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Entrevista

Livros para ler com o lápis na mão

 Livros para ler  com o lápis na mão   POR-002
05 fevereiro 2025

Alessandro Vergni

Durante o seu Pontificado, o Papa Francisco falou publicamente várias vezes sobre a importância das histórias e da literatura. Fê-lo por ocasião do Dia mundial das comunicações de 2020 e voltou a falar sobre isto com grande ênfase através da sua Carta sobre o papel da literatura na educação, no verão de 2024. A relevância da literatura no âmbito da reflexão sobre a vida humana é o foco de Letture. La verità della finzione (Milão, Vita e Pensiero, 2024, 240 páginas), de Silvano Petrosino, que reúne ensaios sobre onze obras-primas da literatura mundial.

Porque sentiu a urgência desta coletânea e porquê precisamente neste momento?

Em parte, porque me aproximo de um ponto importante da minha vida profissional. Além disso, por um motivo ainda mais profundo. Reconsiderando o meu percurso feito até agora, dei-me conta de que, no meu trabalho de ensino e investigação, nas minhas conferências, a minha atenção referiu-se sempre, quase espontaneamente, a dois temas: a literatura e a Bíblia. E não sou nem um literato nem um biblista. Para dizer a verdade, haveria ainda um terceiro âmbito que sempre me fascinou, mas que não pratiquei, a psicanálise, mas esta é outra história.

Na verdade, o senhor é um filósofo. Por que se concentrou sempre neste âmbito?

Parece que me senti atraído pela literatura e pela grande narração bíblica, pois são âmbitos onde, melhor do que em qualquer outro, posso encontrar uma palavra autêntica sobre o que é a experiência humana, sobre o que a experiência traz consigo; enquanto que, na maior parte das vezes, parece que ouço discursos superficiais ou até falazes. Para mim, este foi o ponto: a busca de elementos de autenticidade relativos à vivência subjetiva. Neste sentido, é esclarecedora a afirmação de Lacan, segundo a qual os analistas têm a ver com escravos que se sentem senhores.

Em que sentido estes elementos contêm uma autenticidade e um enigma?

Quando o teu filho te pergunta: «Pai, quando conheceste a mãe?», contas-lhe uma história. Ao mesmo tempo, na língua italiana, a expressão “contar histórias” significa também “contar mentiras”. Por isso, a referência ao texto literário e à Bíblia está relacionada com esta tentativa de contar um pouco da verdade sobre a vivência humana. Este é o cerne da questão, que está no centro do livro.

Para si, a literatura não fala sobre a vida, mas sobre alguns aspetos da experiência humana. Qual é a diferença entre estas duas frases que parecem tão semelhantes?

Se há uma tese no centro do livro, é precisamente a busca do esclarecimento desta questão. Tomemos como exemplo a figura de Satanás, em Milton. Milton leva Satanás a dizer, quando vê o Paraíso terrestre e Adão e Eva abraçados: «Como são belos, eu poderia amá-los. Mas eu sou o diabo, vim para os odiar!»; ou seja, prefere identificar-se com a sua presumível natureza do que aceitar a evidência. Milton, o grande escritor que é, mostrando isto, realiza uma obra-prima e indica claramente um traço, não da vida, mas da vivência subjetiva. Com efeito, cada um, no decurso da sua experiência, pode perder-se na imagem que faz de si próprio.

Através da escolha de autores e obras contidas no seu livro, tem-se a impressão de que, pelo menos implicitamente, o senhor se afasta de uma ideia de arte que se sente obrigada a educar, a indicar ao espetador uma moral.

Um grande autor não escreve o que quer, escreve o que deve. Há uma urgência em escrever e de escrever. O escritor não tem o problema de educar, não deve salvar nem converter ninguém, deve escrever o que deve escrever. Hoje, pelo contrário, a literatura, o cinema, fazem muitas vezes o oposto, abordando os temas do momento, caindo assim na armadilha da atualidade.

Mas a verdadeira literatura, ainda que não queira, educa sempre. Como é possível?

Fá-lo porque procura dizer a verdade, e a verdade educa. Portanto, é necessário inverter os termos da questão: não é que um autor quer educar e por isso diz a verdade, mas dizendo a verdade, educa. É o tema da urgência da escrita. O que deve fazer o artista? Repito: deve fazer o que deve fazer, e é na medida em que se mantiver fiel a este imperativo que se tornará também sujeito educador. Citemos um exemplo. Às vezes, as professoras na escola dizem aos jovens: “Dizei-o com as vossas próprias palavras”; pois bem, o escritor não o pode fazer, pois o que ele escreve é a única forma de dizer aquela verdade, procurada ou encontrada. Não há outras palavras no mundo para o fazer. Eis a sua tarefa!

O senhor analisa quase exclusivamente autores do passado: em que consiste a contemporaneidade de uma obra?

O que é um clássico? Porque Pinóquio é um clássico, tal como a Ilíada e a Odisseia? Porque, apesar dos seus limites, não atraiçoa o humano, e quem não atraiçoa o humano permanece. Ao contrário, hoje, infelizmente até nas escolas, procura-se o atual, não o contemporâneo. Ou seja, recorre-se a uma espécie de astúcia pedagógica, na convicção de que se um texto é atual, no sentido de recente, então é mais capaz de compreender as perguntas dos jovens. Este caminho não me convence!

Outra modalidade para aproximar os autores dos jovens é atualizar, por exemplo, os contos de fadas de acordo com uma sensibilidade dos nossos dias. É uma questão à qual se dedicou muito.

Volta o tema de querer educar, fazendo com que algumas obras digam coisas que nunca tencionaram dizer. Isto também é uma armadilha! Se quisermos dizer algo de novo, por respeito aos contos de fadas, aos romances, escrevamos outros, mas sem deturpar os que já existem. E lembremo-nos que a literatura nunca dá soluções, mas deixa o campo aberto às respostas que nos surgem da comparação entre o texto e a nossa experiência.

Por falar em experiência, fiz uma prova: pedi à Inteligência artificial que me explicasse «O procurador da Judeia», de Anatole France. A diferença entre esta, elaborada artificialmente, e a sua, contida no livro, é notável. Enquanto no primeiro caso recebi uma descrição erudita mas superficial do texto, no segundo fui confrontado com uma empatia. No primeiro caso, faltava o coração. Quantos atores entram em jogo quando lemos um romance?

É a maravilha que acontece de modo supremo com a Bíblia: só lemos aquilo que contribui para escrever, ou seja, não somos espetadores, somos atores da cena. Intervimos fazendo interagir na nossa vida o que lemos e isto acrescenta-lhe algo. Cada leitor é um releitor, mas de certa forma cada leitor é também um escritor. Mas é precisamente isto que acontece na nossa existência; como diz Von Balthasar, se Deus tivesse feito tudo, nós seríamos inúteis. É por isso que digo sempre: como se lê um livro? Com um lápis, pois é preciso sublinhar, glosar.

Portanto, retomando o título do capítulo que dedica a Anatole France, não é suficiente deparar-se com um texto, é preciso sobretudo encontrá-lo.

Certamente, pois é no encontro que o fazemos, leitores-escritores. Chamo a isto precisamente a lei do encontro. Algo só vem ao nosso encontro na medida em que vamos ao seu encontro. Citemos outro exemplo da narração bíblica: Moisés está no deserto a apascentar, esta é a sua vida quotidiana. Num certo momento, vê a sarça ardente. Interroga-se e vai ver. É nesse instante que a sarça lhe fala, não antes; a sarça falou porque Moisés foi ao seu encontro. O encontro é, na realidade, este duplo movimento dos dois sujeitos da história. Moisés é surpreendido na sua vida diária por algo de que decide aproximar-se.

Então, o que permite dar na vida quotidiana o primeiro passo rumo àquilo que suscita assombro?

A atenção, que quer dizer o coração e muito mais. Vejamos o Salmo 18: «Os céus narram a glória de Deus», mas é preciso que alguém leia esta narração, caso contrário tudo seria inútil. Na minha opinião, esta é a razão pela qual Jesus não responde à pergunta de Pilatos: “O que é a verdade?”; Jesus provavelmente sente que a pergunta de Pilatos não é motivada por um desejo, por uma atenção genuína, mas por uma curiosidade superficial.

Se lhe pedissem para selecionar um dos onze autores das suas «Leituras», qual escolheria?

Céline e a relação entre verdade e alucinação na vida do homem. É o tema que diz respeito ao fantasmático, à realidade que é mais do que ela própria, pois alude e contém uma dimensão simbólica mais profunda. É ainda o que Singer escreve sobre o diabo. Também para ele a realidade contém um mistério que nos alcança além do limiar da aparência. O amor salva tudo, pois supera o visível e é capaz de transformar até aquele demónio. Ou pensemos em dom Quixote, citado no capítulo sobre Wallace. A alucinação de dom Quixote é séria: Dulcineia, a esposa do hospedeiro, os moinhos de vento são figuras transformadas. Sancho Pança sabe que o seu senhor enlouqueceu, e contudo segue-o.

Em todos estes casos, descrevemos bem uma realidade habitada também pelo mal.

Cassirer fala do emaranhado da experiência humana. Na experiência do homem não existem somente aspetos positivos, mas também crimes, abomínios. Como na parábola do trigo e do joio, é preciso pegar em ambos, pois quando tencionamos separar a priori, artificialmente, o bem do mal (contornando o problema da liberdade) acontece o que nos mostra Dr. Jekyll e Mr. Hide: o nascimento de monstros.

Se, para concluir, lhe perguntasse onde nasce uma história, o que me responderia?

Do assombro e do medo, os dois caminham sempre juntos. Estatisticamente, o tema da dor, do medo, tende a predominar. Aristóteles, por sua vez, afirma que a filosofia nasce do assombro, não do medo. Isto, do ponto de vista religioso, é muito interessante, pois uma religiosidade que nasce do assombro é muito diferente de uma religiosidade que advém do medo. Contudo, são temas entrelaçados. E, em todo o caso, é sempre um excedente, o motor que provoca o assombro e dá início à narração da história.