação daquela música que transfigurava a história violenta da colonização na possibilidade melódica de uma comunhão. Sem dúvida, houve a deportação dos escravos, o exílio dos judeus para o Rio de Janeiro ou para Buenos Aires, e até a fuga de alguns nazistas (Alfred Noble fabricava bandoneões para a Argentina durante os anos 1930-40 em Karlsfeld, no distrito de Dachau). É claro que ainda há gritos fanáticos de ódio e a fria  instrumentalização da ideologia. No entanto, apesar disto, através de tudo isto, eis o tango, eis o samba, eis os sinais que nos convidam a pensar na misericórdia, como numa força discreta mas sempre ativa na sucessão das gerações, e a resgatar o tempo (cf. Ef 5, 16).

Portanto, que Fratelli tutti retome as palavras de um samba nada tem de anedótico. O concerto que teve lugar no dia 2 de agosto de 1962, no restaurante de Copacabana “Au Bon Gourmet”, e que agora se encontra nas páginas de uma encíclica assinada a 3 de outubro de 2020 em Assis, revela-nos muito bem as voltas e reviravoltas da providência. Noutro dos seus versos o Samba da bênção anunciava: «O bom samba é uma forma de oração, se o quiseres». Na última parte do concerto citado e datado na nota 204 da encíclica, Vinícius de Moraes, Tom Jobim, João Gilberto, Os Cariocas, Octávio Bailly e Milton Banana voltaram a encontrar-se na cena, para cantar todos juntos: «Vai tua vida / teu caminho é de paz e amor / Abre os teus braços e canta / a última esperança / A esperança divina / de amar em paz». Pode parecer adocicado. Contudo, é muito exigente — a última esperança — pois supõe a destruição dos ídolos para descobrir pessoas em carne, osso e espírito, a fim de combater «a boa batalha do encontro» (n. 217), «para que o nosso coração se encha de rostos e de nomes» (n. 195).

Fabrice Hadjadj