Contém um apelo a «amar a justiça, a caridade e a verdade», iluminadas pela misericórdia, «arquitrave que sustenta a vida da Igreja», o discurso dirigido pelo Papa Francisco aos mais de trezentos participantes no curso de formação promovido pelo Tribunal da Rota Romana sobre o tema “Ministerium iustitiae et caritatis in veritate”, que teve lugar no Palácio da Chancelaria de 19 a 23 de novembro. O Pontífice recebeu-os em audiência na Sala Clementina, no final dos trabalhos.
Eminência
Excelências
Prezados irmãos e irmãs,
bom dia!
Estou feliz por me encontrar convosco, no final do Curso de formação promovido pelo Tribunal da Rota Romana sobre o tema Ministerium Iustitiae et Caritatis in Veritate. Dirijo a cada um de vós a minha cordial saudação e agradeço ao Decano da Rota e a quantos colaboraram para estes dias de estudo e reflexão. Eles deram-vos a oportunidade de examinar os desafios jurídico-pastorais relativos ao casamento e à família. Isto é muito importante! Trata-se de um campo apostólico vasto, mas também complexo e delicado, ao qual é necessário dedicar energia e entusiasmo, com o objetivo de promover o Evangelho da família e da vida.
«A caridade na verdade, que Jesus Cristo testemunhou com a sua vida terrena e sobretudo com a sua morte e ressurreição, é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira. O amor — “caritas” — é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometer-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz. É uma força que tem a sua origem em Deus, Amor eterno e Verdade absoluta». Com estas palavras, Bento xvi começou a sua Encíclica Caritas in veritate,1 apresentando a doutrina social da Igreja na perspetiva da relação entre caridade e justiça, e de ambas com a verdade. São palavras válidas para todo o âmbito da sociedade civil, plenamente pertinentes quando se consideram as relações entre os fiéis e entre eles e os Pastores, no seio do Povo de Deus. Por isso, é muito apropriado qualificar a missão do Tribunal da Rota Romana como ministerium iustitiae et caritatis in veritate — ministério da justiça e da caridade na verdade — e esta descrição pode incluir todos os tribunais eclesiásticos, aliás, abrange toda a atividade pastoral da Igreja, que foi o tema desta Conferência.
O fulcro da mensagem que hoje gostaria de vos deixar é o seguinte: sois chamados a amar a justiça, a caridade e a verdade, e a esforçar-vos diariamente para as pôr em prática no vosso trabalho de canonistas e em todas as tarefas que desempenhais ao serviço dos fiéis. Trata-se de amar as três ao mesmo tempo, dado que elas caminham juntas — justiça, caridade e verdade caminham juntas — e, se prescindirdes de uma, as outras perderão a sua autenticidade. Com efeito, o nosso modelo é Jesus Cristo, que é a Verdade, e é justo e misericordioso.
Nem justiça sem caridade, nem caridade sem justiça. A caridade sem justiça não é caridade. A justiça é uma virtude cardeal muito importante, que leva a dar a cada um o seu direito. E esta virtude certamente deve ser vivida também no seio da Igreja: exigem-no os direitos dos fiéis e os direitos da própria Igreja. Contudo, em nenhuma comunidade humana, e menos ainda na Igreja, é suficiente respeitar os direitos: é preciso ir além dos direitos, com o impulso da caridade, procurando o bem dos outros através da doação generosa da própria existência. É necessário viver o serviço do amor, «pois [...] a justiça só pode ser entendida à luz do amor».2 Até nos vossos compromissos jurídicos tende sempre presente o seguinte: as pessoas devem ser tratadas não só segundo justiça, que é imprescindível, mas também e sobretudo com caridade. Nunca vos esqueçais que quantos vos procuram, pedindo-vos para exercer o vosso ofício eclesial, devem encontrar sempre o rosto da nossa Mãe, a santa Igreja, que ama com ternura todos os seus filhos.
Assim, é preciso evitar uma justiça fria, que seja meramente distributiva, sem ir além, isto é, sem misericórdia. Pode-se aplicar à justiça o que se afirma na Encíclica Fratelli tutti: «As pessoas podem desenvolver algumas atitudes que apresentam como valores morais: fortaleza, sobriedade, laboriosidade e outras virtudes. Mas, para orientar adequadamente os atos das várias virtudes morais, é necessário considerar também a medida em que elas realizam um dinamismo de abertura e união para com outras pessoas. Este dinamismo é a caridade, que Deus infunde. Caso contrário, talvez tenhamos só uma aparência de virtudes, que serão incapazes de construir a vida em comum».3
Mas também não se pode pensar na caridade sem justiça. Com efeito, «a caridade — explica ainda Bento xvi — supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é “meu”; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é “seu”, o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso “dar” ao outro do que é meu, sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles”.4 Precisamente porque amais todos e cada um dos fiéis, cultivai a vossa sensibilidade jurídica, não entendida como mero cumprimento de formalidades, contudo devidas, mas como delicado reconhecimento do que constitui um verdadeiro direito da pessoa na Igreja. A sua dignidade infinita deve ser exemplarmente respeitada nas relações intraeclesiais.
Mas é preciso superar medos inúteis. Em primeiro lugar, o medo da justiça, como se ela pudesse minar ou diminuir a caridade. Se observarmos bem, este medo deriva de uma noção errada da justiça, considerada como reivindicação egoísta e potencialmente conflituosa. A essência da justiça é completamente diferente: é uma virtude requintadamente altruísta, que visa o bem do outro. Se o outro pode e deve, às vezes, exigir que se respeite o seu direito, isto pressupõe a objetividade do que é devido. Como agentes de justiça, tendes a importantíssima tarefa de ajudar a determinar quais são os direitos e deveres dos fiéis, e como eles devem ser salvaguardados, até mediante os julgamentos, tão necessários, quando são oportunos, para o bem da Igreja e de todos os seus membros.
Também não se pode ter medo da caridade, e da misericórdia como sua expressão caraterística. A caridade não dissolve a justiça, não relativiza os direitos. Em nome do amor, não se pode negligenciar o que é dever da justiça. Por exemplo, não se pode interpretar as normas atuais sobre os processos matrimoniais como se, na justa busca da proximidade e da celeridade, elas implicassem um enfraquecimento das exigências da justiça. Por sua vez, a misericórdia não anula a justiça, pelo contrário, impele a vivê-la mais delicadamente, como fruto da compaixão perante os sofrimentos do próximo. Sim, «a arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua ação pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes — as três atitudes do Senhor, não é verdade? Proximidade, misericórdia e ternura. O Senhor está próximo, é misericordioso, é terno — no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo».5
A harmonia entre caridade e justiça ilumina-se na sua referência comum à verdade. Verdadeira caridade e verdadeira justiça: eis o horizonte fascinante e o desafio atraente do vosso serviço eclesial. Já o recordava o próprio incipit da Encíclica de Bento xvi : Caritas in veritate. A este propósito, ensinava: «Só na verdade a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida. A verdade é luz que dá sentido e valor à caridade. Esta luz é simultaneamente a luz da razão e da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doação, acolhimento e comunhão. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade».6
Irmãos e irmãs, a Igreja deposita muita confiança em vós, como agentes de justiça e caridade na verdade. Que o clima do vosso trabalho seja de esperança, que está no próprio fulcro do já iminente Ano Santo. Pode-se aplicar a vós a exortação que dirigi na Carta de proclamação: «Deixemo-nos, desde já, atrair pela esperança, consentindo-lhe que, por nosso intermédio, se torne contagiosa para quantos a desejam. Possa a nossa vida dizer-lhes: “Confia no Senhor! Sê forte e corajoso, confia no Senhor!” (Sl 27, 14). Que a força da esperança encha o nosso presente, aguardando com confiança o regresso do Senhor Jesus Cristo, a quem é devido o louvor e a glória agora e nos séculos futuros!».7
Pela vossa missão e, nela, pela vossa santificação, concedo-vos de coração a minha bênção. E vós, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Obrigado!
1 29 de junho de 2009, n. 1.
2 Carta enc. Dilexit nos (24 de outubro de 2024), 197.
3 3 de outubro de 2020, n. 91.
4 Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 6; cf. São Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de 1967), 22.
5 Bula Misericordiae vultus (11 de abril de 2015), 10.
6 Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009), 3.
7 Bula Spes non confundit (9 de maio de 2024), 25.