Publicamos a mensagem dirigida pelo Papa Francisco aos participantes na apresentação do livro Pasado, Presente y Futuro de la Justicia Transicional, realizada no dia 19 de setembro em Tenerife, Ilhas Canárias, na presença do rei Filipe iv da Espanha, no contexto da Conferência dos ministros da Justiça dos países ibero-americanos.
Majestade
Estimados participantes
neste encontro!
É com satisfação que posso responder ao pedido do senhor Enrique Gil Botero, Secretário-geral da Conferência dos Ministros da Justiça dos Países Ibero-Americanos, e do senhor José Ángel Martínez Sánchez, Presidente do Conselho geral do Notariado da Espanha, para participar nesta apresentação do livro Pasado, Presente y Futuro de la Justicia Transicional: La experiencia latinoamericana en la construcción de la paz mundial.
O Diccionario panhispánico de español jurídico define a justiça transicional, no seu primeiro significado, como «conjunto de medidas jurídicas e políticas adotadas após uma situação de conflito ou repressão em que ocorreram violações maciças dos direitos humanos, a fim de promover a reconciliação e a democracia; inclui processos penais, comissões em vista da verdade, programas de reparação e reformas institucionais».
Aprender com o passado e rever experiências muitas vezes dolorosas convidam-nos a dar respostas coerentes e significativas aos desafios atuais e a procurar mecanismos que consolidem o progresso nos caminhos da paz, liberdade e justiça. Nesta ótica, e sem querer aludir a casos do presente, gostaria de mencionar algo que ocorreu durante as primeiras viagens de Colombo à América. Refiro-me à notícia que chegou a Isabel de Castela, relativa à venda de índios como escravos. Se seguirmos a definição acima citada, teremos uma situação de conflito e repressão em que houve uma violação maciça dos direitos humanos e, imediatamente, um conjunto de medidas tomadas pela Coroa, que serão o germe das nossas modernas declarações dos direitos do homem.
Cito este exemplo, que na realidade só analogamente pode ser comparado com as situações atuais, para dele tirar uma série de lições. Em primeiro lugar, a história não volta atrás, tanto no nosso caso como nas histórias dolorosas de muitos países, devemos construir a partir destas situações, sem nos iludirmos de que tudo voltará a ser como era. A América e a Europa estavam destinadas a encontrar-e. Por conseguinte, este tipo de acontecimentos, ainda que tenham sido concebidos como duras crises, devem dar frutos, e é nossa responsabilidade de seres humanos que isto ocorra. É verdade que há situações em que a violência parece não ter justificação, mas quer se trate de revolução, de mudanças de regime, de invasões, não podemos simplesmente queixar-nos, o que é correto mas inútil — “não deveria ser assim” — mas enfrentar estes desafios de modo integral, pois a unidade é superior ao conflito (cf. Exortação apostólica Evangelii gaudium, n. 227).
A segunda lição é a resposta imediata. A força do direito, representada na rainha Isabel, não só como autoridade política de uma das partes, mas também como consciência moral de quem sabia que devia prestar contas a Deus das suas ações, impõe soluções corajosas, inovadoras e firmes, que vão ao cerne da verdade do homem, da sua dignidade, sem concessões; reparadoras — libertando os escravos até à própria custa — e de reforma institucional — proibindo a escravatura e exigindo proativa e integralmente o respeito pelos direitos fundamentais das vítimas.
A terceira lição é, talvez, a mais difícil, mas não desprovida de esperança: a aplicação efetiva e concreta destas disposições nem sempre será fácil, nem motivada por um espírito tão elevado. Por mais que, no papel, Isabel tenha dado um passo de gigante nas relações entre os dois povos destinados a encontrar-se, e tenha generosamente, ainda que de modo unilateral, oferecido tudo o que podia da sua posição aos novos povos encontrados para criar espaços de integração, sempre existiram tensões. Mas esta realidade ensina-nos também que um tratado, uma assinatura, uma lei, podem permanecer letra morta, se não providenciarem os meios para que, com seriedade, bom senso e paciência, não só o texto, mas também o espírito que os anima, penetrem nos seus destinatários.
Majestade, estimados amigos!
O espírito das leis das Índias foi preservado, iluminando e inspirando a defesa da dignidade humana e a noção integral da pessoa que dela deriva, e isto constitui para nós um estímulo ao compromisso pela justiça e o direito, não obstante as dificuldades.
Espero que esta evocação do passado vos possa ser útil. Sede corajosos e decididos, confiando vigorosamente em Deus — como certamente vos aconselharia Isabel — para implementar a justiça, para abrir caminhos de compreensão e fraternidade, para criar novos espaços de integração, para construir esta bela terra que não é utopia, mas responsabilidade.
Deus vos abençoe abundantemente, e vós, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim!
Fraternalmente,
Roma, São João de Latrão
22 de agosto de 2024.
Francisco