
Em conformidade com uma lenda irlandesa, na corola do dente-de-leão vivem as fadas que, antes que o homem as tivesse forçado a esconder-se, eram livres de se divertir alegremente nos verdes prados das charnecas. O alfinete com a flor amarela está, ao lado de uma pequena cruz de metal, na lapela do casaco da irmã Patricia Murray, conhecida por todos como Pat, secretária executiva da União internacional das superioras-gerais (Uisg). «O dente-de-leão é o símbolo do movimento em defesa das mulheres e da natureza, criado pela ex-presidente da Irlanda, Mary Robinson. Recebi-o das suas mãos recentemente, depois de um encontro com o Papa. Ofereceu-lho também a ele». Olhos azul-claros por detrás das lentes, cabelos brancos, a irmã Pat é uma enérgica irlandesa de 77 anos. O seu curriculum vitae narra a paixão e a tenacidade de alguém que sente a urgência de não desperdiçar nem sequer um minuto no serviço que desempenha.
A de Patricia Murray é uma história irlandesa: a sua mãe, professora primária, e o seu pai, funcionário do departamento de educação pública, transmitiram-lhe a paixão pelo compromisso cívico e pela educação: «Acho que o compromisso a favor da paz faz parte do meu ADN; desde criança, tenho a consciência de que a paz e o desenvolvimento são fundamentais para a construção de um mundo melhor. Respirei-o em família: os meus pais sentiam que ofereciam uma contribuição para o desenvolvimento do novo país, que se tornou independente em 1920. Naquele mesmo ano, o meu avô, que era polícia, foi assassinado durante os motins que abalaram Dublin. Um dos meus tios tornou-se embaixador da Irlanda no mundo». Pat, que aos 12 anos ficou impressionada com uma religiosa do Instituto da Bem-Aventurada Virgem Maria (também conhecido como Irmãs de Loreto, uma congregação de inspiração inaciana), e que aos 18 anos fez a profissão de fé, afirma que «no seu íntimo sempre quis levar a vida da maneira mais completa e significativa possível». Ensinou nos bairros periféricos, nos campos perto da fronteira com a Irlanda do Norte e nas áreas mais pobres de Dublin. «E, enquanto ensinava, vi como, graças à educação, pode ser alimentada e sustentada a liderança das mulheres». No entanto, a vicissitude da irmã Murray é também uma história que atravessa algumas das feridas da história do século XX: frequentou o Trinity College e a Universidade de Dublin, em pleno 1968; obteve a licenciatura em Teologia em Chicago, onde se doutorou em Teologia prática, em 2014; e participou no organismo de ecumenismo comprometido nos diálogos de paz entre católicos e protestantes, para pôr fim à guerra civil na Irlanda do Norte. Algum tempo mais tarde, de 1998 a 2006, viveu em Roma como conselheira-geral da sua Congregação. No final desta delicada incumbência, foi-lhe pedido que fizesse parte da comissão de religiosos que visitou o Sudão do Sul, a convite do episcopado local, para depois elaborar um projeto («Solidariedade com o Sudão do Sul») em vista de um novo modelo de missão, baseado no desenvolvimento e na formação, que contou com a colaboração de vários institutos e congregações religiosas.
Em síntese, esta é também uma história eclesial: há 60 anos, quando o Concílio Vaticano II estava prestes a ser encerrado, Pat fez a sua profissão religiosa. Quando ela dava os primeiros passos como noviça, a Igreja e as congregações religiosas femininas sentiam a urgência da renovação solicitada pelo Vaticano II. «Abandono do hábito, apoio e incremento da formação, necessidade de trabalhar não mais sozinhas, mas juntas, como religiosas e religiosos». Como, por exemplo, na recente campanha global para reduzir a assistência à infância nos orfanatos, a favor da inserção das crianças nas famílias. A irmã Murray foi chamada a assumir responsabilidades até no Vaticano, como consultora do Dicastério para a cultura e a educação e em seguida, tornando-se a primeira mulher na história da Igreja, membro do grupo que redigiu o documento de síntese da última assembleia do Sínodo dos bispos.
Sente-se uma mulher de poder, irmã Patrícia?
Prefiro usar o termo “mulher de influência”. E depois depende de como se vê o poder. Há um poder que oprime e o que se exerce quando se trabalha com os outros para obter mudança. E creio que a UISG deva desenvolver parcerias e redes que possam influenciar todos os níveis da sociedade. Acredito que cada irmã esteja chamada a ser uma influenciadora espiritual. Todos devemos valorizar os dons espirituais que temos para trazer mudanças, inclusive no nosso pequeno círculo.
O facto de ser uma líder, mulher, faz a diferença?
Creio que a faça, pois, penso que, como mulheres, temos tendência para colaborar e desenvolver relações autênticas para além de cada divisão. E é exatamente disso que precisamos hoje em dia. Experienciei-o no Sudão do Sul, onde os estudantes estavam gratos àqueles que os ensinavam a tornar-se enfermeiros, professores, parteiras. E o que os surpreendia era o facto de que vínhamos de “tribos diferentes”, homens e mulheres religiosos, provenientes de culturas e contextos diferentes. Hoje é este o nosso testemunho: ser interculturais. É um conceito teológico, significa que eu te mudo a ti e tu me mudas a mim, e juntos criamos uma nova forma de viver em que a diferença é respeitada e em que aprendemos e nos moldamos uns aos outros.
No entanto, a liderança feminina na Igreja ainda está vacilante...
Creio que seja fundamental que as mulheres desempenhem funções de liderança na Igreja, até porque constituem mais de 50% do povo de Deus. Onde falta o contributo das mulheres, há um enorme défice, porque nós, homens e mulheres, temos modos muito diferentes de viver a vida. E não se trata apenas de nomear um certo número de mulheres para cargos muito visíveis no Vaticano.
Existe um problema de telhado de vidro para as mulheres na Igreja?
Depende, antes de mais, de onde vives: se o bispo não abre espaços para as mulheres, há um telhado de vidro. E depois das aspirações: algumas mulheres sentem que são chamadas a receber a ordenação sacerdotal e para elas o telhado existe. Nós, como irmãs, desempenhamos ministérios diaconais e algumas gostariam que este ministério fosse reconhecido. De um modo geral, há de facto uma necessidade de redefinição do ministério na Igreja, precisamos de ter uma abordagem muito mais ampla. Gosto do facto de o Papa Francisco ter estabelecido que as mulheres sejam acólitas ou leitoras ou catequistas, estes são ministérios públicos. E gostaria de ver as mulheres como pregadoras, há mulheres maravilhosas que contribuiriam com uma perspetiva e uma visão diferentes para refletir sobre as Escrituras.
O que devem fazer as mulheres, leigas e religiosas, para poder encontrar espaço para uma palavra influente?
Antes de mais devem ser formadas. O número de mulheres teólogas está em aumento. Também aqui na UISG, temos um grupo de irmãs teólogas que obtiveram um doutoramento. Pedimos-lhes que refletissem sobre a vida religiosa e escrevessem partindo das suas perspetivas culturais. Precisamos de novas intuições e de novas perspetivas. Porque a vida religiosa nasceu no Norte global, agora está a florescer no Sul global. O que nos ensina isto para o futuro? Aqui na UISG tentamos formar as líderes das congregações para que aprendam a liderar de modo sinodal.
Qual é a base para construir uma liderança que não seja efémera, mas duradoura?
As bases para a liderança são o profundo respeito por cada indivíduo, reconhecendo que o Espírito Santo está ativo em cada um. E depois, quando se tomam decisões importantes, quanto maior for a consulta e a reflexão, melhor será a decisão final.
Relativamente às mulheres, que mudanças trouxe o pontificado do Papa Francisco?
Penso que o aspeto mais relevante seja a afirmação da importância do papel das mulheres na Igreja, tanto em papéis formais como informais, e a criação de um espaço para uma maior participação a todos os níveis. Durante a última assembleia sinodal, foi compilada uma longa lista de todos os papéis que as mulheres poderiam desempenhar na Igreja institucional e nos quais normalmente nunca se pensa. São muitos. Quando se quer realmente uma mudança profunda, é preciso paciência, porque é necessária uma conversão das mentes e dos corações. E também das estruturas, de uma instituição que, no seu todo, não mudou muito até ao Concílio Vaticano II. Mas, desde então e nos últimos anos, estamos a assistir a enormes mudanças.
Relativamente às mulheres que ocupam cargos de responsabilidade, do que acha que têm medo os homens da Igreja?
Penso que têm medo de perder o poder, seja ele qual for. A questão é que durante o período de formação no seminário e sucessivamente na vida clerical, os sacerdotes não têm muitas interações com as mulheres numa base de igualdade. Quanto mais se partilha a experiência com as mulheres na própria formação pessoal, menos se temerá as mulheres em posições de liderança. É uma questão de experiência de vida.
VITTORIA PRISCIANDARO
Jornalista de «Credere» e «Jesus» Periódicos San Paolo
#sistersproject
UISG, assembleia trienal e sessenta anos de história
A União Internacional das Superioras-Gerais celebra este ano um marco importante: 60 anos de história ao serviço da vida consagrada feminina na Igreja católica. Fundada em 1965, a UISG representa atualmente 1.900 superioras-gerais que dirigem congregações religiosas femininas com mais de 600.000 irmãs em todo o mundo.
Fundada na sequência do Concílio Vaticano II, a UISG - atualmente presidida pela Ir. Mary Barron, irlandesa, da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora dos Apóstolos – soube responder aos desafios dos tempos, tornando-se um ponto de referência essencial para as congregações femininas católicas. Ao longo dos anos, a organização promoveu o diálogo intercongregacional, favoreceu a colaboração entre diferentes famílias religiosas e apoiou projetos comuns em âmbito formativo, educativo e caritativo.
Por ocasião deste aniversário significativo, a UISG acolheu a sua assembleia plenária trienal em Roma, de 5 a 9 de maio, com o tema «Vida consagrada: uma esperança que transforma». Participaram cerca de 900 superioras-gerais provenientes de todos os continentes. A presidente Mary Barron disse ao apresentá-la: «A nossa assembleia oferece-nos a oportunidade, enquanto líderes das congregações religiosas femininas de todo o mundo, de sermos juntas Peregrinas de Esperança. Os testemunhos das irmãs, que caminham com as suas comunidades em situações aparentemente sem perspetivas, serão o fundamento das nossas reflexões e do nosso empenho na realidade concreta do mundo de hoje».