Jeremias 31, 7-9 põe diante de nós uma grande procissão de alegria e de esperança, vinda do Norte, da Babilónia, em que participam todos os filhos de Deus. Note-se a presença dos cegos, dos aleijados, das grávidas, das parturientes. Veja-se a esta luz José e Maria a caminho de Belém, com Maria grávida e parturiente (Lc 2, 5-7). Procissão maravilhosa em que ninguém fica de fora ou para trás: pura graça e salvação de Deus bem à vista! Verdadeiramente, Deus salva (hôshîa‛) o seu Povo (Jr 31,7). Não nos esqueçamos Hoje de valorizar o nosso canto do hossana , que é um grito levantado para Deus, e que significa, à letra, « salva, por favor » (hôshîa‛ na’).
2. Para dizer esta alegria filial, batismal, temos de cantar que «o Senhor fez maravilhas em favor do seu povo». É o Salmo 126, o canto do regresso a Casa, de um sonho feliz, da estação das canções e das colheitas. Verdadeiramente Deus cuida de nós. O Canto ritmado do Salmo 126 serve para nos abrir bem os olhos do coração para vermos bem as inumeráveis maravilhas com que Deus enche os nossos caminhos todos os dias. Entre a sementeira e a ceifa, entre a dor e a alegria, o inverno e a primavera, a semente não erra, a semente não mente. Segue o seu curso natural. Suavemente. Aí está, portanto, outra vez a jubilosa procissão dos exilados! E nós, extasiados, como quem sonha, a boca cheia de riso e os lábios de canções.
3. Aí está também a Carta (ou pregação) aos Hebreus 5, 1-6, que nos apresenta uma excelente figuração do sacerdote: chamado por Deus, postado a meio caminho entre o coração de Deus e o coração dos homens, para encher este mundo de graça serena e fecunda. Ao jeito da vara sacerdotal de Aarão e por acumulado excesso, de onde brotam ao mesmo tempo folhas verdes, flores em botão, flores abertas e frutos maduros, conforme o insuperável texto do Livro dos Números 17, 16-26. É dito que os frutos são amêndoas. Vara de amendoeira, portanto. Já ninguém estranhará agora que o candelabro (menôrah) que, noite e dia, ardia na presença de Deus, estivesse ornamentado com flores de amendoeira (Ex 25, 31-35; 37, 20-22). E também já ninguém estranhará que a tradição judaica tardia refira que a vara do Messias havia de ser madeira... de amendoeira. O excesso divino da primavera e da esperança em pleno inverno humano de dor e de pecado.
4. E lá está outra vez um Cego no Caminho de Jesus. Reparemos bem que um cego está excluído da luz. Para ele, o sol não nasce. Nem se põe. É sempre noite. Não vê o mundo nem os homens. Apenas os sente com os ouvidos. Vive na valeta da sociedade, e o seu lugar de trabalho é na valeta da estrada de Jericó, por onde passam muitos peregrinos a caminho de Jerusalém. É do grande texto de Mc 10, 46-52 que falamos, e que é conhecido como o episódio do Cego de Jericó. Na verdade, está em cena muito mais do que cegueira e geografia. Atente-se em como o narrador nos passa sobre o Cego informação exaustiva, distribuída em seis anotações: é o filho de Timeu (1), chama-se Bartimeu (2), é cego (3), pede esmola (4), está sentado (5) à beira do Caminho (6).
5. Se revisitarmos com atenção as páginas dos Evangelhos, nomeadamente de Marcos, só encontramos tanta informação pessoal nos relatos de vocação. Veja-se, a propósito, o chamamento de Simão e André (Mc 1, 16-18), de Tiago e João (Mc 1, 19-20) e de Levi (Mc 2, 14). Estes indicadores são importantes, pois é bem provável que, no episódio do Cego de Jericó, estejamos mais perante um relato de vocação do que de cura, ou em que a vocação se sobrepõe à cura.
6. O Cego, excluído da sociedade e também de Deus (assim se olhava então para alguém portador de deficiência), grita por duas vezes. Quem grita é porque está longe e se quer fazer ouvir. Um Cego sente-se longe de Deus, da luz e da comunidade. Dizia assim a tradição religiosa e cultural daquele tempo e daquele espaço. Por isso, o Cego grita e volta a gritar . O conteúdo do seu grito é belo: «Filho de David, Jesus, faz-me graça (eléêsón me)» (Mc 10, 47). O narrador informa-nos que «muitos dos passantes o repreendiam para que se calasse, mas que ele gritava ainda mais: “Filho de David, faz-me graça (eléêsón me)”» (Mc 10,48). O apelativo é da primeira vez «Filho de David» e «Jesus». Da segunda vez soa apenas «Filho de David». Filho de David é um título messiânico (Mc 12, 35). Até agora apenas Pedro tinha reconhecido Jesus como o Messias (ho Christós) (Mc 8, 29). Com este apelativo repetido, o cego mostrava e dava voz à esperança que o habitava. O que o cego pede a Jesus, Filho de David, é que lhe faça graça: eléêsón me. É quanto nós cantamos ainda Hoje, e Hoje devemos valorizar também este canto: Kýrie eléêson! Significa, na sua letra, pedir ao Senhor que pegue maternalmente em nós ao colo, que maternalmente nos embale e que maternalmente olhe e sorria para nós!
7. Vimos que muitos dos passantes repreendiam o cego para que se calasse. Pouco antes são as pessoas que levam as crianças a Jesus para que Ele lhes tocasse, e são os próprios discípulos de Jesus que afastam com dureza as pessoas (Mc 10, 13). Ontem como hoje não falta gente que não nutre simpatia pelas crianças, pelos deficientes e pelos mendigos. Não é assim Jesus. Informa-nos o narrador que, ouvindo os gritos do cego, Jesus para . E, parando, põe-se ao nível do Cego, que estava parado, e parado ia ali ficar. Mas Jesus para e chama . Um versículo (Mc 10, 49) em que o verbo chamar se ouve três vezes. Jesus não exclui, mas inclui, e faz com que aqueles que antes mandavam calar o cego, querendo mantê-lo na exclusão, entrem agora neste novo movimento de inclusão. Note-se outra vez o agrafo à grande procissão de Jr 31, 7-9, que incluía cegos, aleijados, grávidas e parturientes. Também Jesus não quer deixar ninguém de fora ou para trás.
8. Ao sentir-se chamado e incluído, o Cego deixa tudo (atira fora o seu manto, onde recolhia as esmolas) e, num salto (sem qualquer hesitação), fica junto de Jesus (Mc 10, 50). Jesus pergunta-lhe, tal como atrás tinha perguntado aos dois filhos de Zebedeu: «Que queres que Eu te faça?» (Mc 10, 51a). Naturalmente, o Cego responde: «Que eu veja!» (Mc 10, 51b). Mas Jesus diz-lhe: « vai !» (Mc 10, 52a). Poucos se apercebem do notório desajuste entre o pedido do Cego e a resposta de Jesus. « vai !» não é, de facto, a resposta adequada ao pedido do Cego: «Que eu veja!». A resposta adequada seria: «Vê!», como está, de resto, documentado no episódio paralelo de Lc 18, 42. Mas neste « vai !» já se vê claramente o teor vocacional e missionário do relato.
9. Lindo ver na conclusão do relato que o Cego viu, ficou iluminado, e seguia Jesus no caminho (Mc 10, 52b). Trata-se do único doente curado que permanece com Jesus e sabe reconhecer quem é Jesus. Aí está, então, a figura bela do verdadeiro discípulo de Jesus. Chamado e iluminado pela Luz que é Jesus, segue Jesus no caminho . Tem de o seguir, temos de o seguir. Ele é a Luz verdadeira. E a nossa Luz é apenas reflexa, mysterium lunae, como diziam os antigos Padres acerca da Igreja. E Jesus é também o Caminho! Senhor Jesus, chama por nós, inclui-nos no teu amor, faz-nos graça, ilumina a nossa vida, torna-nos fiéis seguidores, atrás de Ti, no teu caminho de luz e iluminação .
*Bispo de Lamego
D. António Couto *