· Cidade do Vaticano ·

Nosso irmão operador de paz

 Nosso irmão operador de paz  POR-005
30 abril 2025

Andrea Monda

Entregou-se totalmente, sem reservas, até ao último dia. Até ao fim. Indo ao encontro das pessoas, abraçando-as. E se as condições não o permitiam, telefonava então aos muitos aos quais sentia a necessidade de fazer ouvir a sua voz. Entre eles estava o padre Gabriele Romanelli, o pároco de Gaza, a quem telefonava à tarde, ou melhor, muitas vezes por videochamada. Não apenas para fazer ouvir a sua voz mas para se poderem ver, olhos nos olhos. O “cara a cara” para Bergoglio era fundamental, porque olhar-se nos olhos torna impossível a mentira e permite a verdadeira comunicação, que é, antes de mais, relação, comunhão. O telefone para reduzir a distância e estar perto, segundo «o estilo de Deus» feito de «proximidade, compaixão e ternura»; é este anulamento das distâncias uma caraterística do seu pontificado em que os “papéis” permanecem, mas sem sufocar a relação, pois as pessoas são mais que a sua identidade ou desempenho e é necessário passar da «cultura do adjetivo à teologia do substantivo».

Gaza, como tinha escrito na mensagem Urbi et Orbi de domingo, «onde o terrível conflito continua a gerar morte e destruição e a provocar uma situação humanitária dramática e ignóbil». Gaza, portanto, a Terra Santa ferida, mas também a Ucrânia, a “martirizada Ucrânia” pela qual rezou todos os dias desde aquele 24 de fevereiro de há três anos também neste caso até domingo, quando escreveu: «Que Cristo ressuscitado derrame o dom pascal da paz sobre a martirizada Ucrânia e encoraje as partes envolvidas a prosseguirem os seus esforços para alcançar uma paz justa e duradoura».

E mais longa ainda é a lista, no coração e nas palavras do Papa, dos países dilacerados pelos conflitos nesta «terceira guerra mundial em pedaços» anunciada por ele, incompreendido como todos os profetas, desde o início do seu pontificado. A par do trabalho da diplomacia da Santa Sé, o Papa nunca deixou faltar a sua voz profética, feita de palavras, gestos, silêncios, oração. No dia seguinte à invasão da Ucrânia, na manhã de 25 de fevereiro de 2022, de carro dirigiu-se à sede vizinha da Embaixada da Federação russa. Impressionou a rapidez daquele gesto, tinham passado poucas horas desde a invasão e este era o seu modo de fazer sentir a sua presença, a participação e a preocupação por aquele drama que acabava de começar. A 15 de agosto daquele ano, o título da Mensagem para a Jornada mundial da juventude foi «Maria levantou-se e partiu apressadamente» (Lc 1, 39), na qual sublinhava como «Nestes últimos tempos tão difíceis, em que a humanidade já provada pelo trauma da pandemia, é dilacerada pelo drama da guerra, Maria reabre para todos e em particular para vós, jovens como Ela, o caminho da proximidade e do encontro». Duas palavras iluminadoras: proximidade e encontro. O modelo é sempre o do Bom Samaritano que vence a preguiça, o torpor, a paralisia que os medos muitas vezes provocam em nós, e se move com compaixão, fazendo-se próximo do irmão mais frágil e necessitado. Como Maria que vive o “terramoto” do anúncio recebido sem se fechar numa autorreferencialidade queixosa, mas sai de si mesma, corre em direção aos outros e «não se deixa paralisar, porque dentro d’Ela está Jesus, poder de ressurreição». A proximidade e o encontro como antídoto para a guerra e como condições de partida para uma «paz preventiva».

Operador incansável de paz, que é um bem frágil, necessitada de um cuidado artesanal feito de tecelagem diária das relações e remendos de uma fraternidade ferida. A morte de Deus levou no “século breve” à morte do próximo; ao matar o Pai, o homem passou automaticamente ao assassínio do irmão. Regressando de Malta a 3 de abril de 2022, Francisco admite com amargura que «Somos teimosos como humanidade. Estamos apaixonados pelas guerras, pelo espírito de Caim» e, no que diz respeito aos “esquemas de guerra”, «não somos capazes de pensar noutro esquema, porque já não estamos habituados a pensar com o esquema da paz». Alargar o olhar, aguçar a imaginação, fazer explodir a criatividade para voltar a viver a fraternidade e evitar o fratricídio, foi esta a exortação do Papa ao longo destes anos, convidando como diz Jesus no Evangelho a tornar-se verdadeiramente próximo, irmão de cada um, de todos. A encíclica Fratelli tutti, de 4 de outubro de 2020, continua a ser o facto mais eloquente, juntamente com as viagens apostólicas. O Papa Francisco, nosso irmão, percorreu o mundo de lés a lés para encorajar os homens a viver e encarnar o sonho da paz. As viagens indicam o enredo deste trabalho de tecelagem da paz pelos confins mais dilacerados do mundo. Myanmar, África, Iraque, e depois, em Abu Dhabi a assinatura do Documento sobre a fraternidade humana com o Grão Imã Al-Tayyib, a 4 de fevereiro de 2019. No dia seguinte, de regresso a Roma, quando o então diretor da Sala de imprensa da Santa Sé, Alessandro Gisotti, definiu aquele acontecimento como “grande, histórico”, Francisco esclareceu que «Nenhuma história é pequena, nenhuma. Cada história é grande e digna, e mesmo que seja má, se a dignidade estiver escondida, pode sempre emergir». A dignidade do homem nunca falta, porque se baseia no amor criador de Deus. Um tema que ecoou também nos textos da última Via-Sacra, na última Sexta-feira santa, quando escreveu: «É desumana a economia em que noventa e nove valem mais do que um. E apesar disso, construímos um mundo que funciona assim: um mundo de cálculos e algoritmos, de lógicas frias e interesses implacáveis».

A voz de Francisco ergueu-se para nos recordar tudo isto, e fê-lo até ao fim, “correndo” no seu papamóvel pela praça entre os fiéis à luz de uma manhã de Páscoa depois de os ter saudado da Varanda das Bênçãos, ali mesmo onde há doze anos quando tudo começara, quando pedira aos fiéis que rezassem por ele e caminhassem juntos, a sinodalidade, o povo com o seu bispo. O seu caminho, a sua corrida terrena terminou no dia do Senhor ressuscitado, nosso irmão Francisco aqui, agora, nos “primerea”, nos precede, e nos espera para o último abraço definitivo.