Publicamos a seguir o discurso pronunciado pelo Papa Francisco na manhã de 25 de novembro, na Sala Régia do Palácio apostólico do Vaticano, por ocasião da comemoração do 40º aniversário do Tratado de paz e amizade entre a Argentina e o Chile.
Senhores ministros
Eminências, Excelências
Membros do Corpo diplomático
Senhoras, senhores!
É com satisfação que vos recebo por ocasião do 40º aniversário do Tratado de Paz e Amizade entre a Argentina e o Chile, que põe fim a longas controvérsias territoriais entre os dois países. Trata-se de uma feliz comemoração das intensas negociações que, com a mediação pontifícia, evitaram o conflito armado que estava prestes a opor dois povos irmãos e que terminaram com uma solução digna, razoável e equitativa.
Agradeço às Embaixadas do Chile e da Argentina por esta iniciativa comemorativa. Saúdo as respetivas delegações e as autoridades presentes, bem como os representantes dos mediadores que participaram neste evento.
Quis dar um destaque especial a esta comemoração, também com a presença dos senhores cardeais e do Corpo diplomático — aos quais agradeço de coração — tanto para recordar este aniversário como para lançar ao mundo neste momento um renovado apelo à paz e ao diálogo. O compromisso que envolveu estes dois países durante as longas negociações, que foram difíceis, assim como o fruto da paz e da amizade, são com efeito um modelo a poder imitar.
Em 2009, no prefácio do livro sobre o Tratado de Paz e Amizade,1 do saudoso arcebispo Carmelo Juan Giaquinta, escrevi: «O tratado foi possível graças à mediação do Papa João Paulo ii e à confiança nele depositada pelos nossos povos e autoridades. Mas como se chegou à mediação papal? [...] Em primeiro lugar, houve a oração do nosso povo — dos nossos povos — que abominam a guerra. [...] Uma vez alcançada a intervenção pacificadora do Papa João Paulo ii , no Natal de 1978, os esforços dos Episcopados não cessaram. Sem intervir na mediação, que era uma atividade exclusiva do Papa e dos Governos da Argentina e do Chile, a mediação papal teve que ser cultivada, sustentada e defendida contra muitos perigos externos, para que tivesse bom êxito em novembro de 1984, praticamente seis anos depois de ter começado».2Desde os primeiros dias do seu pontificado, São João Paulo ii manifestou preocupação e determinação não só em evitar que a contenda entre a Argentina e o Chile «chegasse a degenerar num lamentável conflito armado, mas também em encontrar uma forma de resolver definitivamente esta controvérsia».3 Depois de ter recebido o pedido dos dois governos, acompanhado de esforços concretos e exigentes, o Papa aceitou mediar com o objetivo de sugerir e propor «uma solução justa e equitativa, e portanto honrosa».4 Com efeito, durante a mediação o Pontífice expressou o seu propósito nestes termos: «Que, graças à boa vontade de ambas as Partes, se encontre uma solução satisfatória, baseada na justiça e no direito internacional, que exclua o recurso à força».5 Hoje, vivemos o triste recurso à força!
O título do Tratado entre a Argentina e o Chile define-o com duas palavras: paz e amizade. Reflitamos um pouco sobre elas.
Primeiro, a paz. Por ocasião da Ratificação do Tratado, a 2 de maio de 1985, João Paulo ii expressou alegria porque — afirmou — com o acordo «se consolida a paz e de maneira que pode justamente dar confiança bem fundada na sua estabilidade».6 O Papa realçou que «este dom da paz exige [...] um esforço quotidiano para a preservar dos obstáculos que se lhe podem opor e para encorajar tudo o que a possa enriquecer. Por outro lado, o Tratado oferece os meios adequados para alcançar ambas as finalidades, tanto no que diz respeito à superação das divergências que possam eventualmente surgir [...], como à promoção de uma amizade harmoniosa através da colaboração em todos os campos que conduzam a uma integração mais estreita das duas Nações».7 Este modelo de resolução completa e definitiva de uma controvérsia através de meios pacíficos merece, pois, ser proposto — como eu disse recentemente — na atual situação mundial, em que tantos conflitos persistem e se agravam por não haver a vontade efetiva de excluir de modo absoluto o recurso à força ou à ameaça para os resolver. E vivemos isto de forma bastante trágica!
A segunda palavra é amizade. «Enquanto sopram os ventos frios da guerra, que se somam a fenómenos recorrentes de injustiça, violência e desigualdade, bem como à grave emergência climática e a uma mudança antropológica sem precedentes, é essencial parar e perguntar-nos: há algo que valha a pena viver e esperar?».8 Com efeito, podemos interpretar as oposições, o cansaço e as quedas como um apelo à reflexão, para que o coração se abra ao encontro com Deus e cada um tome consciência de si mesmo, do seu próximo e da realidade. Não esqueçamos a nossa condição de “mendigos”, somos verdadeiros mendigos. Somos chamados a tornar-nos “mendigos do essencial”, do que dá sentido à nossa vida. «Agindo assim, descobrimos que o valor da existência humana não consiste nas coisas, nem nos êxitos alcançados, nem na competição, mas sobretudo naquela relação de amor que nos sustenta, enraizando o nosso caminho na confiança e esperança». Irmãs, irmãos, «a amizade com Deus, que depois se reflete em todas as outras relações humanas, constitui o fundamento da alegria que nunca se extinguirá».9
Há poucas semanas, por ocasião deste 40º aniversário, os bispos da Argentina e do Chile assinaram uma nova declaração, recordando que o Tratado «impediu a guerra entre povos irmãos».10 Os prelados de ambos os países dão graças a Deus porque, com este acordo, prevaleceram o diálogo e a paz. Ao mesmo tempo, manifestam a sua gratidão a São João Paulo ii , que ofereceu a mediação entre os dois países, mediação levada a cabo pelos cardeais Antonio Samoré e Agostino Casaroli, dois grandes homens.
Faço meu o sentimento dos bispos chilenos e argentinos, dando graças a Deus por nos ter protegido e salvo da guerra. E, com os purpurados e bispos dos dois países, damos graças pela paz e a cooperação entre as duas nações, confiantes de que este caminho pode continuar a ser aprofundado para o bem dos dois povos. Espero que o espírito de encontro e concórdia entre as nações, na América Latina e no mundo inteiro, desejoso de paz, possa ajudar a multiplicar-se em iniciativas e políticas coordenadas para resolver as numerosas crises sociais e ambientais que atingem as populações de todos os continentes, certamente em detrimento dos mais pobres.
Por ocasião do 25º aniversário do Tratado, a 28 de novembro de 2009, teve lugar aqui, no Vaticano, um evento comemorativo que contou com a presença das presidentes da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, e do Chile, Michelle Bachelet. Nessa ocasião, o Papa Bento xvi realçou que o Chile e a Argentina não são apenas duas nações vizinhas, mas muito mais: «São — disse — dois Povos irmãos com uma vocação comum de fraternidade, respeito e amizade, que é em grande parte fruto da tradição católica que está na base da sua história e rica herança cultural e espiritual».11Hoje, quarenta anos depois, renovamos a nossa gratidão pelos esforços de todas as pessoas que, nos governos e nas delegações diplomáticas de ambos os países, contribuíram positivamente para a resolução pacífica, satisfazendo assim os anseios de paz dos povos argentino e chileno. O Tratado de Paz e Amizade, como então afirmou o Papa Bento xvi , «é exemplo luminoso da força do espírito humano e da vontade de paz perante a barbárie e a irracionalidade da violência e da guerra como meio de resolução de diferendos».12 É um exemplo, atual como nunca, de como é necessário «perseverar sempre com a vontade firme e até às últimas consequências em busca da resolução das controvérsias com verdadeira vontade de diálogo e acordo, através de negociações pacientes e de compromissos necessários, e tendo sempre em conta as justas exigências e os legítimos interesses de todos».13
Neste ponto, é necessário fazer referência aos numerosos conflitos armados em curso, que ainda não se extinguiram, apesar de constituir feridas dolorosas para os países em guerra e para toda a família humana. E aqui gostaria de chamar a atenção para a hipocrisia de falar de paz e jogar à guerra. Nalguns países onde se fala muito de paz, os investimentos mais rentáveis são os das fábricas de armas. Esta hipocrisia leva-nos sempre ao fracasso. O fracasso da fraternidade, o fracasso da paz! Deus queira que a comunidade internacional possa fazer prevalecer a força do direito através do diálogo, pois o diálogo deve ser a alma da comunidade internacional.14 Menciono apenas dois fracassos da humanidade, hoje: a Ucrânia e a Palestina, onde se sofre, onde a prepotência do invasor prevalece sobre o diálogo. Excelências, senhoras e senhores, agradeço-vos de coração a participação neste evento comemorativo. Por intercessão de Maria, Rainha da paz, nossa Mãe, invoco a bênção de Deus sobre as queridas nações do Chile e da Argentina, e estendo-a a todos os povos que desejam a paz e a concórdia, e a todos os homens e mulheres que se fazem artífices da fraternidade e da amizade social. Obrigado!
A bênção do Senhor para os nossos povos!
1 Carmelo Juan Giaquinta, El Tratado de paz y amistad entre Argentina y Chile. Cómo se gestó y preservó la mediación de Juan Pablo ii , Buenos Aires 2009.
2 Ibid., 9-11.
3 João Paulo ii , Mediação entre a Argentina e o Chile no diferendo sobre a zona austral (23 de abril de 1982).
4 Ibid.
5 Ibid.
6 João Paulo ii , Ratificación del Tratado de paz y amistad concertado entre la República Argentina y la República de Chile. Mediación en la controversia sobre la zona austral (2 maio 1985).
7 Ibid.
8 Mensagem por ocasião do xlv Encontro para a Amizade entre os Povos, Rimini, 20-25 de agosto de 2024 (19 de julho de 2024).
9 Ibid.
10 En el 40º aniversario del Tratado de Paz y Amistad entre Argentina y Chile. Declaración de las Conferencias Episcopales de ambos países, Buenos Aires (6 novembro 2024).
11 Discurso às Delegações da Argentina e do Chile por ocasião do 25º aniversário do Tratado de Paz e Amizade entre os dois países (28 de novembro de 2009).
12 Ibid.
13 Ibid.
14 Cf. Discurso aos membros do Corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé para a apresentação dos bons votos de Ano Novo (8 de janeiro de 2024).