
Maria Helena Sequeira
Há 50 anos atrás, no final do mês de abril, os portugueses acorreram às urnas para as primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte. Homens, mulheres, médicos, agricultores, sem distinção; diferentes, iguais perante o boletim. Enquanto a afluência rondava os 92%, a taxa de analfabetismo superou os 25%.
Foi este grande marco o foco do IV Congresso Internacional de Língua Portuguesa decorrido em Roma, a 5 de maio, e promovido pelo Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade Roma Tre. No seu panfleto, a primeira página do Diário de Lisboa, de 5 de maio de 1974, o primeiro dia mundial da língua portuguesa vivido em liberdade. Desde esse dia, a sociedade portuguesa sofreu enormes alterações: de um país marcado pelo “orgulhosamente sós”, tornou-se estado-membro da UE e reflexo de um mundo global completamente diferente. Com o término das guerras coloniais e o fim da ditadura, Portugal acolheu milhares de “retornados” e imigrantes, vindos principalmente do continente africano e do Brasil, e pelas ruas portuguesas a língua assumia novas cores.
Na conferência de abertura, a Professora Isabel Duarte, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, refletiu sobre este fenómeno e apresentou uma visão ainda mais aprofundada das alterações que promoveu. Para além de uma abertura ao mundo, outros fatores influenciaram a progressiva mutação da língua: a completa transformação da sociedade a nível socioeconómico, um aumento generalizado da escolaridade e da população urbana, a globalização e o desenvolvimento das novas tecnologias e meios de comunicação, são uma importante parte deste processo transformativo. Em África, o português foi enriquecido com palavras de origem “bantu” e palavras portuguesas trouxeram novas nuances às línguas nativas. Em Portugal, agora aberto a um mundo diferente, muitos “quimbundismos” começaram a fazer parte do vocabulário corriqueiro.
E todas estas alterações tiveram, naturalmente, um impacto na linguagem institucional. Segundo um estudo elaborado pela professora da FLUP, baseado numa análise dos debates políticos televisivos, entre 1975 e 2022, e dos debates de moção de censura, nos 50 anos de democracia (até hoje, 25), a informalidade nas formas de tratamento tem vindo a aumentar. De “vossa excelência” para “senhor” ou “senhora”, esta informalidade parece ser reflexo de uma progressiva rejeição dos “classismos” e uma aproximação, ou pelo menos uma sua tentativa, da classe política aos eleitores.
A manhã terminou com uma mesa redonda cujo título «Anticolonialismo, antisalazarismo e solidariedade democrática e revolucionária em Itália», denota a universalidade do fenómeno do salazarismo e da Revolução de Abril. O painel de discussão desenvolveu-se em torno de 3 livros, escritos por professores italianos de renome Dal “Dossier sul Portogallo” alla Rivoluzione dei garofani, L’antisalazarismo in Italia (1963-1974), Labanta! Ex colonie portoghesi e cinema italiano, Riti di passaggio. Cronache di una rivoluzione rimossa. Portogallo e immaginario politico 1974-1975 — recordando os anos da ditadura e as forças que, na clandestinidade, lutaram pela libertação de um inteiro país. Mas não só, o painel, nomeadamente através da apresentação do livro Labanta! Ex colonie portoghesi e cinema italiano, pretendeu evidenciar o importante papel da comunidade internacional e, neste caso, de uma parte crucial da sociedade italiana, que dando voz a quem não podia livremente fazer uso da sua, apoiou os movimentos de independência nas, então, colónias portuguesas.
A tarde de 5 de maio foi marcada por dois painéis de discussão, desta vez, dando lugar a interessantes debates sobre as especificidades da língua portuguesa. A primeira mesa redonda, da qual fez parte o professor Ivo da Costa Rosário, da Universidade Federal Fluminense, e a Professora Isabel Duarte, já presente durante a manhã, intitulou-se «Conectores textuais e marcadores discursivos na língua portuguesa», analisando de modo particular estes dispositivos linguísticos e as diferenças da sua utilização entre o português europeu e o português brasileiro. A segunda, apelidada «A língua portuguesa entre ensinamento e aquisição» focalizou-se no ensino da língua, nomeadamente enquanto idioma estrangeiro, e no modo em que é apreendida pelos alunos. Desta tomaram parte, entre outros, a Professora Lennie Bertoque, da Universidade Federal do Mato Grosso, que apresentou uma análise sobre o uso da IA no ensino do português, e a Professora Carla Barbosa Moreira, que refletiu sobre o papel dos média digitais na internacionalização do conhecimento.
O congresso despediu-se dos participantes com a apresentação de um livro Gramática do português europeu, elaborado pelas Professoras Vanessa Ribeiro Castagna e Filipa Martins Matos, com uma longa carreira de ensino do português no contexto universitário.
Passou-se meio século desde as primeiras eleições livres em Portugal e o país habituou-se à sua pequenez; não de espírito, apenas de efetiva dimensão. Vimos desse “cantinho à beira-mar plantado”, num mundo cada vez maior, ainda que de distâncias encurtadas. Mas, apesar de continuarmos sempre a ser do Fado, nesta existência partilhada, a “saudade” já não é só nossa: aventurou-se por toda a parte e, como a Língua, aprendeu a democratizar-se. Hoje, “é de quem a fala”.
A 51 anos da Revolução, num vestígio de história partilhada, o mundo ainda canta o vermelho dos nossos cravos.