Homenagem ao compositor italiano Ennio Morricone

Não só cinema

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14 julho 2020

Também “música absoluta” além das memoráveis bandas sonoras


Petrassi disse-lhe: «És bom, mas tem cuidado. Acabas por ganhar muito, por entrar no mecanismo comercial e por descuidar a tua vocação mais profunda». Foi mais ou menos isto que aconteceu. Ennio Morricone era muito bom, escreveu bandas sonoras únicas, provavelmente insuperáveis, e tornou-se rico. Não descuidou a parte mais íntima dos seus sentimentos, mas certamente dedicou-lhe menos tempo do que teria desejado.

Do sofá da sua casa («não enquadres a janela, caso contrário virão todos aqui à frente») não se viam os Óscares. Além disso, deram-lhos demasiado tarde. O primeiro «pela carreira» em 2007, provavelmente porque após cinco nomeações não premiadas quem faria a má figura seriam aqueles da Academia, não ele.

Naquele caso, quem se deu ao trabalho de lho entregar foi Clint Eastwood, ícone dos filmes de cowboys realizados pelo colega de escola primária de Ennio, Sergio Leone. Um pouco devia-lho, pois precisamente graças aos primeiros planos de Leone, acompanhados por melodias simples, confiadas a timbres absolutamente inéditos para o cinema, o ator americano com duas expressões («uma com o charuto e a outra sem», cit.) tornara-se um fenómeno mundial.

Naquele período, tratava-se de economizar. Algo a que os músicos estão habituados. Pouco dinheiro, ainda menos instrumentos: «Inventa algo que funcione». Morricone sabia como fazê-lo, pois aprendera de Goffredo Petrassi, que era um mestre da economia de material, e que se fosse francês teria uma estátua de bronze debaixo da Torre Eiffel. É possível trabalhar com uma harmónica, assim Ennio escreveu uma obra-prima. Noutra ocasião foi-lhe suficiente um apito, mas afinado. Nalguns casos recorreu a procedimentos utilizados na música eletrónica, graças aos quais com poucas fitas sobrepostas é possível realizar um efeito que se torna gradualmente mais complexo. Por exemplo, no desafio a três de Il buono, il brutto, il cattivo, alguns elementos bem definidos repetem-se continuamente a distâncias diferentes, criando um grande suspense, uma sensação de expetativa que tira o fôlego. Tudo isto é técnica. Mas quando chega a trombeta, é talento puro.

Depois, com o sucesso, também os meios se tornaram ilimitados, mas permaneceu aquele gosto pela melodia esculpida, isolada, económica e ao mesmo tempo forte. A trombeta quase nunca falta e quando menos se espera, chega uma voz que nem sequer tem necessidade de cantar um texto, é suficiente o timbre. É desse período a segunda estatueta, atribuída em 2016, por The Hateful Eight, realizado por Quentin Tarantino. Quem sabe como raciocinam na Academia, Mission e The Untouchables — Os Intocáveis não, e este sim. Os melhores nem sequer conseguiram obter a nomeação.

De qualquer modo, em casa os Óscares não estavam à vista. Importava-se, obviamente, mas parecia estar mais apegado aos cartazes do grupo de improvisação de “Nuova Consonanza”, no qual tocava a trombeta nos anos sessenta. Música experimental, que hoje em dia ressurge frequentemente em cenários de DJ. Estavam pendurados no salão, sobretudo porque era ele que os queria ver.

Morricone foi um dos mais importantes compositores de bandas sonoras da história do cinema, porque era um músico completo, que sabia escrever em qualquer linguagem e procurava uma pessoal, em todos os âmbitos. Tinha estudado com um dos maiores mestres do século XX, e conhecia bem tudo ao seu redor. Foi um dos primeiros sócios de “Nuova Consonanza”, uma das associações musicais contemporâneas mais longevas da Europa. E ele nunca se cansava de repetir que

a sua produção não se limitava às bandas sonoras. Recentemente, sobrecarregado de pedidos, como sempre, tinha tomado uma decisão clara: «Já não escrevo para o cinema». «Tens a certeza?» «Exceto para Tornatore».

Dedicaram-lhe um asteróide, ganhou todos os prémios do mundo, estrelas do pop deram o seu nome aos próprios filhos, foi-lhe intitulado um Auditório enquanto ainda era ativo («não dará azar?») e viu os três campeonatos de Roma. Fizera o suficiente. Finalmente tinha chegado o momento de se dedicar de modo completo à sua paixão insana: a “música absoluta”. Cunhara esta definição para indicar a parte de produção que funcionava sozinha, sem imagens. Estava a compor uma missa e tinha acabado de escrever um concerto para dois pianos.

Na realidade, não era uma novidade. Ennio acompanhou sempre a sua atividade de compositor aplicado à imagem, com uma produção “absoluta”, mas foram poucas as pessoas que lha pediram. Em 2010, a “Fondazione Opera Campana dei Caduti di Rovereto” comissionou-me uma peça sobre um texto obrigatório, versículos sobre a paz do Antigo Testamento, do Evangelho e do Alcorão. A ocasião era imperdível: a Orquestra Sinfónica Nacional da Rai, com Daniel Kawka no pódio. «Não dispomos de uma quantia para te oferecer, comparável às que estás habituado a receber». «Faço-o de graça». Podia dar-se ao luxo, certamente, e estava interessado. Compôs Jerusalém. Cinco mil pessoas seguiram silenciosamente o concerto ao ar livre. Mil sentadas nos degraus do anfiteatro da Fundação, as outras no relvado. Funcionava. Estavam presentes também Brahms e Schubert, mas as pessoas tinham vindo para ele. Pela sua “música absoluta”.

Marcello Filotei