
Maria Helena Sequeira
Toma o nome de polímata (do grego polymathēs) aquele que sabe de muitas coisas. Um típico Homem do renascimento, homo universalis, repleto de uma complexidade distinta. Afinal, reconhecemos hoje os Grandes da história como verdadeiros exemplos desta definição, entendedores das mais variadas matérias: desde a matemática, à lógica, à pintura, à medicina. E foi nessa qualidade que fizeram o mundo andar para a frente.
Um português destaca-se entre estes polímatas, ainda que por muitos esquecido. Pedro Julião, mais tarde Papa João xxi e conhecido como Pedro Hispano, era reflexo de renascimento na era medieval. Nascido em Lisboa, no séc. xiii, era filho de um médico e, talvez por isso, cedo se deixou maravilhar pela ciência. Estudou em França, tanto medicina como teologia, desenvolvendo um amplo conhecimento no âmbito da lógica aristotélica. Mais tarde, em Itália, enquanto lecionava na Universidade de Siena, publicou o tratado Summulae Logicales, no qual propôs reformulações e adendas à lógica aristotélica e redigiu várias obras de relevo na área da medicina, como Tractatus de Oculis e Thesaurus Pauperum.
No entanto, o Papa João xxi foi ao mesmo tempo, e como o nome indica, uma figura muito importante na Igreja Católica. A sua ascensão teve início em 1260, quando foi nomeado decano para a Sé de Lisboa, mas logo em 1273 tornou-se Arcebispo de Braga sob indicação do Papa Gregório x. A sua proeza e flexibilidade de saber deveria ser já nota naqueles tempos, porque Pedro Julião não só participou no xiv Concílio Ecuménico de Lyon, tendo sido neste elevado a Cardeal-Bispo, como em 1275 se tornou o médico principal do Papa Adriano v. Foi este importante passo na sua carreira e grande prova de confiança que lhe concederam a eleição a Papa, em setembro de 1276.
O seu foi um pontificado curto, que não chegaria a um ano, mas marcado por tentativas de mediação no âmbito das relações internacionais e, daquilo que se conta, por uma proximidade aos fiéis, tanto dos mais abastados quanto dos mais desfavorecidos. A história, de facto, narra um homem simples, qualidade que talvez o estudo incessante da mente e do corpo efémero lhe tenha doado. A verdade, é que já Dante o posicionava no Paraíso, como «aquele que brilha em doze livros» («Pietro Spano, lo qual giù luce in dodici libelli», Paraíso, xii, 138), fazendo referência aos seus 12 tratados.
Falecido em maio 1277, após o teto da sua residência em Viterbo ter desabado sobre ele, Pedro Julião deu nome a várias instituições em Portugal: hospitais (como o Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos), avenidas e institutos de educação; e o seu é um legado que abre asas a importantes reflexões.
No seu tempo, a sua morte foi vista como um castigo divino, por ter sido Pedro Hispano um homem que procurava incessantemente respostas a problemas que poucos se dignavam considerar. Não só era condenado o seu estudo da anatomia através da análise de corpos mortos, como eram mal vistos o seu interesse pela lógica de Aristóteles e proximidade aos mais desfavorecidos. Talvez por essa razão, e apesar da importância que as suas obras adquiriram anos mais tarde e por séculos vindouros (uma receita de Tractatus de Oculis, por exemplo, diz-se ter curado a enfermidade ocular de Miguel Ângelo, após a prolongada exposição aos pigmentos das tintas), o seu túmulo tenha sido reservado ao esquecimento por muito tempo. Ainda na catedral de Viterbo e escondido atrás da porta de entrada, o túmulo do Papa João xxi só voltou a ser colocado junto do Altar-Mor da Catedral após a intervenção do então presidente das Câmara de Lisboa, João Soares, no início dos anos 2000, como transmitido na altura pelo Jornal Expresso.
Relemos, assim, no século xxi, a história de um homem que nasceu, cresceu e morreu, numa época conhecida pelas suas “trevas”: não só pela peste ou diminutas condições, mas também, como indica a história de Pedro Hispano, por um domínio repressivo que à busca do conhecimento associava a heresia. Porém, Homens como ele traçaram um rumo de vanguarda, rutura, que nos permite usufruir dos confortos de hoje.
Mas não só, o seu conhecimento não era um, ou único, mas uno; era feito de uma sabedoria diversificada, robusta, impulsionada por uma rara sede de conhecimento. E esta constatação leva-nos a ponderar de onde poderá advir tal inclinação à aprendizagem. Se é inata ou fruto das circunstâncias que nos rodeiam (a conhecida distinção nature vs nurture); se será Pedro Hispano um exemplo da lotaria genética ou de tudo aquilo que se poderia fazer, saber, numa vida em que o tempo é real, tátil, e toda a experiência ganha cor de aventura. Estas são questões complicadas porque, voltando à sabedoria aristotélica, “a virtude está no meio” e nesta situação esse também parece ser o caso. No entanto, podemos sempre tirar inspiração daqueles que nos servem de exemplo, como o Papa João xxi, e aventurarmo-nos pela vida e por tudo aquilo que no caminho podemos aprender.
Principalmente neste ano jubilar, deixemos em segundo plano o virtual e tenhamos a coragem de ser curiosos, de navegar a complexidade do humano que é alma e é corpo, é físico e é espiritual, é fé e é ciência. Não descartemos uma pela outra e mantenhamos acesa em nós a Esperança de que podemos, sim, fazer muita coisa... e ainda vamos a tempo.