· Cidade do Vaticano ·

Reflexão litúrgico-pastoral para o primeiro domingo do Advento

Aprender a confiar no Dia novo que vem

 Aprender a confiar no Dia novo que vem  POR-048
28 novembro 2024

«Para vós, Senhor, elevo a minha alma» (Sl 25, 1). Antífona do Cântico de Entrada que inaugura a celebração eucarística do Advento, do Ano litúrgico, do Ano inteiro. Aponta a atitude a assumir pela Assembleia fiel e orante: a oblação permanente, a oração constante. Para que esta atitude não fique esquecida, mas tome verdadeiramente conta de nós, as mesmas palavras são, em parte, repetidas no refrão do Salmo responsorial, que reclama também a confiança (bathah) em Deus. Extraordinário pórtico de entrada no Advento e no novo Ano litúrgico. Belíssima forma de viver, elevando para Deus a nossa vida: a oração é a nossa vida! A nossa vida em ascensão e oração permanente, sacrifício de suave odor, incenso puro subindo para o nosso Deus. Sempre. O Evangelho dirá com a mesma energia e alegria: «Erguei-vos e levantai a cabeça» (Lc 21, 28). É o gesto do justo justificado por Deus (Jb 22, 26). Página em branco, Primeira e Última, que podemos apresentar a Deus neste início de Advento e de Ano litúrgico. De Deus é a palavra e a escrita que não passa, e que deve encher por completo as páginas da nossa vida.

2. «Orando em todo o tempo», diz, a terminar, a lição do Evangelho deste Primeiro Domingo do Advento (Lc 21, 25-28 e 34-36). «Orar em todo o tempo» significa não se deixar enterrar na lama dos caminhos banais e fúteis deste tempo, de qualquer tempo, e que o Evangelho mostra que a busca desenfreada do sucesso e das falsas soluções da devassidão, da embriaguez e das preocupações da vida (Lc 21, 34) é uma teia que nos enreda e não nos deixa ver bem, belo e bom. Andamos sempre tão atarefados com inúmeros afazeres, campos, bois, negócios, casamentos, que ficamos com o «coração pesado» e insensível (Lc 21, 34), inamovível como o Faraó nas tradições do Êxodo, tornando-nos incapazes de ver o Filho-do-Homem-que-vem (Lc 21, 27), a toda a hora, nos nossos irmãos mais pequeninos! Ora, o Advento é o Filho-do-Homem-que-vem, para que nós o acolhamos. Se o acolhermos, saímos fora da teia dos nossos afazeres que nos sufoca, o penúltimo, e entramos no mundo maravilhoso do Último, do Amor, da Liberdade, que rompe as nossas cadeias.

3. Sinais no sol, na lua, nas estrelas, sobre a terra, convulsões no mar, medos vários, são acontecimentos que o Antigo Testamento refere a propósito do «Dia do Senhor», com a intervenção do próprio Deus (Is 13, 6-22; Jl 2, 1-11). O facto de agora, no Evangelho que estamos a ler, tais acontecimentos aparecerem conjugados com a Vinda do Filho do Homem é a indicação clara de que esta Vinda é a manifestação de Deus (1). Além disso, os acontecimentos assinalados mostram ainda que o mundo presente não é definitivo, mas transitório, e abrem caminho para a nova criação, o novo céu e a nova terra (Ap 21, 1) (2). Mas é ainda percetível a nossa habituação à ordem fixa do mundo, em que nos habituámos a confiar, vindo ao de cima o desconforto sentido e o tom de angústia e confusão que as mudanças assinaladas nos trazem (Lc 21, 26) (3). E fica também a descoberto que devemos aprender a confiar, não nestas velhas realidades passageiras, mas no Dia novo que aí vem (4).

4. Mas que os acontecimentos assinalados abrem, não para vias negativas, mas para perspetivas de salvação, pode ver-se na atitude que Jesus indica aos seus discípulos: «Quando estas coisas começarem a acontecer, erguei-vos e levantai a cabeça, porque está próxima (eggízei) a vossa libertação (apolýtrôsis)» (Lc 21, 28). A hora é, portanto, de libertação. E note-se que Lucas usa o termo «libertação» sobretudo para retratar a nova situação de um prisioneiro a quem foram retiradas as cadeias, e a quem é concedida a liberdade. Quer isto dizer que os discípulos de Jesus não devem estar mais presos, amarrados às situações terrenas, sempre difíceis, instáveis e transitórias, sempre penúltimas, mas podem entrar «na liberdade da glória dos filhos de Deus» (Rm 8, 21). A proximidade anotada é a proximidade do Reino de Deus que, pondo em causa o nosso arco instintivo e desiderativo e as nossas amarras autorreferenciais, nos liberta, fazendo irromper em nós a gratuidade e o amor assimétrico. Esta proximidade faz-se presente em cada geração. E é por isso que, neste tempo novo, tudo é urgente e decisivo, não por ser breve, mas por estar grávido de oportunidades salvíficas.

5. O escritor argentino Jorge Luis Borges deixou-nos versos densos como estes, acentuando a importância e a intensidade de cada momento da nossa vida a não desperdiçar: «Não há um instante que não esteja carregado como uma arma»; «Em cada instante o galo pode ter cantado três vezes»; «Em cada instante a clépsidra deixa cair a última gota». E o poeta brasileiro Vinícius de Moraes escreveu assim num belíssimo poema: «A coisa mais divina/ Que há no mundo/ É viver cada segundo/ Como nunca mais». É assim, sempre vigilantes, amantes e esperantes, sempre à escuta e à espera de alguém, com Amor imenso e intenso, que rasga o próprio tempo, que devemos encher todos os nossos instantes, como se fosse a primeira vez, como se fosse a última vez. Tudo no Evangelho é decisivo: cada passo conta, cada gesto conta, cada palavra conta, cada copo de água conta!

6. Átrio de um tempo novo, habitado, «carregado» de justiça e de bondade. Obra de Deus no nosso mundo. E só dele. Obra terna, tenra e nova, como um «rebento» de um jovem casal ou de uma planta. Sinal de Primavera no meio da invernia e da lama em que nos vamos atolando, ensonados e enlatados, sem sequer darmos por isso. É, portanto, mesmo preciso que Ele venha e que nos acorde e nos levante da nossa letargia com novas pautas e novos acordes musicais! E que nos dê nomes novos a nós, aos nossos corações empedernidos, às nossas cidades e aldeias, às nossas escolas, hospitais, ruas! Dar nome é criar e recriar. Obra só de Deus. Extraordinária lição de Jr 33, 14-16.

7. Paulo passa por Tessalónica (1 Ts 3, 12-4, 2), ou pela nossa terra, e ensina-nos a levantar a nossa vida para Deus, para dele acolhermos o alento criador, e a rivalizarmos no pagamento das dívidas de amor que dia a dia vamos contraindo uns para com os outros. O paradigma, o modelo, o exemplo, é sempre o amor que Deus nos tem, e de que Paulo é testemunha qualificada. Há quem estranhe e pense mesmo que se trata de um mistério o facto de Paulo, quando fala de amor (agápê), quase não mencionar o nosso amor a Deus [apenas mencionado de passagem em Rm 8, 28; 1 Cor 2, 9; 8, 3; 16, 22 (philéô); Ef 6, 24; 2 Ts 3, 5 e 2 Tm 3, 4 (philéô)], para acentuar sobretudo o amor de Deus para connosco e o nosso amor para com o próximo. Na verdade, não é para estranhar, e muito menos se trata de um mistério. É mesmo verdade que a Bíblia hebraica e o coração dos Evangelhos falam menos do nosso amor para com Deus, e mais, muito mais, do nosso amor para com o próximo e para com o estrangeiro e o inimigo! E não se trata de um amor que satisfaz o nosso desejo, mas da imitação do amor de Deus e de obedecer a um mandamento. Ora, Deus ama o desvalor e manda-nos amar como Ele ama. Então, a nossa resposta ao amor de Deus não consiste na redamatio ou retribuição a Deus do amor com que Ele nos ama, mas volta-se para a frente e traduz-se no amor ao outro, próximo, estrangeiro ou inimigo. Quer na Revelação patente no at quer em Jesus, o amor ao próximo aparece como o lugar, o único lugar, da epifania do nosso amor a Deus.

8. Os acordes do Salmo 25, que hoje cantamos, trazem à tona os rumos e os caminhos de Deus, que são sempre bondade, verdade, ternura e misericórdia — caminhos intransitivos, entenda-se — que se vão insinuando mansamente dentro de nós, mais ou menos como deixou escrito, no seu Diário, com data de 23 de janeiro de 1948, o grande escritor francês George Bernanos: «Que doçura pensar que, embora ofendendo-o, não deixamos de desejar, desde o mais profundo do santuário da alma, aquilo que Ele deseja!».

D. António Couto
Bispo de Lamego