· Cidade do Vaticano ·

Debelar a esclerose do coração

 Debelar a esclerose do coração  POR-040
03 outubro 2024

Além dos quatro episódios que decorrem fora das fronteiras de Israel (três na Decápole, a oriente do Mar da Galileia, e um na região de Tiro, a noroeste de Israel) (ver Domingo xxiii ), a ação de Jesus decorre quase toda na Galileia (Mc 1-9) e em Jerusalém (Mc 11-16), tendo pelo meio a viagem da Galileia para Jerusalém (Mc 10): em Mc 10, 1, Jesus sai de Cafarnaum, onde esteve em Mc 9, 33-50; em Mc 10, 46, chega a Jericó; em Mc 11, 1, está nas imediações de Jerusalém. Serve este levantamento topográfico para situar o episódio do Evangelho deste Domingo xxvii (Mc 10, 2-16) após a saída de Cafarnaum, a caminho da Judeia e de Jerusalém, viagem feita, não pela Samaria, terra montanhosa e religiosamente hostil, mas descendo pela margem oriental do Jordão, talvez na Pereia, onde a comunidade judaica era considerável (Mc 10, 1a). O narrador ainda nos informa que as multidões (óchloi), única vez no plural em Marcos, vieram ter com Ele que, «como de costume» (hôs eiôthei), expressão só aqui usada em Marcos, os ensinava (Mc 10, 1b).

2. É também aqui que os fariseus, mais uma vez «para pôr Jesus à prova» (peirázzô) (cf. Mc 8, 11; 12, 15), lhe perguntam «se é lícito (éxestin) ao homem repudiar (apolýô) a sua mulher» (Mc 10, 2). A pergunta é uma armadilha, por mais de uma razão. Primeiro, porque este modo de fazer era já usual entre os judeus. Se Jesus desse uma resposta negativa, corria o risco de provocar um alvoroço entre os homens que o ouviam. Segundo, porque podia acentuar o conflito com Herodes Antipas, que já tinha feito prender João Batista, por este ter protestado contra a sua relação irregular com Herodíades (Mc 6, 18). Terceiro, porque se desse uma resposta positiva, corria o risco de entrar numa discussão académica interminável e inútil, pois eram conhecidas interpretações diversas, entre o rigorismo e o laxismo. Por exemplo, a escola rigorista de Shammai era de opinião que a separação só devia ser permitida em caso de adultério, enquanto que a escola liberal de Hillel achava que a separação era permitida por tudo e por nada.

3. Portanto, Jesus não se deixa apanhar na armadilha, e pergunta por sua vez aos fariseus: «O que foi que vos ordenou (entéllomai) Moisés?» (Mc 10, 3). Eles tiveram de responder: «Moisés permitiu (epitrépô) escrever uma ata de divórcio e repudiar» (Mc 10, 4). Os fariseus estão a citar o Livro do Deuteronómio 24, 1, e vê-se que interpretavam esta prescrição de Moisés como permissão do divórcio. De onde se deduzia que os homens (só os homens) tinham o direito de repudiar as suas mulheres, direito a que as mulheres não tinham direito, pois não podiam separar-se dos seus maridos. Ouvida esta resposta, Jesus entra então na argumentação a sério, referindo que Moisés não permitiu o divórcio, mas apenas quis pôr ordem e humanidade numa situação que os homens tinham criado, e que gerava muitas complicações. Na verdade, a mulher repudiada, se o divórcio não fosse devidamente documentado, continuava ligada ao seu anterior marido, e não ficava livre para se voltar a casar; podia ser vista como uma mulher casada em fuga, e, caso se viesse a ligar a outro homem, podia ser acusada de adultério e ser condenada à morte por lapidação (cf. Dt 22, 22).

4. Tirado isto a limpo, Jesus declara então que esta prescrição de Moisés não se destina a permitir o divórcio, mas a pôr os necessários limites à «dureza do coração» ou «esclerose do coração», a famosa sklêrokardía dos homens, a verdadeira responsável pelo divórcio (Mc 10, 5). Esclarecido então o alcance da prescrição de Moisés, meramente corretiva de uma situação que a «esclerose do coração» dos homens criou, e que, lendo bem o Livro do Deuteronómio 10, 12-22, significa o fechamento do homem a Deus, à sua bondade, à sua grandeza e à sua vontade (ver a expressão em Dt 10, 16 e Jr 4, 4), Jesus passa logo a expor (Mc 10, 6-8) a vontade de Deus sobre o casal humano, como se pode ver lendo os relatos da criação: «Deus os fez homem e mulher» (Gn 1, 27); «O homem deixará o seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne» (Gn 2, 24). E conclui: «Não separe o homem o que Deus uniu» (Mc 10, 9).

5. Depois, em «casa» (Mc 10, 10), que é um dos lugares da intimidade no Evangelho de Marcos (os outros são o «caminho» e a «barca»), Jesus explica aos seus discípulos que tanto incorre em adultério o homem como a mulher que abandonam os respetivos cônjuges e casam com outros (Mc 10, 11-12). Com este dizer, alargado à mulher, Jesus estende o bisturi também à nossa sklêrokardía. De facto, aos fariseus Jesus apenas falou do homem que repudia a sua mulher e casa com outra, porque, em mundo judaico, não era permitido à mulher repudiar o marido, para casar com outro. Era, porém, permitido em mundo greco-romano. E é sabido que os destinatários diretos do Evangelho de Marcos vivem no mundo greco-romano.

6. E Jesus mostra de novo aos seus discípulos que é necessário romper a crosta da nossa importância, que nos separa de Deus e dos pequeninos que são aqueles que acreditam em Jesus e o seguem (Mc 10, 13-16). Também aqui se trata de sklêrokardía. Em boa verdade, envoltos na crosta da nossa importância, já não sabemos receber. E o Reino de Deus não é para comprar ou conquistar, mas unicamente para receber. Daí a importância das crianças para Jesus. Não é a sua inocência e candura que aqui é salientada, mas o facto de serem dependentes e confiantes.

7. Aí está, então, o chão do Evangelho de hoje, a vontade de Deus expressa na Criação, a que Jesus faz referência (Gn 2, 18-24). A extraordinária narrativa abre com a constatação enfática por parte de Deus de um problema gravíssimo que pode acarretar a morte do homem. Este problema chama-se «solidão». Deus é levado a afirmar: «Não é, de facto, bom (lo’-tôb) que o Homem (ha’adam) esteja só (lebaddô)» (Gn 2, 18a). Note-se que este enfático «não-bom» colide com o «sete vezes bom» e o «sim» que enchia Gn 1, 1-2, 4a, ao todo 452 palavras em que não soa um único «não», e o «bom» se faz ouvir por sete vezes.

8. Tendo constatado o grave perigo que ameaça o homem, Deus trata logo de remediar a situação, propondo-se «fazer (‘asah) um auxílio (‘ezer) a ele correspondente (kenegdô)» (Gn 2, 18b). Note-se outra vez o uso do masculino ‘ezer, e não do feminino ‘ezrah. Neste contexto, em que ‘ezer designará a mulher, mas não só, o uso do masculino é fruto com certeza de uma escolha premeditada, sendo, por isso, de lhe atribuir especial importância. Na verdade, a exegese moderna mostrou que o título «auxílio» (‘ezer), que aparece no Antigo Testamento por 21 vezes )— Gn 2, 18.20; Ex 18, 4; Dt 33; 7.26.29; Sl 20, 3; 33, 20; 70, 6; 89, 20; 115, 9.10.11; 121, 1.2; 124, 8; 146, 5; Is 30, 5; Ez 12, 14; Os 13, 9; Dn 11, 34 é, na maioria dos casos, excetuadas as duas menções do Génesis, um título dado direta ou indiretamente a Deus, que é o verdadeiro «auxílio» do homem. Trata-se, em todos os casos, de um auxílio pessoal, e não instrumental, sendo mesmo um auxílio indispensável em situações de extremo perigo, não longe da fronteira que separa a vida e a morte. Qual é, então, o perigo que ameaça o homem em Gn 2, 18? É certamente a solidão. E a verdadeira solidão chama-se «coisificação». Sim, o homem pode perder-se no meio de objetos, coisificando também Deus e os outros. Note-se que o tirano prepotente está sempre só no meio de objetos, sejam estes bens ou pessoas! É Deus normalmente o auxílio do homem. A mulher surge na mente de Deus com o título grande de «auxílio» do varão, assim como o varão é o «auxílio» da mulher, e qualquer ser humano deve ser o «auxílio» de outro ser humano. Está assim desvendado o estranho uso, neste contexto, do masculino ‘ezer.

9. Por sua vez, a expressão kenegdô assenta na preposição neged [= «ao lado de», «diante de», «contra»], mas remete ainda para o hiphil higgîd [= narrar] e, portanto, para um sujeito de palavra, deixando entrever que o «auxílio» que Deus se propõe fazer seja alguém que saiba estar «ao lado de» alguém, não de forma tirânica e prepotente, mas apto para a doçura da palavra. É então que, de um lado (tsela‘) do ser humano, Deus «constrói» (banah) a mulher (’ishshah) (Gn 2, 22). O texto diz tudo. Sendo um lado, fica logo dito que a mulher e o homem, juntos, são dois lados, que formam uma unidade, como os dois lados de uma porta ou de uma janela. Não se pode destruir um sem destruir também o outro. Por outro lado, ao usar o verbo «construir» (banah) para a mulher, fica já igualmente dito, por assonância, o mundo da mulher: «filhos» (banîm), «casa» (bêt). Quanto a ’ishshah, é simplesmente o feminino de ’îsh.

10. Ainda que não tenhamos reparado nisso, tivemos de esperar até agora, para ouvir pela primeira vez a voz humana a ecoar no cenário da criação. E é significativo que tal suceda para o homem expressar o seu alvoroço de noivo, saudando extasiado a mulher-noiva com a expressão familiar «osso dos meus ossos e carne da minha carne» (Gn 2, 23), primeiro canto de amor e ao amor que se encontra nas páginas da Bíblia. O relato da aparição da mulher não deve fazer esquecer que é relatada, em estreito paralelismo, a aparição da linguagem.

11. E porque são o auxílio um do outro, o lado um do outro, identificando-se um pelo outro (veja-se o jogo de ’îsh e ’ishshah), «o homem (’îsh) deixará o seu pai e a sua mãe, e se unirá amorosamente à sua mulher (’ishshah), e serão [os dois] uma só carne» (Gn 2, 24). Convenhamos que a expressão é insólita! No sistema patriarcal, é a mulher, não o homem, que deixa a sua família para se unir ao seu marido. Mas o insólito serve aqui talvez para realçar a grande força do amor, e para mostrar que é só outro amor, e só ele, que pode separar do primeiro amor, o amor dos pais. De resto, o texto não pretende, com certeza, fazer qualquer referência a um sentido matriarcal, mas quer sobretudo acentuar que são os dois a deixar um amor anterior, porque encontraram um amor mais forte. «Forte como a morte o amor»! (Ct 8, 6). Inegociável o amor. Não separe o homem o que Deus uniu.

12. Mas há, porventura, outra temática que se insinua em filigrana nesta expressão: a temática do único eleito, abençoado e portador de bênção para todos os povos, peregrino da liberdade, chamado a deixar-se transformar em «outro homem». De facto, o relato de Abraão abre com a interpelação do Senhor para uma viagem transitiva e intransitiva (lek-leka), para deixar a sua terra e a sua parentela e ir... (Gn 12, 1-3). É paradigmático que Abraão deixe a casa paterna. É nessa estrada que é colocado Adam, o pai da humanidade, e a inteira humanidade consigo. Mas também os primeiros reis pisam essa estrada. É assim que Saul vai da casa do seu pai à procura das jumentas perdidas (1 Sm 9, 3), e acaba por ser ungido rei (1 Sm 10, 1), sendo transformado em um «homem outro» (’îsh ’aher) (1 Sm 10, 6), com um «coração outro» (leb ’aher) (1 Sm 10, 9). E também David anda fora de casa, quando Samuel o procura para o ungir como rei (1 Sm 16, 11-13). E também a amada do Cântico dos Cânticos, símbolo de Israel e da inteira humanidade amada e desposada por Deus, é mandada entrar na estrada de Abraão, mediante aquele «vai para ti» (lekî-lak) (Ct 2, 10). Em jogo está a verdadeira vocação-missão de alteridade, sendo que a alteridade bem compreendida implica outra maneira de compreender, outro coração, portanto. Esta é certamente a grande temática já instalada no texto fundacional de Gn 2, 24. A não ser assim, nem o texto faz sentido, pois não se vê bem como é que este primeiro homem, modelado da terra, possa deixar o seu pai e a sua mãe!

*Bispo de Lamego

D. António Couto *