· Cidade do Vaticano ·

Convite a servir e dar a vida por amor

 Convite a servir e dar a vida por amor  POR-042
17 outubro 2024

ODomingo xxix do Tempo Comum oferece-nos um pequeno extrato do chamado «Quarto Canto do Servo de yhwh » (Is 53, 10-11). O justo, meu Servo, diz Deus, justificará muitos, diz Deus. Profeta «profetizado»: eis a verdade do profeta-servo. Não fala, mas é falado: fala Deus dele (Is 52, 13-15; 53, 11-12); falamos nós dele (Is 53, 1-10). Nós, batendo no peito, reconhecemos que as suas chagas não são o seu castigo merecido, mas são a cura para a nossa malvadez. Na verdade, aquelas chagas entram pelos olhos: são a imagem da malvadez que há dentro de nós. De facto, vendo bem aquelas chagas abertas e a sangrar, temos mesmo de reconhecer que foi a violência e a malvadez que há dentro de nós que as produziu. A violência e a malvadez constituem, portanto, a doença que há em nós. Diagnosticada a doença, podemos agora lançar mão do remédio. E o remédio é Jesus, que Deus apresenta como aquele que, entregando a sua vida à nossa violência, atravessa a nossa violência, não combatendo-a com mais violência, o que só aumentaria o caudal da violência, mas sofrendo-a, absorvendo-a, abraçando-a, dissolvendo-a e absolvendo-a por amor: é assim que nos justifica, isto é, nos transforma de pecadores em justos: milagre do perdão e da recriação operados pelo nosso Deus. Só Deus pode e sabe criar, como só Ele pode e sabe perdoar e justificar, que é transformar um pecador em justo.

2. Faz-nos bem a seguir cantar demoradamente com o Salmo 33: «Desça sobre nós a vossa misericórdia», e contemplar com encanto e emoção o rosto do novo sumo sacerdote, Jesus, Filho de Deus, posto por escrito diante dos nossos olhos no trono da Cruz (Gl 3, 1), para o vermos bem a Ele, e para nos vermos bem a nós: outra vez um rosto desfigurado pela nossa violência e malvadez, e a ternura daquele olhar de graça, que nos redime e nos salva. É a extraordinária lição de Hb 4, 14-16.

3. E voltamos ao caminho com Mc 10, 35-45. Não podemos esquecer que imediatamente antes da cena de hoje, Jesus tinha anunciado aos seus discípulos, pela terceira vez e de modo exaustivo e claro, o que estava para lhe acontecer em Jerusalém: rejeição, humilhação, paixão, morte, ressurreição (Mc 10, 33-34). Este é o mais completo e detalhado anúncio que Jesus faz aos seus discípulos acerca do que o espera em Jerusalém. Todos estes anúncios (Mc 8, 31; 9, 31; 10, 33-34) são feitos no caminho . Mas só agora, neste terceiro anúncio, Jesus diz expressamente que se encaminha para Jerusalém, onde estas coisas acontecerão. Neste contexto, na imediata sequência do terceiro anúncio da sua Paixão, é de um descaramento de cortar à faca que Tiago e João, que vão no caminho com Jesus desde o princípio, façam de conta que não ouviram nada, e se aproximem agora de Jesus com um estranho pedido, que implica uma postura de cortar à faca: «“Mestre (didáskale), queremos que aquilo que te pedimos tu nos faças”. Ele então disse-lhes: “Que quereis que eu vos faça?”. Eles, então, disseram-lhe: “Dá-nos que um à tua direita e um à esquerda nos sentemos na tua glória”» (vv. 35b-37). Entenda-se: Tiago e João vão de pé no caminho , mas querem sentar-se , não no chão nem na valeta, mas em lugares de destaque. O narrador diz-nos que os outros Dez ficaram indignados. E é fácil entender que não será tanto pela reprovação que o pedido dos dois irmãos lhes merecia, mas porque também eles estavam a pensar a mesma coisa, e se viram antecipados!

4. Jesus chama-os então todos para si, para lhes dizer ao coração que há os chefes deste mundo que mandam, tiranizam e tiram a vida, e há os servos que servem e dão a vida por amor, isto é, justificam. E aí está Jesus a apresentar-se de novo como verdadeiro Mestre pró-ativo, que sabe o caminho , ensina o caminho , faz o caminho , é o caminho : veio para servir e dar a vida por amor.

5. Mas tudo ficará mais claro, quando, no próximo Domingo ( xxx ) se vir bem o confronto produzido pelo episódio do Cego de Jericó (Mc 10, 46-52), paradigmática e pedagogicamente colocado no termo do caminho . O Cego está sentado (a posição ansiada por Tiago e João e pelos outros dez!) à beira do caminho, na valeta. Grita porque, sendo cego, é um excluído, e há, portanto, entre ele e a sociedade, e entre ele e Deus, pensa ele, uma grande distância. Tem de gritar, portanto, para vencer essa distância. Mas aí está o Mestre pró-ativo: para , colocando-se ao nível do cego, e chama , incluindo o excluído, anulando a distância. Sem hesitação, o cego atira logo fora o manto estendido à sua frente, à beira do caminho . Estava nesse manto a sua subsistência, a sua vida, pois era nele que os que passavam deitavam as suas esmolas e, com um salto, de forma decidida e enérgica, fica de imediato no lugar certo, junto de Jesus. Jesus faz-lhe a mesma pergunta que ouvimos hoje Jesus fazer a Tiago e João: «Que queres que Eu te faça?». Resposta óbvia do cego: «Que eu veja!». Ordem nova de Jesus: « vai !».

6. Poucos se apercebem. Mas « vai !» não é a resposta adequada àquele pedido do cego: «Que eu veja!». A resposta adequada seria: «Vê!», como está, de resto, no episódio paralelo de Lc 18, 42. Mas o que conta é que o cego obedeceu à ordem nova de Jesus. Diz-nos o narrador que seguia agora jesus no caminho ! Note-se aquele seguia , que é um imperfeito de duração, que implica um seguimento, não de um momento, mas de forma continuada. Modelo perfeito do discípulo de Jesus.

7. Vejam-se atentamente os confrontos: 1) o cego está sentado na valeta, mas põe-se de pé; de pé vão os discípulos de Jesus, mas querem sentar-se , e não na valeta; 2) o cego deixa tudo (atira fora o manto), mas os discípulos querem saber o que ganham por terem deixado tudo (Mc 10, 28); 3) o cego está à beira do caminho , mas entra no caminho para seguir Jesus no caminho de forma decidida; o homem rico de Mc 10, 17-22, que encontrámos no Domingo passado ( xxviii ), entra no caminho , mas sai logo outra vez do caminho ...

8. Tantos desafios e provocações, modelos e contramodelos, para nós, discípulos que hoje seguimos Jesus no caminho ! Decididamente, não podemos continuar apenas a fazer que seguimos Jesus no caminho , tendo em conta apenas os nossos interesses e preconceitos, e olhando este mundo com indiferença e calculismo. Forçoso é que mudemos de atitude, deixando imprimir no nosso coração e no nosso rosto o estilo de vida de Jesus: pobre, despojado, feliz, apaixonado, ousado, próximo, dedicado e senhor. senhor , porque Servo.

*Bispo de Lamego

D. António Couto *