Um punhado de terra, eis quanto é toda a riqueza do mundo comparada com a sabedoria que vem de Deus (Sb 7, 9). Por isso, pedimos, cantando, com o Sl 90, 12, que Deus nos dê a Sabedoria do coração: entenda-se o bom senso, a sensibilidade e a bondade, e que elas sejam a medida com que acertamos diariamente os nossos comportamentos e os batimentos do nosso coração. Sábio é aquele que sabe o que deve fazer em cada momento, e o faz, não por dever, mas por amor.
2. Vem depois, no Evangelho deste Domingo xxviii do Tempo Comum (Mc 10, 17-30), um homem (heis) (Mc 10, 17) muito rico (Mc 10, 22), sincero, educado e de boa prática religiosa, que parece ter estado ali à espera de Jesus, pois tinha «uma coisa» que só podia tratar com Jesus. Lucas fala de um homem bem colocado ao nível do poder (tis árchôn) (Lc 18, 18) e Mateus fala de um jovem (neanískos) (Mt 19, 20.22). Jesus sai de casa em Mc 10, 10, para seguir o seu caminho, que é também o caminho da formação dos seus discípulos. Mal o vê, o homem muito rico entra subitamente no caminho de Jesus, pedindo-lhe que lhe aponte o caminho para a vida eterna. Jesus põe diante dele uma lista de seis mandamentos: «Não mates, não cometas adultério, não roubes, não levantes falso testemunho, não defraudes, honra o teu pai e a tua mãe» (Mc 10, 19). Em lado nenhum da Escritura há uma lista de mandamentos por esta ordem. É propositadamente que Jesus os enuncia assim, com o intuito de levar o homem rico até casa e aí o deixar, pois é daí que o homem rico deve sair. Ao responder que desde a sua adolescência tinha cumprido todos aqueles mandamentos, o homem rico afirma-se «filho do mandamento» (Mc 10, 20), querendo certamente com isso dizer que desde há muito andava no caminho certo. Mal sabia que havia afinal outro Caminho que ele desconhecia. Como desconhecia também que tinha acabado de entrar nesse caminho e na vida eterna que ele desejava e que, para a receber, bastava seguir tranquilamente Jesus até ao fim. Jesus é o Mestre Bom e novo, verdadeiro líder pró-ativo, que não ensina como os escribas. Ele sabe o caminho, mostra o caminho, e faz connosco o caminho. Por isso, passa e chama, dizendo: «Vinde atrás de Mim!».
3. Resumindo: um homem muito rico, sincero, educado e de boa consciência e boa prática religiosa entra no caminho de Jesus, e Jesus entra nele, pois olha dentro dele (verbo grego emblépô) com amor divino. Único verdadeiro olhar de Deus, que vê sempre dentro, vê sempre o coração (1 Sm 16, 7), vê sempre com o coração. E Jesus dispara aquela imensa, inesquecível rajada de verbos em imperativo: Vai, vende, dá, vem e segue-me! (Mc 10, 21). Uma tal rajada de verbos carregados em imperativo atravessou certamente o coração do homem rico, mas atirou-o para fora do caminho , e continua ainda hoje a atravessar-nos a nós também! Queira Deus que atravesse verdadeiramente o nosso coração, e não nos atire para fora do caminho . É, estou convicto, ainda hoje, também hoje, a tal «uma coisa» (hén) que nos falta!
4. Importante sinalização para nós: aquele homem rico, sincero, educado, de boa consciência e boa prática religiosa, em quem facilmente nos poderemos rever, acabou por sair do caminho , e ficou sem caminho e sem horizontes, continuou entristecido e com ar sombrio (stygnázô) a caminho de casa, tão-somente agarrado ao seu punhado de terra e de riqueza.
5. Jesus olha agora o coração e com o coração os seus discípulos, a quem trata por «filhos» (tékna) (Mc 10, 24), única vez no Evangelho de Marcos!, contrapondo a riqueza ao Reino de Deus. Sim, diz Jesus, não há maneira de nos salvarmos; só há maneira de sermos salvos! A metáfora do camelo (grego kámêlos) e do buraco da agulha é bem expressiva e impressiva, sendo o camelo o animal de maiores dimensões conhecido no mundo de Jesus e dos seus discípulos, e o buraco da agulha uma das aberturas mais pequenas! E não vale a pena procurar outras interpretações fantasiosas, nomeadamente trocar o termo grego kámêlos, camelo, por kámilos, corda, para tentar tornar as coisas mais lógicas e compreensíveis. É mesmo o confronto radical que Jesus nos quer apresentar.
6. E aquele elenco fantástico apresentado por Jesus: casas, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos e campos por causa de mim e do Evangelho (Mc 10, 29). Quase ninguém repara nisto, e somos quase sempre levados a pensar que Jesus fornece dois elencos: um, das coisas que há que deixar, e outro, das coisas que há que ganhar! Aí está a velha lógica das coisas materiais versus coisas espirituais! Mas Jesus apresenta apenas um elenco repetido. É a maneira de ver que deve mudar: do ter para o receber! Temos de aprender a ver o coração e com o coração, como Jesus. Podemos admirar a beleza de uma flor, mesmo quando a flor está no jardim do nosso vizinho!
7. Pois, argumenta Pedro e todos os outros, também eles homens sinceros, educados, de boa consciência e boa prática religiosa: «Se é assim, quem é que se salva?» (Mc 10, 26). E Jesus: «Aos homens é impossível, mas a Deus tudo é possível!» (Mc 10, 27). É, portanto, para Deus que nos devemos voltar completamente. E aí está a lição inultrapassável do Mestre Bom, como Deus, e pró-ativo, que sabe o caminho, mostra o caminho e faz o caminho. Escreve São Paulo: «Jesus Cristo, sendo rico, fez-se pobre por causa de nós, para nos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8, 9).
8. A que faz eco o estranho negócio que o monge cartuxo diz que fez: «Vendi o sentimento de me julgar indispensável, e comprei a minha inutilidade», olhando para a Cruz na qual «Jesus já não era útil a ninguém, mas nos estava a salvar a todos» (Monges da Cartuxa de São Bruno, Sentieri del deserto [2001], p. 26). Teríamos celebrado a memória de São Bruno no passado dia 6, se não fosse, como foi, Domingo. Mas celebrámos, no passado dia 4, a memória de São Francisco de Assis, que nos deixou o tesouro da pobreza, da «desapropriação», e falava sempre de «nossa senhora, a santa pobreza!».
9. Mas nunca nos esqueçamos que aquele homem rico, sincero, educado, de boa consciência e boa prática religiosa, entrou no caminho de Jesus com uma pergunta precisa: «O que fazer para herdar a vida eterna?» (Mc 10, 17b). Que o mesmo é dizer: «Sobre esta terra, o que é que oferece consistência?, «onde buscar o sentido?». É seguro que a vida terrena termina com a morte. O homem rico, sincero, educado, de boa consciência e boa prática religiosa, que hoje nos aparece a entrar no caminho de Jesus, apresenta-se convicto de que existe a vida eterna. E a pergunta que transporta é naturalmente: «O que fazer para herdar a vida eterna?». Já sabemos que ele é possuidor de muitos bens, e sabe com certeza, que esses bens são úteis para esta vida terrena. Mas a ele não lhe basta o famoso dito: «Comamos e bebamos que amanhã morreremos» (1 Cor 15, 32).
10. É bom, também para que venha ao de cima o verdadeiro sentido da vida, não esquecermos e abrirmos de par em par as portas do nosso coração, para que o bisturi da Palavra de Deus, de que não podemos fugir porque anda dentro de nós, vá operando com sucesso a esclerose do nosso coração (Hb 4, 12; cf. Sl 149, 6) e os excessos e gorduras, traves e preconceitos, que nos impedem de ver a vida com os olhos de Deus. É a lição de hoje da homilia aos Hebreus 4, 12-13.
*Bispo de Lamego
D. António Couto *