· Cidade do Vaticano ·

Encontro com os professores universitários da Katholieke Universiteit Leuven

Uma cultura não sectária que dilata os confins

 Uma cultura não sectária  que dilata os confins  POR-040
03 outubro 2024

Na tarde de 27 de setembro, segundo dia da viagem na Bélgica, o Papa Francisco foi da nunciatura de Bruxelas, onde residiu, à sede da Katholieke Universiteit Leuven, o mais antigo ateneu católico do mundo, que celebra o sexto centenário. Ali, durante o encontro com os docentes universitários, após a saudação que lhe foi dirigida pelo reitor, o Pontífice assistiu a um vídeo com testemunhos de refugiados. No final, proferiu o seguinte discurso.

Senhor Reitor
Ilustres professores
Queridos irmãos e irmãs, boa tarde!

É para mim uma alegria encontrar-me aqui entre vós e agradeço ao Senhor Reitor as suas palavras de boas-vindas, com que recordou a história e a tradição nas quais esta Universidade está radicada, bem como alguns dos principais desafios atuais que nos interpelam a todos. A primeira tarefa da Universidade é esta: oferecer uma educação integral para que as pessoas tenham as ferramentas necessárias para interpretar o presente e planear o futuro.

Na verdade, a formação cultural nunca é um fim em si mesma e as Universidades não devem correr o risco de se tornarem “catedrais no deserto”; elas são, pela sua própria natureza, lugares que impulsionam ideias e novos estímulos para a vida e o pensamento humanos e para os desafios da sociedade, ou seja, espaços generativos. É bom pensar que a Universidade gera cultura, gera ideias, mas sobretudo que promove a paixão pela busca da verdade, ao serviço do progresso humano. Em particular, as Universidades católicas, como esta, são chamadas a «prestar o decisivo contributo de fermento, sal e luz do Evangelho de Jesus Cristo e da Tradição viva da Igreja sempre aberta a novos cenários e propostas» (Constituição Apostólica Veritatis gaudium, 3).

Por isso, gostaria de lhes dirigir um simples convite: alargar as fronteiras do conhecimento! Não se trata de multiplicar as noções e as teorias, mas de fazer da formação académica e cultural um espaço vivo, que englobe a vida e fale à vida.

Há uma pequena história bíblica, contada no Livro das Crónicas, que me apraz recordar aqui. O protagonista é Jabés, que dirige a Deus esta súplica: «Se Tu me abençoares, alargarás o meu território» ( 1 Cr 4, 10). Jabés, que significa “dor”, foi assim chamado porque a sua mãe sofreu muito no parto. Porém, Jabés não quer ficar fechado na própria dor, arrastando-se com o seu lamento, e reza ao Senhor para que “alargue o território” da sua vida, para entrar num espaço abençoado, mais amplo, mais acolhedor. O contrário são os fechamentos.

A grande missão da Universidade é alargar fronteiras e tornar-se um espaço aberto ao homem e à sociedade.

No nosso contexto, deparamo-nos com uma situação ambivalente em que as fronteiras se estreitam. Por um lado, estamos imersos numa cultura marcada pela renúncia à busca da verdade. Perdemos a paixão inquieta da procura, para nos refugiarmos no comodismo do pensamento fraco — o drama do pensamento fraco! — para nos refugiarmos na convicção de que tudo é igual, de que tanto vale uma coisa como outra, de que tudo é relativo. Por outro lado, quando, em contextos universitários e não só, se fala de verdade, cai-se muitas vezes numa atitude racionalista, segundo a qual só aquilo que podemos medir, experimentar e tocar pode ser considerado verdadeiro, como se a vida se reduzisse exclusivamente à matéria e ao visível. Em ambos os casos, as fronteiras são estreitas.

Sobre o primeiro aspeto, temos o cansaço do espírito, que nos remete para a incerteza permanente e para a falta de paixão, como se fosse inútil procurar sentido numa realidade que permanece incompreensível. Este sentimento surge frequentemente em certas personagens das obras de Franz Kafka, que descreveu a condição trágica e angustiante do homem do século xx . Num diálogo entre duas personagens de um dos seus contos, encontramos esta afirmação: “O que penso é que você simplesmente não pode ser incomodado com a verdade, porque isso é muito cansativo” (Descrição de uma Luta, Rio de Janeiro 1985, 50). Procurar a verdade é cansativo, porque nos obriga a sair de nós próprios, a correr riscos, a fazer perguntas. Por isso, no cansaço do espírito, ficamos mais fascinados por uma vida superficial que não se põe demasiadas questões; tal como nos sentimos mais atraídos por uma “fé” fácil, leve, confortável, que nunca questiona nada.

Sobre o segundo aspeto, porém, temos o racionalismo sem alma no qual corremos novamente o risco de cair, condicionados pela cultura tecnocrática que nos leva a isto. Quando o homem se reduz apenas à matéria, quando a realidade se restringe aos limites do visível, quando a razão é apenas matemática, quando a razão é apenas “laboratorial”, perde-se o espanto — e quando falta o espanto não se pode pensar; o espanto é o início da filosofia, é o início do pensamento — aquele assombro interior que nos impele a procurar mais além, a olhar para o céu, a descobrir aquela verdade escondida que responde às perguntas fundamentais: Porque é que vivo? Que sentido tem a minha vida? Qual é o objetivo último e a meta deste caminho? Romano Guardini perguntava-se: “Apesar de todos os progressos, porque é que o homem permanece, tanto e cada vez mais, desconhecido para si próprio? Porque perdeu a chave para compreender a sua essência. A lei da nossa verdade diz que o homem só pode reconhecer-se a partir do alto, acima de si, a partir de Deus, porque só d’Ele colhe a sua existência” (Gebet und Wahreit, Mainz/Paderborn 1988, 49).

Queridos Professores, contra o cansaço do espírito e o racionalismo sem alma, aprendamos também nós a rezar como Jabés: “Senhor, alarga as fronteiras do nosso território!”. Peçamos a Deus que abençoe o nosso trabalho, ao serviço de uma cultura capaz de enfrentar os desafios atuais. O Espírito Santo que recebemos como dom nos impele a procurar e a abrir os espaços do nosso pensar e do nosso agir, até nos conduzir à verdade completa (cf. Jo 16, 13). Sejamos conscientes — como disse o senhor Reitor no início — “de que ainda não sabemos tudo”, mas é precisamente esta limitação que sempre os deve impulsionar, ajudando-os a conservar acesa a chama da investigação e a manter uma janela aberta para o mundo de hoje.

A este respeito, quero dizer-lhes sinceramente: obrigado! Obrigado porque, ao alargarem as fronteiras, abriram espaço para acolher todos os refugiados que são forçados a fugir das suas terras, no meio de inúmeras inseguranças, enormes dificuldades e, por vezes, sofrimentos atrozes. Obrigado! Acabámos de ver, no vídeo, um testemunho muito comovente. E enquanto alguns apelam ao reforço das fronteiras, cada um dos que aqui se encontram, como comunidade universitária, alarga as fronteiras, abre os braços para acolher estas pessoas marcadas pela dor, ajudando-as a estudar e a crescer. Obrigado!

É disto que precisamos: uma cultura que alargue as fronteiras, que não seja “sectária” — e vós não sois sectários, obrigado! — nem se coloque acima dos outros, mas pelo contrário, que esteja na massa do mundo, introduzindo nela um bom fermento, que contribua para o bem da humanidade. Esta tarefa, esta “esperança maior”, está confiada a todos vós!

Um teólogo desta terra, filho e professor desta Universidade, disse que «nós somos a sarça ardente que permite Deus manifestar-se» (a. gesché, dio per pensare. il cristo , Cinisello Balsamo 2003, 276). Mantenham acesa a chama deste fogo; alarguem as fronteiras! Sejam inquietos, por favor, e com a inquietude da vida sejam buscadores da verdade e nunca extingam a paixão, para não cederem à acídia do pensamento, que é uma doença muito grave. Sejam protagonistas na criação de uma cultura de inclusão, de compaixão, de atenção para com os mais fracos e para com os grandes desafios do mundo em que vivemos.

E, por favor, não se esqueçam de rezar por mim. Obrigado!