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a Civiltà Cattolica” publicou as conversas do Pontífice com os jesuítas, encontrados na Indonésia, Timor-Leste e Singapura, no âmbito da recente viagem ao sudeste asiático e à Oceânia, dirigindo, entre outros, um apelo em prol da líder birmanesa Aung San Suu Kyi, presa em 2021 após o golpe militar em Myanmar: «Recebi o filho dela em Roma. O Vaticano está pronto para a acolher».
Durante sua última viagem apostólica — de 2 a 13 de setembro — o Papa Francisco encontrou-se em três ocasiões distintas com seus confrades jesuítas na Indonésia, Timor-Leste e Singapura. O Santo Padre pediu a libertação da senhora Aung San Suu Kyi, líder birmanesa deposta, promotora dos direitos humanos, vencedora do prémio Nobel da paz, presa desde 2021 após o golpe militar. O padre Antonio Spadaro, presente nos encontros, fez um relato exclusivo para La Civiltà Cattolica, publicado na edição n. 4.183 da revista. O texto integral em italiano está disponível no site www.laciviltacattolica.it
Trabalhar com os refugiados, no espírito do padre Arrupe
Nos três encontros, o Papa Francisco lembrou em várias ocasiões a figura do padre Pedro Arrupe, ex-prepósito-geral da Companhia de Jesus, falecido em 1991, e o seu testamento espiritual. «O padre Arrupe quis que os jesuítas trabalhassem com os refugiados — disse o Pontífice — uma fronteira difícil. E fê-lo pedindo-lhes, antes de tudo: oração, mais oração», porque «somente na oração encontramos a força e a inspiração para enfrentar a injustiça social». E acrescentou que «é importante a forma como o padre Arrupe falou aos jesuítas latino-americanos sobre o perigo da ideologia misturada com a justiça social». Para o Santo Padre, Arrupe «foi um homem de Deus. Faço o possível para que ele chegue aos altares».
Segundo Francisco, o padre Arrupe «dedicou-se à inculturação da fé e à evangelização da cultura». Dois aspetos que representam «a missão fundamental da Companhia». Para o Santo Padre, «a fé deve ser inculturada. Uma fé que não cria cultura é proselitista».
«Os símbolos políticos devem ser defendidos»
Ao falar com os jesuítas sobre a «difícil» situação em Myanmar, o Papa Francisco recordou os Rohingyas, minoria muçulmana discriminada e muitas vezes vítima de perseguição, afirmando: «Existem bons jovens que lutam pelo seu país. Hoje, em Myanmar, não se pode ficar em silêncio: é preciso fazer algo!». E acrescentou: «Sabe-se que os Rohingyas me tocam profundamente. Falei com a senhora Aung San Suu Kyi, que era primeira-ministra e agora está na prisão». O Pontífice recordou a sua viagem a Myanmar e Bangladesh, em dezembro de 2017, e a conversa com Aung San Suu Kyi, bem como o encontro com os Rohingyas “expulsos”. O Santo Padre relatou que «pediu a libertação da senhora Aung San Suu Kyi» e recebeu o filho dela em Roma: «Ofereci o Vaticano para a acolher no nosso território. Neste momento, a senhora é um símbolo. E os símbolos políticos devem ser defendidos». O futuro do país, lembrou o Papa, «deve ser a paz fundada no respeito da dignidade e dos direitos de todos, no respeito por uma ordem democrática que permita a cada um contribuir para o bem comum».
Cristãos perseguidos
Respondendo a um confrade que pediu conselhos sobre as situações em que os cristãos são perseguidos, Francisco disse: «Penso que o caminho do cristão é sempre o do “martírio”, ou seja, do testemunho. É necessário dar testemunho com prudência e coragem: são dois elementos que andam juntos, e cabe a cada um encontrar o seu caminho». E concluiu: «A prudência é sempre arriscada quando é corajosa».
Justiça social,
parte essencial do Evangelho
Respondendo às perguntas dos jesuítas de Timor-Leste, Francisco falou sobre a justiça social como «parte essencial e integrante do Evangelho». E esclareceu: «A justiça social deve ter em conta as três linguagens humanas: a linguagem da mente, a linguagem do coração e a linguagem das mãos. Ser intelectual abstrato da realidade não ajuda no trabalho pela justiça social; o coração sem intelecto também não serve; e a linguagem das mãos sem coração e sem intelecto não ajuda em nada». Para o Papa Francisco, o «desejo» de justiça social «deu frutos» ao longo da história: «Quando Santo Inácio nos pede para ser criativos, diz: olhai para os lugares, os tempos e as pessoas. As regras, as Constituições são importantes, mas sempre considerando os lugares, os tempos e as pessoas. É um desafio de criatividade e de justiça social. É assim que se deve estabelecer a justiça social, não com teorias socialistas. O Evangelho tem a sua própria voz».
O ideal de justiça
O Papa falou também de coragem com referência às mães argentinas da Plaza de Mayo, que há décadas lutam e protestam para obter justiça e verdade sobre os seus filhos e netos desaparecidos durante a ditadura militar, e que inspiraram o Kamisan na Indonésia, um movimento pacífico que todas as quintas-feiras organiza comícios e protestos não violentos para exigir esclarecimentos sobre a violência maciça que abalou Jacarta durante a “tragédia nacional” de Semanggi em 1998, quando dezenas de mulheres foram alvo de multidões furiosas e violência generalizada contra pessoas e propriedades. Um dos jesuítas presentes no encontro em Jacarta acompanha as famílias das vítimas de violações passadas dos direitos humanos e entregou ao Papa uma carta escrita pela senhora Maria Katarina Sumrsih, mãe de uma das vítimas da tragédia de Semanggi, explicando: «Ela é uma das iniciadoras do Kamisan, inspirado nas mães da Plaza de Mayo na Argentina. Este grupo apela ao governo para que revele as violações passadas dos direitos humanos e proporcione justiça às vítimas e às suas famílias. Que conselho o senhor pode nos dar?». O Papa recordou o encontro com a presidente das mães da Plaza de Mayo, Hebe de Bonafini, falecida em 2022. «Comoveu-me e ajudou-me muito falar com ela. Transmitiu-me a paixão de dar voz a quem não a tem. Esta é a nossa tarefa: dar voz a quem não a tem. Lembrai-vos disto, insistiu o Papa: esta é a nossa tarefa. A situação da ditadura argentina foi muito difícil e essas mulheres, essas mães, lutaram pela justiça». Então, exortou: «Preservai sempre o ideal da justiça!».
A chaga do clericalismo
Além dos problemas sociais e políticos, respondendo às perguntas dos seus convidados, Francisco, concentrou-se também nas questões eclesiais. Começando por aquela — sempre estigmatizada como “chaga” — do clericalismo. Em resposta a um jesuíta de Díli, em Timor-Leste, Francisco reiterou que o clericalismo “está por todo o lado”. «Por exemplo, no Vaticano, existe uma forte cultura clerical, que lentamente procura mudar», disse. «O clericalismo é um dos meios mais astutos que o diabo usa». Como sempre, o Papa citou de Lubac e o seu livro Meditações sobre a Igreja, no qual fala da “mundanidade espiritual”, afirmando que é «a pior coisa que pode acontecer à Igreja, pior ainda do que o tempo dos Papas concubinos». «O clericalismo — observou o Pontífice — é a máxima mundanidade dentro do clero. Uma cultura clerical é uma cultura mundana».
Por fim, referindo-se à Companhia, o Pontífice acrescentou: «Sonho com ela unida, corajosa. Prefiro que se erre por coragem do que por segurança. Mas alguém pode dizer: “Se estivermos nos lugares de luta, nas fronteiras, sempre haverá o risco de escorregar...”. E respondo: “E que escorreguem!”. Quem tem sempre medo de errar, não faz nada na vida».
Indonésia
No final da manhã de 4 de setembro, em Jacarta, depois de compromissos com o presidente e as autoridades políticas e civis da Indonésia, o Papa recebeu 200 membros da Companhia de Jesus na nunciatura. «Foi um encontro familiar, descontraído e incisivo», disse o subsecretário do Dicastério para a cultura e a educação. Foram discutidos vários temas, incluindo o diálogo inter-religioso e a importância da inculturação.
Primeiro, as autoridades políticas e civis do país, depois os membros da Companhia de Jesus local. Entre os primeiros encontros de Francisco em Jacarta, capital da Indonésia e primeira etapa da sua longa viagem ao Sudeste asiático e Oceânia (de 2 a 13 de setembro), não poderia faltar a reunião a portas fechadas com os seus irmãos jesuítas, uma tradição de anos em cada viagem apostólica. O Papa recebeu 200 deles, dos 320 presentes em todo o arquipélago, na sala da nunciatura apostólica, onde um dia antes tinha abraçado os pobres, órfãos, refugiados e idosos.
Perguntas e respostas, confidências, gracejos
O encontro durou uma hora e, como sempre, foi marcado por um diálogo espontâneo com perguntas e respostas, confidências pessoais e algumas piadas. «Uma reunião descontraída, profunda e incisiva», resumiu o padre Antonio Spadaro, subsecretário do Dicastério para a cultura e a educação e membro da comitiva papal, presente no encontro. «Foi um momento familiar, como costuma ser», explicou o jesuíta, jornalista e teólogo, aos meios de comunicação do Vaticano. «O Papa Francisco fica sempre muito relaxado, sente-se como se estivesse em família, então é capaz de dar o primeiro feedback da visita». Com os confrades da Indonésia, em particular, expressou surpresa e alegria ao ver tantos jovens: «Talvez seja a coisa que mais me impressionou; o Santo Padre notou como são jovens os jesuítas em formação na Indonésia!».
Diálogo, inculturação, discernimento e oração
Muitos temas foram discutidos na conversa: «O Papa falou sobre a Companhia, a importância do discernimento e da oração. Os mais jovens perguntaram-lhe quando encontra tempo para rezar e contou também algumas anedotas», explicou Spadaro. Todos os temas foram entrelaçados com outros que são importantes nesta terra, «como o diálogo inter-religioso ou a inculturação, sobre os quais insistiu muito». Não faltaram referências às suas próprias experiências pessoais e observações divertidas, como a proferida pelo Pontífice no final do encontro: «A polícia chegou para me levar embora».
A importância dos jovens e a contribuição dos cristãos
Os jovens e sua contribuição para o bem comum e para o presente e o futuro do mundo foram um dos temas-chave de toda a 45ª viagem apostólica. O primeiro contacto de Jorge Mario Bergoglio com as novas gerações da Indonésia foi, portanto, através dos jesuítas em formação: «Uma Companhia de Jesus jovem, que também representa uma Igreja jovem», comentou o padre Spadaro. «Francisco», acrescentou, «ama aquelas Igrejas que descrevo como zero vírgula (0,...%). Aqui estamos em 3%, portanto uma pequena percentagem da população, mas são 8 milhões e há uma presença significativa no país. O objetivo do cristão», realçou, «ainda é contribuir para o crescimento do país, ser como fermento misturado com a massa, e isso é muito importante para o Papa. A mensagem para os cristãos é que eles colaborem plenamente para o bem comum, além dos números; para o Santo Padre, o que conta é a vivacidade, a capacidade geradora».
Olhando para a realidade
rumo ao futuro
De toda a reunião — a primeira das três com a Companhia de Jesus programadas durante a viagem (as outras duas tiveram lugar em Díli e Singapura) — o que mais impressionou o padre Antonio Spadaro foi “o olhar” de Francisco. «Tanto nesta reunião como nas outras que tivemos até agora. O Papa Francisco vê nesta terra uma possibilidade, a possibilidade de harmonia em um contexto pluralista. O presidente falou também de harmonia e pluralismo. Acredito que aqui há esperança de um futuro tão ameaçado, num momento em que o mundo está dividido e fraturado. Portanto, estes são os olhos do Papa, muito abertos à realidade e à busca de um futuro».
Timor-Leste
O segundo encontro do Pontífice com os membros da Companhia de Jesus durante a viagem apostólica teve lugar no final da manhã de 10 de setembro, na sede da nunciatura apostólica: 41 jesuítas — entre eles, oito noviços — de várias regiões asiáticas, dialogaram com o Papa por cerca de 45 minutos sobre diversos temas, entre eles a inculturação. Estava presente o padre João Felgueiras, religioso português em Timor-Leste desde os tempos da ocupação indonésia, a quem o Papa abraçou e agradeceu pelo seu serviço.
O primeiro gesto de Francisco ao entrar no salão da nunciatura apostólica de Díli, onde os seus irmãos jesuítas o aguardavam após o encontro com o clero na catedral de Nossa Senhora da Assunção, foi abraçar o padre João Felgueiras, de 103 anos, um dos jesuítas mais idosos do mundo.
O testemunho do padre João
A este religioso português que vive em Timor-Leste desde os tempos da ocupação indonésia e que nunca deixou o país e o seu povo, nem nos momentos mais difíceis, o Papa quis prestar uma homenagem pública. Tendo sido informado da sua presença, assim que entrou, foi imediatamente ao seu encontro: «Agradeceu-lhe e abraçou-o. O padre João estava muito emocionado», contou aos meios de comunicação do Vaticano o padre Nuno da Silva Gonçalves, diretor de “La Civiltà Cattolica” e membro da comitiva papal.
Grupo internacional
«Como sempre nesses encontros — contou o padre Gonçalves — respirou-se um ar de família». Diante do Papa havia «um grupo deveras internacional», com jesuítas provenientes do Vietname, Malásia e Filipinas. Portanto, «um grupo diversificado, comprometido em diferentes atividades, como a educação dos jovens ou num instituto de formação para professores. Um trabalho que consideram tão importante quanto o dos exercícios espirituais nas paróquias».
O diálogo durou cerca de 45 minutos, como sempre cadenciado por perguntas, respostas, confidências e trocas de comentários. Entre os temas abordados, «sempre ligados à vida da Companhia de Jesus», destacou o diretor de “La Civiltà Cattolica”: «Como o Papa vê o trabalho dos jesuítas em cada lugar e país, temas comuns como o compromisso a favor da justiça social, a doutrina social da Igreja e a sua importância».
A importância da inculturação
Em particular, explicou o padre Nuno, como noutras intervenções em Timor-Leste, o Papa Francisco, «falando do Evangelho e da cultura, salientou o valor da inculturação. Ou seja, do Evangelho que se deve inculturar e da cultura que deve ser evangelizada». Essa temática foi recorrente na etapa timorense, realçado também no lema escolhido: «Que a vossa fé seja a vossa cultura».
Singapura
O único compromisso do primeiro dia do Santo Padre na cidade-Estado, quarta etapa da viagem, foi o encontro com os seus confrades na casa de retiros São Francisco Xavier, que o padre Antonio Spadaro descreveu como um «encontro fraterno com os jesuítas que trabalham em lugares de fronteira. Foram realçadas a figura de Matteo Ricci e, novamente, a obra missionária do padre Arrupe, por cuja beatificação o Papa está ansioso». Essas duas figuras são faróis para a Companhia de Jesus e para a Igreja universal, e acompanharam o diálogo de uma hora do Papa Francisco na tarde de 11 de setembro com os seus confrades de Singapura, microestado insular meta da quarta e última etapa da viagem apostólica.
Reunião de família
Na residência do Pontífice durante a última etapa da viagem, havia 25 jesuítas de diferentes idades, principalmente residentes de Singapura, mas também provenientes de outras regiões, como da Malásia. «Havia alguns jovens, até um recém-ordenado, e outros mais velhos e doentes. O Papa foi muito carinhoso com eles», disse aos meios de comunicação do Vaticano o padre Antonio Spadaro. «O encontro durou uma hora, como de costume. E, como sempre, foi muito cordial e fraterno, com jesuítas comprometidos em lugares de fronteira... Depois o Santo Padre quis acrescentar outros comentários. Dava a impressão de não querer deixar aquela atmosfera tão íntima e familiar».
As fotos, divulgadas pelo próprio padre Spadaro na sua conta no x , mostraram um Papa Francisco sorridente e relaxado. O Pontífice, disse o clérigo, deixou imediatamente espaço às perguntas. E os temas foram numerosos e exigentes, começando pelos desafios que aguardam a Igreja neste tempo e nestas terras. «O Papa deixou claro que a fé deve entrar nos desafios humanos e realçou a importância da Ásia hoje como continente-chave», explica o sacerdote: «Assim, os jesuítas são chamados a viver neste lugar que apresenta desafios muito peculiares».
O “desafio” da oração
e o testemunho de Arrupe
O Papa salientou vigorosamente a importância da oração, que constitui também “um desafio”: é necessário «enfrentar sempre os desafios colocados pela sociedade com espírito de oração, seguindo o modelo do padre Pedro Arrupe», inesquecível jesuíta de origem espanhola, prepósito-geral da Companhia de 1965 a 1983, proclamado Servo de Deus e cuja causa de beatificação está em curso. «O Papa Francisco falou várias vezes da figura deste grande padre-geral, declarando que está muito próximo dele e ansioso por chegar à sua beatificação e canonização».
Vocações e formação
Durante a conversa não faltaram também temas pastorais. «O Papa abordou, acima de tudo, o tema das vocações e o modo como, por exemplo, elas são vividas, ou seja, há pessoas jovens que querem entrar na vida religiosa, mas às vezes têm medo da formação. Portanto, o Papa recomendou que não se mantenha baixo o nível de exigência», disse o padre Antonio Spadaro. Neste sentido, acrescentou a importância de ser formado de maneira elevada e adequada para enfrentar de modo positivo os desafios do nosso tempo.
Espaço às perguntas
Nenhum balanço de Francisco sobre as três visitas feitas (Indonésia, Papua-Nova Guiné, Timor-Leste), durante essa viagem apostólica, pois «ainda é muito cedo», recordou o subsecretário do Dicastério para a cultura e a educação. A prioridade do Papa foi dar espaço às perguntas dos vários jesuítas presentes: «Deixou-lhes espaço e quis absolutamente permanecer ligado às suas necessidades e exigências».
O exemplo de Matteo Ricci
Na conversa, além da figura do padre Arrupe, foi realçada também o carisma de Matteo Ricci, o grande apóstolo jesuíta na China. «Ele foi outra figura importante», frisou Spadaro, porque se tornou um ponto de referência para os jesuítas neste lugar.
Intenções de oração
Um momento que impressionou os presentes foi quando um jesuíta entregou ao Papa dois grandes envelopes que continham cartas com intenções de oração escritas por vários fiéis. O padre Antonio Spadaro disse que o Papa «quis colocar as mãos sobre os envelopes e rezar pelas intenções daqueles que as escreveram. Um gesto silencioso e intenso».