Introdução ao documento «Scripturæ Sacræ affectus»

Como uma «biblioteca de Cristo»

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06 outubro 2020

Era o dia 30 de setembro de 420 e em Belém, perto da gruta da Natividade de Cristo, o dálmata Jerónimo terminava a sua existência terrena, cuja trama tinha sido particularmente variada e até atormentada. Exatamente mil e seiscentos anos após aquele dia de outono, o Papa Francisco quis dedicar-lhe uma ampla e intensa Carta Apostólica, que constitui a substância deste pequeno volume. De facto, o título Scripturae Sacrae affectus, tirado da liturgia da memória do santo, constitui uma síntese extraordinária da sua experiência pessoal e da sua obra, quase uma bandeira emblemática daquele que está na memória de todos como o tradutor por excelência da Bíblia através daquela Vulgata que atravessou os séculos.

Precisamente por esta razão a sua figura tem sido um ponto de referência capital para a história da cultura ocidental e também para a arte, e é verdadeiramente surpreendente que o próprio Papa tenha querido evocar alguns aspetos «sapienciais» artísticos, partindo da «comovedora obra-prima» do quadro de Jerónimo penitente no deserto, que Leonardo da Vinci executou por volta de 1482 e que teve uma vicissitude com contornos romanescos. As últimas horas da vida do santo foram representadas pelo imponente retábulo no qual Domenichino, entre 1611 e 1614, fixou a extrema Comunhão de São Jerónimo, obra preservada, como a outra, na Pinacoteca do Vaticano. Numa atmosfera hierática o célebre «Leão de Belém», já debilitado, recebe a Eucaristia rodeado pelos seus discípulos e pela fiel Paula, testemunhas das comunidades monásticas por ele fundadas.

A Carta Apostólica é um verdadeiro retrato histórico-teológico deste apaixonado cultor da Palavra de Deus, é uma guia para a sua vasta atividade exegética e espiritual, é um apelo a seguir os seus passos «amando o que ele amou». A clareza do ditado e da estrutura do texto papal é tal que não requer comentários, mas apenas uma leitura cuidadosa: cada página está impregnada de citações muito evocativas tiradas dos escritos jeronimitas. Por esta razão é realmente possível quase ouvir a sua voz, com a multiplicidade de tons, ênfases, os mesmos sentimentos de uma personalidade tão forte e as caraterísticas típicas dos profetas bíblicos com a sua veemência e paixão.

A complexa sequência de eventos biográficos distribuídos sobretudo entre Roma e a Terra Santa é reconstruída de forma exata e vivaz, partindo do famoso ponto de viragem da quaresma de 375, que também nós queremos recordar. Sonolento devido à febre, na sua mente tinha-se aberto uma espécie de visão. Em pé diante do Juiz divino, «fui interrogado sobre a minha condição; respondi que era cristão!». Mas Aquele que presidia a essa assembleia retorquiu: tu mentes! És um ciceroniano, não um cristão». «Senhor — respondi — se continuar a ter livros mundanos nas minhas mãos, se os ler, será como se vos tivesse renegado!». Assim, o santo relatou o grande ponto de viragem na sua vida numa carta, a N. 22 do catálogo tradicional, dirigida à fiel discípula Eustóquio.

«Tornei-me então», escreveu noutra epístola, «discípulo de um irmão judeu convertido para aprender, depois das subtilezas de Quintiliano, dos rios de eloquência de Cícero, da gravidade de Frontão e da agradabilidade de Plínio, um novo alfabeto e para praticar a pronúncia de sons estridentes e aspirantes. Que cansaço foi para mim, que dificuldades encontrei, quantas vezes parei e depois, devido ao desejo de aprender, recomecei, só a minha consciência o pode  testemunhar, a qual suportou tudo, mas também a daqueles que foram meus companheiros na vida». Assim começou a grande aventura que se tornou famosa com o nome Vulgata, ou seja, a elaboração de uma tradução «popular» latina da Bíblia.

A partir desse momento, o Papa segue todo o itinerário, nalguns aspetos fascinante e cheio de acontecimentos, da experiência cristã de Jerónimo, que tem o seu coração no amor pela Sagrada Escritura enfrentado na sua dupla dimensão de «letra» e «espírito». O eixo fundamental da sua vicissitude humana e espiritual encontra-se na sua obra de tradução, encarnada precisamente na Vulgata, «o fruto mais doce da árdua sementeira» dos seus estudos literários e histórico-críticos. A este respeito, o Papa Francisco oferece não só uma série de preciosas anotações sobre a importância desta operação nas suas caraterísticas básicas, mas também na importância eclesial por ela registada. Acima de tudo, capta a sua alma muito original, que está também na raiz de cada tradução qualificada que continua a revelar-se ainda hoje através das versões incessantes da Bíblia nas mais diversas línguas.

A tradução, de facto, é um ato de inculturação e, a este respeito, ao recuperar explicitamente uma reflexão significativa desenvolvida pelo pensamento contemporâneo (P. Ricoeur, L. Wittgenstein, G. Steiner) o Papa estabelece «uma analogia entre a tradução, como ação de hospitalidade linguística, e outras formas de acolhimento. Por esta razão, a tradução não é uma obra que diz respeito apenas à língua, mas corresponde, na verdade, a uma decisão ética mais ampla, que está ligada à inteira visão da vida. Sem tradução, as diferentes comunidades linguísticas seriam incapazes de se comunicarem entre elas; fechariam as portas da história umas às outras e negariam a possibilidade de construir uma cultura do encontro. Com efeito, sem tradução, não há hospitalidade, aliás, reforçam-se as práticas de hostilidade. O tradutor é um construtor de pontes. Quantos julgamentos imprudentes, quantas condenações e conflitos surgem por ignorarmos a língua dos outros e por não nos aplicarmos, com tenaz esperança, a esta interminável prova de amor que é a tradução!».

Com todas as reservas críticas, muitas vezes compreensíveis considerando as diferentes coordenadas cronológicas e culturais e a nossa sensibilidade filológica diferente, a Vulgata não só constituiu um monumento literário do latim tardio, como também plasmou a linguagem teológica do Ocidente cristão. Na verdade, o sucesso chegou à obra de Jerónimo apenas alguns séculos mais tarde. Foi São Gregório Magno, Papa de 590 a 604, que utilizou a tradução de Jerónimo para os seus escritos exegéticos e espirituais. Seguiram-no o quase contemporâneo Isidoro de Sevilha e Beda, o Venerável, que morreu em 735. O rio de cópias cresceu sem medida, arrastando com ele todo o tipo de detritos, ou seja, erros dos escribas, alterações intencionais, variações marginais, contaminações com outras antigas versões latinas. Foi então necessário proceder a revisões e codificações, o que deu origem a verdadeiras tipologias textuais representadas por famílias de códices, agrupadas convencionalmente de acordo com as áreas geográficas.

Assim nasceu o chamado modelo «italiano», que recebeu o nome da área primária de difusão da Vulgata: não se deve esquecer que o historiador e teólogo Cassiodoro, no século vi, foi, com São Gregório, um criador da adoção da versão jeronimita para leitura e estudo da Bíblia no seu Vivarium, a «universidade» por ele fundada nas suas terras de Squillace na Calábria. Havia uma tipologia «Gálica» ligada a Alcuin, encarregado para esta operação por Carlos Magno (séculos VIII-IX); outros modelos apareceram na Espanha e na Irlanda. Não é necessário para os nossos propósitos traçar o perfil deste delta ramificado no qual o rio da Vulgata desembocou, nem descrever as revisões feitas por várias personagens, tais como São Pier Damiani e Lanfranco de Pavia no século xi. O texto mais difundido que continuou o seu caminho nos séculos seguintes até ao Renascimento foi a chamada Biblia Parisiensis, em uso na Universidade de Paris, contudo uma das formas menos perfeitas da longa vida da Vulgata.

Foi apenas no Concílio de Trento que, após a «autenticidade» da Vulgata ter sido afirmada como texto bíblico oficial da Igreja católica (8 de abril de 1546) — sobre cujo valor específico a Carta Apostólica oferece uma indicação essencial e exata — que o voto foi expresso para uma «edição típica» mais rigorosa. O desejo dos Padres conciliares só se realizou a 9 de novembro de 1592, após acontecimentos conturbados que envolveram cinco papas (Pio IV, Pio V, Sisto V, Gregório XIV, Clemente VII). A edição definitiva foi então publicada com o título Biblia Sacra Vulgatae editionis Sixti Quinti Pont. iussu recognita atque edita. Na edição de Lião de 1604 também foi acrescentado o nome de Clemente VIII e a partir de então foi chamada «Bíblia sisto-clementina». Nos séculos seguintes as revisões foram incessantes até à proposta particular da Neovulgata promulgada por S. João Paulo II em 1979 e explicitamente mencionada na Carta.

É um facto que, apesar da diferença de épocas, a Vulgata ainda hoje exerce um indubitável fascínio literário, também pelo seu uso na história da arte e da música. Além disso, como foi dito, condicionou de alguma forma o pensamento e o vocabulário teológico. Agora, o estudioso francês Georges Mounin definiu ironicamente cada boa tradução como uma belle infidèle, bela, sim, mas com um grau de infidelidade em comparação com a matriz original, especialmente quando se trata de sistemas linguísticos e culturais  diferentes. Prosseguiu na esteira do grande Cervantes, o autor de Dom Quixote, que estava convencido de que cada versão era como o reverso desbotado de uma bela tapeçaria. Os problemas levantados pela tradução de um texto não são, de facto, apenas linguístico-literários mas hermenêuticos, especialmente quando no meio há uma Escritura «sagrada». No entanto, ainda hoje, Jerónimo permanece, neste sentido, um emblema de mérito e método, com o seu rigor e liberdade, com o seu conhecimento e criatividade.

Mas indo além das questões estritamente críticas, o Papa, quase como pano de fundo de todo o texto, nesta celebração centenária, orienta a comunidade eclesial a retomar o legado substancial de São Jerónimo, ou seja, o amor feito de estudo e de adesão vital à Palavra de Deus. Este é um tema constantemente exaltado pelo Magistério eclesial. Em particular, sobressaem as confirmações do Concílio Vaticano II com a Dei Verbum, a Exortação Apostólica Verbum Domini que Bento XVI promulgou precisamente em memória do santo, a 30 de setembro de 2010, a Evangelii Gaudium e a Aperuit illis do próprio Papa Francisco,  nem se pode esquecer que no paralelo do XV centenário da morte de Jerónimo, em 1920, Bento XV promulgou a encíclica Spiritus Paraclitus. De facto, «o traço distintivo da figura espiritual de São Jerónimo permanece sem dúvida o seu amor apaixonado pela Palavra de Deus, transmitido à Igreja na Sagrada Escritura».

Nas páginas da Carta Apostólica sobressaem outras caraterísticas. Em particular o seu compromisso teórico e prático pela vida monástica, bem como o seu amor vivo pela Virgem Mãe que «ponderava no seu coração» (Lc 2, 19.51), «pois ela era santa e tinha lido as Sagradas Escrituras, conhecia os profetas e lembrava-se do que o anjo Gabriel lhe tinha anunciado e do que tinha sido dito pelos profetas». Um traço, geralmente menos acentuado e que o Papa Francisco desenvolve, é a ligação do santo com a Cátedra de Pedro. Também predomina no Padre da Igreja aquele eixo cristológico que guiará não só a sua fé mas inclusive a sua exegese. À sua figura aplica-se, de facto, o que ele próprio escreveu sobre o seu amigo Nepociano: «Com leitura assídua e meditação constante, ele fez do seu coração uma biblioteca de Cristo».

Esta nossa premissa — dedicada a um texto verdadeiramente luminoso como o são estas páginas consagradas pelo Papa Francisco a um Padre da Igreja, com um temperamento ardente e até provocador, mas também com uma fé límpida e calorosa como era São Jerónimo — poderia facilmente ter um selo no próprio documento pontifício. A síntese final, com efeito, deve ser procurada no apelo conclusivo da Carta. Retomando a imagem que acaba de ser proposta da «biblioteca de Cristo», o Papa recorda-nos que a de Jerónimo é uma biblioteca viva que «continua a ensinar-nos o que significa o amor de Cristo, um amor que é inseparável do encontro com a sua Palavra». Por esta razão o atual centenário representa um apelo a amar o que Jerónimo amou, redescobrindo os seus escritos e deixando-nos tocar pelo impacto de uma espiritualidade que pode ser descrita, no seu núcleo mais vital, como o desejo inquieto e apaixonado de um maior conhecimento do Deus da Revelação. Não podemos deixar de ouvir, nos nossos dias, aquilo a que Jerónimo exortava incessantemente os seus contemporâneos: “Lê com frequência as Divinas Escrituras; aliás, as tuas mãos nunca abandonem o livro sagrado”.

Gianfranco Ravasi