Fitar os outros como irmãos e irmãs para nos salvar a nós e ao mundo

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06 outubro 2020

Estamos circundados pelas “sombras de um mundo fechado”, mas há quem não se rende ao avanço das trevas e continua a sonhar, a esperar e a sujar as mãos, comprometendo-se a criar fraternidade e amizade social. A terceira guerra mundial em pedaços já começou, a lógica de mercado baseada no lucro parece predominar sobre a boa política, a cultura do descarte parece prevalecer, o clamor dos povos da fome não é ouvido, mas há quem indique uma forma concreta para construir um mundo diferente e mais humano.

Há cinco anos, o Papa Francisco publicou a encíclica Laudato si’, fazendo compreender claramente as ligações entre crise ambiental, crise social, guerras, migrações e pobreza. E indicou um objetivo a alcançar: o de um sistema económico e social mais justo e respeitador da criação, que tenha no seu centro o homem, que é o guardião da mãe terra e não o dinheiro elevado a divindade absoluta. Hoje, com a nova encíclica social Fratelli tutti, o Sucessor de Pedro mostra o caminho concreto para alcançar esse objetivo: reconhecer-nos irmãos e irmãs, irmãos porque filhos, guardiões uns dos outros, todos no mesmo barco, como a pandemia tornou ainda mais evidente. A forma para não se render à tentação do homo homini lupus, de novos muros, do isolamento e, ao contrário, olhar para o ícone evangélico do Bom Samaritano, tão atual e fora dos esquemas.

O caminho indicado pelo Papa Francisco baseia-se na mensagem de Jesus que elimina qualquer extraneidade. O cristão é efetivamente chamado a «reconhecer Cristo em cada ser humano, para o ver crucificado nas angústias dos abandonados e dos esquecidos deste mundo, e ressuscitado em cada irmão que se levanta». Mas a mensagem da fraternidade pode ser aceite, compreendida e partilhada também por homens e mulheres crentes de outras religiões, assim como por muitos homens e mulheres não crentes.

A nova encíclica apresenta-se como uma suma do magistério social de Francisco e reúne de forma sistemática as ideias oferecidas por pronunciamentos, discursos e intervenções dos primeiros sete anos de pontificado. Uma origem e uma inspiração é certamente representada pelo “Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum”, assinado a 4 de fevereiro de 2019 em Abu Dhabi com o Grão-Imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyib. Desta declaração comum, marco no diálogo entre as religiões, o Papa reitera o apelo para que o diálogo seja adotado como caminho, a colaboração comum como conduta e o conhecimento mútuo como método e critério.

Contudo, seria redutivo relegar a nova encíclica apenas para o âmbito do diálogo inter-religioso. A mensagem de Fratelli tutti diz respeito a cada um de nós. E contém também páginas esclarecedoras sobre o compromisso social e político. Pode parecer paradoxal que é o Bispo de Roma, voz no deserto, que relança hoje o projeto de uma boa política. Uma política capaz de retomar o próprio papel, durante demasiado tempo deixado às finanças e à fábula dos mercados que produzirão bem-estar para todos sem necessidade de ser governados. Há um capítulo inteiro dedicado à ação política vivida como serviço e testemunho de caridade, que se alimenta de grandes ideais e planifica o amanhã, pensando não na pequena vantagem eleitoral, mas no bem comum e especialmente no futuro das novas gerações. Mais uma vez, num momento em que tantos países se fecham, é precisamente o Papa que formula o convite a não perder a confiança nos organismos internacionais, embora necessitados  de reformas para que não sejam considerados apenas os mais fortes. Entre as páginas mais poderosas da encíclica estão as dedicadas à condenação da guerra e à rejeição da pena de morte. Na esteira da Pacem in terris, de João xxiii, partindo de um olhar realista sobre os resultados catastróficos que tantos conflitos nas últimas décadas tiveram para a vida de milhões de pessoas inocentes, Francisco recorda que hoje é muito difícil manter os critérios racionais amadurecidos noutros séculos para falar de uma possível “guerra justa”. Tal como é injustificado e inadmissível o recurso à pena capital, que deve ser abolida no mundo inteiro.

É verdade, como afirma o Papa, «no mundo atual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia de outros tempos». Mas há necessidade de voltar a sonhar e, sobretudo, de realizar este sonho em conjunto. Antes que seja demasiado tarde.

Andrea Tornielli