Somos todos irmãos?

A urgência de parar e refletir

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06 outubro 2020

A encíclica Fratelli tutti chega como gota de água que cai numa terra deserta, como raio de luz que atravessa “as sombras de um mundo fechado”. Este é o título do primeiro capítulo da nova, terceira, encíclica do Papa Francisco, dedicada à fraternidade e à amizade social, que o Papa ontem quis oferecer aos fiéis reunidos na praça de São Pedro na “forma” da edição especial de “L’Osservatore Romano” que voltou a ser impresso em papel mas com um novo formato. Mas vamos prosseguir passo a passo.

Em primeiro lugar, o facto de ter deixado o Vaticano, a primeira vez desde o lockdown provocado pela pandemia, e de ter ido a Assis para assinar a Carta diante do túmulo de São Francisco, que mais uma vez, após a Laudato si’, há cinco anos, é fonte de inspiração para o seu pontificado, tem uma força simbólica tão óbvia que não precisa de outras explicações.

Fratelli tutti é um texto poderoso, que soa como um grito num momento de alarme e esperança, e oferece aos leitores uma visão, um horizonte grande, que transmite confiança e desperta o desejo de se comprometer com o bem comum, com os outros, que são todos, ninguém excluído, nossos irmãos.

A encíclica está dividida em oito capítulos que, após o primeiro que analisa, de forma lúcida e sem descontos, a situação em que o mundo se encontra hoje, um mundo que parece estar a caminhar para o fechamento porque “a sociedade cada vez mais globalizada nos torna próximos, mas não irmãos” (a citação é da Caritas in veritate de Bento XVI, um dos textos mais citados pela encíclica), desenvolve-se num sentido positivo e pró-ativo a fim de “pensar e gerar um mundo aberto” (cap. 3) e lançar as bases para “a melhor política” (cap. 5) e criar as condições para “o diálogo e a amizade social” (cap. 6) e abrir “caminhos de um novo encontro” (cap. 7), a fim de chegar à conclusão que sublinha o papel decisivo das religiões “ao serviço da fraternidade do mundo” (cap. 8).

Um texto muito denso que obriga o leitor a parar e ler cuidadosamente para refletir, meditar e depois, finalmente, agir. Neste jornal, a partir dos próximos dias, de todo o texto com os seus oito capítulos serão oferecidas ao leitor chaves de leitura, a fim de o aprofundar, ativando um processo de conhecimento não superficial nem emocional. Agora, é suficiente uma primeira reflexão simples, quase uma impressão, sobre o tema da dignidade, uma das palavras mais recorrentes na encíclica, tendo em consideração apenas um trecho, o ponto 68 do texto, tirado do segundo capítulo, onde o Santo Padre medita sobre o conteúdo do Evangelho de Lucas dedicado à parábola do Bom Samaritano. O capítulo intitula-se “Um estranho no caminho” e começa com uma verdadeira exegese das palavras de Jesus, que permite ao Papa refletir com o leitor sobre o facto de a ajuda dada pelo samaritano «revelar-nos uma caraterística essencial do ser humano, frequentemente esquecida: fomos criados para a plenitude, que só se alcança no amor. Viver indiferentes à dor não é uma opção possível; não podemos deixar ninguém caído “nas margens da vida”. Isto deve indignar-nos de tal maneira que nos faça descer da nossa serenidade alterando-nos com o sofrimento humano. Isto é dignidade».

São palavras chocantes, que invertem a nossa ideia de dignidade. Associamos frequentemente dignidade com frieza, com imperturbabilidade, diz-se de um homem que “não perdeu a dignidade”, porque permaneceu sereno e não deixou transparecer sentimentos de raiva nem de sofrimento. E, ao contrário, aqui o Papa vai além e apresenta-nos outra face, paradoxal, de dignidade: da serenidade é preciso “descer”, é necessário perder o fleuma para nos “perturbar” com o sofrimento dos outros. Dignidade é algo quente, físico, visceral. Tal como a misericórdia, protagonista da parábola, que é algo que tem a ver com as entranhas (rachamin, é a palavra que, em hebraico, indica tanto a misericórdia como as entranhas). É precisamente daqui que se deve recomeçar, a partir do gesto visceral do samaritano, que nada mais faz do que parar em contraste com os outros personagens, provavelmente apressados; num mundo que corre incessantemente, a do Papa é uma voz que pede, implora urgentemente para parar a fim de recuperar o sentido da dignidade humana, da sua, dos outros. Permanecendo fiel a si mesmo, a essa “caraterística essencial do ser humano”, o Papa diz-nos que hoje é absolutamente necessário restituir ao homem a dignidade, um bem precioso e frágil que deve ser preservado e alimentado todos os dias, em todos os lugares, sempre.

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Domingo de manhã, na praça de São Pedro, houve uma bonita festa popular, no momento do Angelus, uma dupla festa para a redação de “L’Osservatore Romano” que finalmente, após um lockdown de seis meses que impediu a impressão do jornal, volta à publicação também em papel com novo formato e nova configuração. Não é um mero “regresso” ao papel, mas a realização de um projeto de reforma que começou há muito tempo. Um jornal, também por motivos etimológicos, não pode deixar de se “atualizar”, especialmente se for um jornal internacional que sai em sete línguas e chega aos seus leitores nos cinco continentes do planeta.

A atualização inclui uma renovação na gráfica e no conteúdo, a fim de oferecer ao leitor informações mais aprofundadas. Esta é a palavra, aprofundar, querida a São Paulo VI, que inspirou o projeto do “novo” Osservatore Romano. O jornal que tendes nas mãos (finalmente podemos pronunciar esta frase), tem um formato ligeiramente menor do que o anterior, o que significa um aumento do número diário de páginas que se tornam 12. Destas, as quatro páginas centrais tornar-se-ão um suplemento extraível com um fundo temático: na terça-feira à tarde “Quattropagine”, o semanário cultural; na quarta-feira à tarde “Religio”, dedicado à Igreja como hospital de campanha a caminho pelas estradas do mundo, onde se encontra com as outras religiões; na quinta-feira à tarde “La settimana di Papa Francesco”, para realçar palavras e gestos do Pontífice; na sexta-feira à tarde “Atlante”, um semanário internacional de notícias que relata as crónicas de um mundo globalizado.

Duas palavras-chave podem explicar o significado deste projeto de atualização e renovação: integração e esperança. A primeira refere-se a uma dupla relação: uma entre jornais de papel e digitais e outra relativa à integração de “L’Osservatore Romano” no sistema dos meios de comunicação social do Vaticano. O período de suspensão devido à pandemia causou um forte impulso ao desenvolvimento do jornal no mundo digital, pelo que hoje o diário está disponível na rede (www.osservatoreromano.va)  graças à nova app, que pode ser descarregada gratuitamente tanto na AppStore como na PlayStore. Por outro lado, o jornal, fundado em julho de 1861, durante muitas décadas o único meio de comunicação da Santa Sé, está hoje circundado por uma série de outros meios de comunicação social, a partir da Rádio Vaticano e do portal Vatican News, e com eles integra-se num processo que coordena os vários meios, exaltando a própria peculiaridade de cada um. A lógica é, para o dizer com as palavras do Papa Francisco, tirada também desta última encíclica, a da perspetiva mais ampla e complexa que sobressai da figura do poliedro, que «não é a esfera global que anula, nem a parcialidade isolada que a torna estéril», mas é precisamente «o poliedro onde, enquanto cada um é respeitado no seu valor, “o todo é mais do que as partes, e é também mais do que a sua simples soma”».

Enfim, a esperança. Também aqui as palavras do Papa podem servir para esclarecer. Falando à revista belga “Tertio”, a 18 de setembro, Bergoglio afirmou: «O profissional cristão da informação deve ser um porta-voz de esperança, um portador de confiança no futuro. Pois só quando o futuro é aceite como realidade positiva e possível, também o presente se torna viável». Para ser porta-voz da esperança, o cristão deve procurar «uma visão positiva das pessoas e dos acontecimentos, rejeitando preconceitos», a fim de «fomentar uma cultura do encontro através da qual é possível conhecer a realidade com um olhar confiante». “L’Osservatore Romano” faz suas estas palavras do Papa e compromete-se a narrar as histórias de hoje e de ontem (a história da Igreja é sempre contemporânea) com uma perspetiva positiva, voltada para o futuro. Portanto, uma abordagem profissional que se baseia na imaginação e na criatividade que procura dar voz àqueles que não a têm, para narrar o bem que silenciosamente abre caminho, iluminar a esperança que floresce até nas situações mais dramáticas, fazer ouvir o grito e as expetativas dos últimos e dos descartados, que muitas vezes lutam para encontrar espaço no fluxo das notícias diárias. Precisamente neste tempo tão acelerado em que o ritmo frenético da informação nos parece submergir, temos que parar para refletir e assim ver dentro e fora das notícias para compreender, permitindo que a realidade nos surpreenda, nos interrogue, nos comova. Só se conseguirmos evitar o fluxo de ativismo que corre o risco de nos atordoar e entorpecer a nossa sensibilidade, seremos capazes de agir como o Bom Samaritano, percebendo que há um estranho pelo caminho, mas que se nos aproximarmos, ele deixará de ser um estranho mas tornar-se-á nosso semelhante e, afinal, um amigo. Caso contrário, corremos o risco de agir como os dois discípulos viajantes de Emaús, que se encontram com um “forasteiro” pelo caminho e não se apercebem de que é Jesus. Sabem tudo sobre as notícias do dia, estão “informados”, mas não conseguem compreender o seu significado. Eis o desafio de um jornal como “L’Osservatore Romano” que é “forasteiro” porque vive neste mundo mas olha para ele, julgando-o não só com uma lógica mundana mas também com um olhar que “não é deste mundo”. Portanto, um grande objetivo: amplia a perspetiva com que se observa o mundo, oferecendo a ótica que se vê de Roma, do coração da catolicidade, procurando tocar a mente e o coração dos leitores com uma comunicação curiosa, honesta e aberta.

Andrea Monda