
Eugénia Tomaz
Por ocasião dos vinte e cinco anos da conclusão do Concílio Vaticano ii e da publicação do Decreto conciliar Ad gentes sobre a actividade missionária da Igreja, o Papa João Paulo ii escreveu a Carta Encíclica A Missão do Redentor. Nesta, aprofundou a validade perene do mandato missionário, sob a acção do Espírito Santo, porque a Igreja não pode deixar de anunciar a pessoa de Jesus Cristo como figura central na história da Humanidade, a única mediação entre Deus e os homens. Na sua Encíclica, de 1990, o Pontífice colocava-nos diante da imensa tarefa da nova evangelização, não já dirigida exclusivamente aos povos longínquos que ainda não tinham conhecimento de Jesus Cristo, mas abria o panorama complexo de um mundo que se tinha alterado até mesmo do ponto de vista geográfico: «Basta pensar em fenómenos tais como o urbanismo, as migrações em massa, a movimentação de refugiados, a discriminação de nações com antiga tradição cristã» (n. 32). Acrescenta muitas outras situações às quais chama os novos areópagos e onde deve incidir a actividade missionária: «Por exemplo, o empenhamento pela paz, o desenvolvimento e a libertação dos povos, sobretudo das minorias; a promoção da mulher e da criança; a proteção da natureza, (…). É preciso lembrar, além disso, o vastíssimo areópago da cultura, da pesquisa científica, das relações internacionais, que favorecem o diálogo e levam a novos projectos de vida. (…) Os homens sentem-se como que a navegar no mesmo mar tempestuoso da vida, chamados a uma unidade e solidariedade cada vez maior» (n. 37). Estranhamente, à distância de trinta e cinco anos desta Encíclica, parece que os horizontes referidos por João Paulo ii se têm mantido à margem da missão evangelizadora. Se, na época, o Papa afirmava que tudo estava ainda muito longe do pleno cumprimento, também nos dias de hoje parece verificar-se o mesmo. O motivo talvez seja a rápida descentralização da geografia terrestre para o universo digital, uma espécie de mudança de rumo que afecta o sentido da missão da Igreja. O navegar tempestuoso da vida uniu-se ao navegar nas redes sociais, no imenso oceano digital. Esta transição, ou melhor, este impasse nos objectivos da missão, são-nos propostos agora de um modo diferente, prolongam-se para o espaço sideral.
Precisamos de compreender melhor a origem das mudanças às quais a humanidade está submetida. Com voz profética, Hannah Arendt identificou a questão na sua obra. A condição humana1: «Os homens vivem agora num todo global e contínuo, no qual a noção de distância, inerente até à mais perfeita contiguidade de dois pontos, cedeu perante a furiosa arremetida da velocidade. A velocidade conquistou o espaço; (…) eliminou a importância da distância, pois nenhuma parcela significativa da vida humana — anos, meses ou mesmo semanas — é agora necessária para que se atinja qualquer ponto da Terra. É verdade que nada poderia ter sido mais alheio ao propósito dos exploradores e circum-navegadores do início da era moderna do que este processo de avizinhamento; eles fizeram-se ao mar para ampliar a Terra, não para reduzi-la a uma bola; e, quando responderam ao apelo de terras distantes, não tinham intenção alguma de abolir a distância» (pp. 313-314). Foi esta redução das distâncias que forçou a humanidade a projectar-se mais além dos limites geográficos do Planeta, começando a habitar também o universo digital. Houve a necessidade de acrescentar espaço a todo o espaço já conquistado e conhecido. No entanto, o Papa João Paulo ii, na sua Encíclica, considerou benéfico este encurtamento das distâncias à escala planetária: «No mundo actual, é cada vez mais difícil traçar linhas de demarcação geográfica ou cultural: há uma interdependência crescente entre os povos, o que representa um estímulo para o testemunho cristão e para a evangelização» (n. 82). Mas, esta redução da escala produziu também um efeito adverso, que se verifica actualmente, na imposição crescente quanto à demarcação geográfica de fronteiras. Queremos, de novo, o alargamento das distâncias.
Devemos, então, considerar em que consiste a missão evangelizadora da Igreja que deve chegar a todos os povos. O profeta Isaías tinha anunciado o fundamento desta missão assente na palavra de Deus: «Assim como a chuva e a neve descem do céu, e não voltam mais para lá, senão depois de empapar a terra, de a fecundar e fazer germinar, para que dê semente ao semeador e pão para comer, o mesmo sucede à palavra que sai da minha boca: não voltará para mim vazia, sem ter realizado a minha vontade e sem cumprir a minha missão» (55, 10-11). Muitas vezes esquecemo-nos disto, de que o protagonista da missão é o Espírito divino, é ele que está presente na acção missionária da Igreja. O modo de o realizar, através da palavra, explica-o São João da Cruz quando atribui três características essenciais às palavras que o Espírito Santo produz naqueles que estão unidos a Jesus Cristo: são palavras sucessivas, formais e substanciais. Ou seja, são escutadas, adquirem forma e realizam substancialmente o que significam. Se no princípio era o Verbo, tal como é anunciado no Prólogo do Evangelho de São João, só na relação com a Palavra se conhece e realiza o sentido mais pleno da evangelização. E o sentido pleno, diz-nos João Paulo ii, corresponde à universal vocação à santidade que «está estritamente ligada à universal vocação à missão: todo o fiel é chamado à santidade e à missão» (n. 90). Desde sempre, mas especialmente no mundo actual, cada cristão evangeliza à medida que edifica o seu próprio caminho de santidade, onde quer que se encontre. A terra de missão é aquela onde cada um dá testemunho da Verdade.
1 Hannah Arendt, A condição humana, Relógio D’Água Editores, 2001.
(* Este artigo está escrito sem as regras do acordo ortográfico)