· Cidade do Vaticano ·

A existência humana à luz da compreensão da fé cristã

 A existência humana à luz  da  compreensão da fé cristã  POR-003
05 março 2025

Eugénia Tomaz

Partimos de um pressuposto erróneo na compreensão da evolução e do progresso humano. Ou seja, temos um falso sentido de evolução. Tendemos a considerar a existência à escala da temporalidade, na sua dimensão cronológica e sucessiva. Mas a realidade passou a apresentar-se de uma outra forma desde que transformámos os meios tecnológicos em aliados. Por este motivo, damos pouca atenção a todos aqueles que se ergueram em épocas passadas com um olhar crítico, ao mesmo tempo que profético, sobre o futuro da humanidade. No seu brilhante ensaio sobre A condição humana (1958),1 Hannah Arendt analisou, justamente, o problema do desfasamento entre o conhecimento científico e o pensamento, isto é, o facto de termos substituído a capacidade contemplativa, própria da natureza humana, pela linguagem matemática inerente à estrutura da matéria. Arendt diz-nos, que «as “verdades” da moderna visão científica do mundo, embora possam ser demonstradas em fórmulas matemáticas e comprovadas pela tecnologia, já não se prestam à expressão normal da fala e do raciocínio», (p. 14). Isto, porque a ciência, segundo Arendt, se tem «esforçado por tornar “artificial” a própria vida», numa visão redutora e condicionada da existência. O ritmo veloz do desenvolvimento tecnológico introduziu os humanos numa nova categoria de realidade, que é global, mas, acima de tudo, numa nova dimensão do tempo que é simultaneidade. Contudo, por o conhecimento científico se fixar na interpretação matemática do Universo e na geometria do espaço-tempo, condensou a realidade de modo perigoso, que pode conduzir a uma forma de total alienação. Arendt afirma, que «só agora o homem tomou plena posse da sua morada mortal e enfeixou os horizontes infinitos, tentadora e ameaçadoramente abertos a todas as eras anteriores, para formar um globo cujos majestosos contornos e detalhes geográficos conhece como as linhas da própria mão. Precisamente no instante em que se descobriu a imensidão do espaço terrestre, começou o famoso “encolhimento” do globo, até que, no nosso mundo, cada homem é tanto habitante da Terra como do seu país» (p. 313). Ao deparar-se com o espaço infinito da simultaneidade, o ser humano, encontra-se, também, com o problema da mediação para o alcançar. A meta é, portanto, sair das dimensões do espaço-tempo inerentes à morada mortal e habitar esse mais além infinito. Hannah Arendt analisa a obra de arte como uma das mediações possíveis no processo de transfiguração do mundo.

Desde sempre que a grande questão que os humanos se colocam a si mesmos é a relação entre o Uno e o Múltiplo, que o tem levado à procura das mediações. Não nos basta ter adquirido um conhecimento geográfico total do Planeta que habitamos, queremos alargar cada vez mais o conhecimento que nos pode projectar no espaço sideral. Mas, para isso, é necessário entrar numa outra dinâmica da realidade. Na segunda Encíclica de Bento xvi, Salvos na esperança, o Papa dá-nos uma compreensão da fé cristã que permite uma outra leitura da existência humana; diz-nos, que a fé cristã é a substância da esperança e permite-nos caminhar em segurança. É através desta fé que se estabelece a relação entre a eternidade de Deus e o tempo: «A fé… atrai o futuro para dentro do presente, de modo que aquele já não é o puro “ainda-não”. O facto de o futuro existir, muda o presente; o presente é tocado pela realidade futura, e assim as coisas futuras derramam-se nas presentes e as presentes nas futuras» (n.7). Não se trata, portanto, de proporcionar a evasão da realidade presente, mas de uma mudança na compreensão da realidade através de uma nova linguagem. Foi este entendimento global da fé cristã que permitiu a Atanásio de Alexandria e aos Padres nicenos, Gregório de Nazianzo, Basílio, Gregório de Nissa e Cirilo de Alexandria, proceder à renovação da linguagem e reconhecer na Pessoa de Jesus Cristo a mediação entre a eternidade de Deus e a história humana. Através de uma renovação linguística, de um estudo filológico, puderam definir a nova dimensão da realidade e que esteve sempre na base da cultura cristã. Trata-se da dimensão do tempo sagrado, que Joseph Ratzinger expôs com lucidez na sua obra Introdução ao espírito da liturgia: «Todo o tempo é tempo de Deus. Na sua incarnação e adopção da existência humana, a Palavra eterna adoptou também a temporalidade, atraindo o Tempo para o espaço da eternidade. Cristo, ele próprio, é a ponte entre o Tempo e a Eternidade. (…) No Incarnado, que sempre permanecerá pessoa, essa coexistência torna-se corporal e concreta» (cap. v).

Se insistirmos em permanecer apenas na linguagem matemática da matéria teremos uma visão da cultura muito redutora, pelo facto de esta cultura exigir a dependência dos meios tecnológicos. Neste caso, Hannah Arendt tem razão ao dizer que a condição humana é a dependência das coisas, de tudo aquilo que produz na matéria. Se, por outro lado, nos mantivermos na relação com Jesus Cristo ressuscitado, então, a cultura produzirá no tempo obras de eternidade. A cultura encontra-se neste processo de transfiguração.

11 Hannah Arendt, A condição humana, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2001.

(* Este artigo está escrito sem as regras do acordo ortográfico)