· Cidade do Vaticano ·

Todavia a misericórdia

 Todavia a misericórdia  POR-040
03 outubro 2024

Por vezes, basta uma palavra. Uma simples palavra, até mesmo um advérbio, como, por exemplo, todavia. O Papa, depois da longa viagem em terras jovens e longínquas como a Ásia e a Oceânia, acaba de concluir uma viagem muito curta e próxima, no coração do Velho Continente; todavia esta viagem foi rica, repleta de acontecimentos, encontros e discursos cheios de vida e de emoções. Sobretudo nos “improvisos”, como ir a um café da cidade ou a uma paróquia no momento do pequeno-almoço servido aos pobres e aos estrangeiros, como visitar o túmulo do rei Balduíno ou ir sábado à noite à vigília de seis mil jovens que, autoconvocados, se tinham reunido perto do estádio para depois participar na missa do dia seguinte: a surpresa e a alegria dos presentes foi enorme, irreprimível, e também a do Papa: os dois “interlocutores”, o idoso Pontífice e os seis mil jovens, sintonizaram-se de imediato e contagiaram-se mutuamente num diálogo de poucos minutos mas de grande intensidade.

O “todavia”, infelizmente, também se pode declinar em sentido negativo: a viagem foi, portanto, muito rica e densa de ideias e sugestões, contudo alguns observadores, jornalistas e operadores dos media deram leituras simplificadas a um raciocínio complexo.

Mas, ainda que tenha sido assim, é contudo melhor olhar para o lado positivo e empregar esse advérbio em todo o seu potencial positivo, tal como fez o Papa nos seus discursos na Bélgica e como tem vindo a fazer desde o início do pontificado, quando começou a recordar que o nome do Deus cristão é misericórdia e o Deus da Bíblia é o Deus das surpresas. Porque “todavia” é o advérbio da surpresa e da misericórdia, essa postura perante a vida e o mundo em que «todos erramos», disse o Papa no seu discurso de sábado passado na basílica do Sagrado Coração, todavia «ninguém é errado». O errado é o pecado, não o pecador: Francisco não inventa nada de novo, mas usa palavras fortes, que despertam sobretudo quando sublinha que a misericórdia de Deus pode parecer-nos injusta, mas apenas porque «nós aplicamos simplesmente a justiça terrena que diz “quem erra deve pagar”. Todavia, a justiça de Deus é superior». Neste “todavia” está toda a grandeza da misericórdia divina na qual assenta a fé cristã porque, recordou na homilia de domingo: «todos nós, todos, fomos misericordiados» e «a Comunidade dos crentes não é um círculo de privilegiados, é uma família de salvos». Deus continua a ter confiança em nós, «vendo em nós o que nós próprios não conseguimos discernir». Quanta força naquele “todavia”! Esta palavrinha autoriza a passagem da lógica consecutiva, a lógica automática, fria e mecânica do julgamento humano (“quem erra deve pagar”), para a lógica concessiva: “Ainda que tenhas errado, todavia não és errado” (isto não tem nada a ver com a firmeza necessária para perseguir, segundo a justiça, os abusadores e quem os encobre, como o Papa explicou bem).

Esta lógica concessiva, é “quente”, “humana”, e se pensarmos bem, é aquela das histórias, da imaginação, da poesia. Um exemplo clássico é a Odisseia: ainda que Ulisses esteja sozinho sobre uma jangada a lutar contra as ondas do Mediterrâneo, todavia conseguirá regressar a casa. Se a lógica fosse apenas consecutiva, não haveria poesia. Nem piedade, nem misericórdia. Porque não haveria esperança. Em vez disso, pode-se estar, ou melhor, cantar, à chuva, e cantar com alegria, mesmo que esteja a chover.

Estas palavras do Papa reativam e alargam a nossa imaginação, tão ressequida, esta sua recordação da justiça de Deus, que voa mais alto do que a terrena, é hoje, mais do que nunca, uma palavra de que o mundo ocidental, encolhido sobre si mesmo e sobre o seu ressentimento, tem muita necessidade. Ao contrário, se ligarmos a televisão, correremos o risco de encontrar apenas “sentimentalismo” fácil e, sobretudo, muito ressentimento. Os filmes que passam diariamente nos canais televisivos baseiam-se frequentemente no tema da vingança, o modelo de cada enredo é o de Monte Cristo, de Dumas, e os protagonistas são muitas vezes carrascos implacáveis. Assim como, muitos jornais e meios de comunicação social fazem frequentemente do “quem erra deve pagar” o único paradigma aceitável e o único “valor” do qual é admitida a circulação é o fácil moralismo justicialista. Mas o justicialismo e os julgamentos sumários são a degeneração ideológica, o mimetismo da justiça (terrena).

O cristão, recorda-nos Francisco, move-se num outro comprimento de onda. O da misericórdia, aquele “comprimento” e “largura” que brota do coração trespassado de Jesus que perdoa quem o está a crucificar, que diante da mulher apanhada em flagrante “erro” foi mais longe, mais alto, não a “pregando” ao passado mas abrindo diante dela o futuro, recordando àquela mulher que, sim, tinha errado mas que, todavia, não era errada para sempre.

Andrea Monda