· Cidade do Vaticano ·

Os mares e os desertos não se tornem cemitérios de migrantes

Pope Francis speaks during his weekly general audience on St. Peter's square in Vatican City on ...
29 agosto 2024

«As rotas migratórias de hoje são frequentemente marcadas por travessias de mares e desertos» que, para muitas pessoas, se tornam verdadeiros “cemitérios”. Foi a nova e veemente denúncia do Papa, que na audiência geral de quarta-feira, 28 de agosto — interrompendo a habitual série de catequeses sobre o tema «A Esposa e o Espírito» — quis dedicar a sua reflexão «às pessoas que, também neste momento, atravessam mares e desertos para chegar a uma terra onde viver em paz e segurança».

Estimados irmãos e irmãs
bom dia!

Hoje interrompo a catequese habitual e desejo deter-me convosco para pensar nas pessoas que — até neste momento — atravessam mares e desertos para chegar a uma terra onde viver em paz e segurança.

Mar e deserto: estas duas palavras reaparecem em muitos testemunhos que recebo, tanto de migrantes como de pessoas comprometidas em socorrê-los. E quando digo “mar”, no contexto das migrações, refiro-me também ao oceano, ao lago, ao rio, a todas as massas de água traiçoeiras que tantos irmãos e irmãs em todas as partes do mundo são obrigados a atravessar para chegar à sua meta. E “deserto” não é apenas de areia e dunas, ou rochoso, mas também todos os territórios inacessíveis e perigosos, como as florestas, as selvas, as estepes, onde os migrantes caminham sozinhos, abandonados a si próprios. Migrantes, mar e deserto. As rotas migratórias de hoje são frequentemente marcadas por travessias de mares e desertos, que para muitas, demasiadas — demasiadas! — pessoas acabam por ser mortais. Por isso, hoje quero refletir sobre este drama, esta dor. Conhecemos melhor algumas destas rotas, porque estão muitas vezes sob os holofotes; outras, a maior parte delas, são pouco conhecidas, mas nem por isso menos percorridas.

Falei muitas vezes do Mediterrâneo, porque sou Bispo de Roma e porque é emblemático: o mare nostrum, lugar de comunicação entre povos e civilizações, tornou-se um cemitério. E a tragédia é que muitas, a maioria destas mortes, poderiam ter sido evitadas. É preciso dizer claramente: há quem trabalhe sistematicamente com todos os meios para afastar os migrantes — para afastar os migrantes. E isto, quando é feito de modo consciente e responsável, é um pecado grave. Não esqueçamos o que diz a Bíblia: «Não maltratarás o estrangeiro nem o oprimirás» (Ex 22, 20). O órfão, a viúva e o estrangeiro são os pobres por excelência que Deus sempre defende e pede para defender.

Infelizmente, também alguns desertos se tornam cemitérios de migrantes. E até aqui, muitas vezes, não se trata de mortes “naturais”. Não! Às vezes foram levados para o deserto e abandonados lá. Todos conhecemos a fotografia da mulher e da filha de Pato, que morreram de fome e sede no deserto. Na era dos satélites e dos drones, há homens, mulheres e crianças migrantes que ninguém deve ver: escondem-nos. Só Deus os vê e ouve o seu clamor. E esta é uma crueldade da nossa civilização.

Com efeito, o mar e o deserto são também lugares bíblicos repletos de valor simbólico. São cenários muito importantes na história do êxodo, a grande migração do povo conduzido por Deus através de Moisés, do Egito para a Terra prometida. Estes lugares testemunham o drama do povo que foge da opressão e escravidão. São lugares de sofrimento, medo e desespero, mas ao mesmo tempo de passagem para a libertação — e hoje quantas pessoas passam pelos mares, pelos desertos para se libertar — são lugares de passagem para a redenção, alcançar a liberdade e o cumprimento das promessas de Deus (cf. Mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, 2024).

Há um Salmo que, dirigindo-se ao Senhor, diz: «Sobre o mar o teu caminho / as tuas veredas sobre as grandes águas» (77, 20). E outro canta assim: «Conduziu o seu povo pelo deserto, / porque o seu amor é eterno» (136, 16). Estas palavras sagradas dizem-nos que, para acompanhar o povo a caminho da liberdade, o próprio Deus atravessa o mar e o deserto; Deus não permanece à distância, não, partilha o drama dos migrantes, Deus está com eles, com os migrantes, sofre com eles, com os migrantes, chora e espera com eles, com os migrantes. Far-nos-á bem pensar hoje: o Senhor está com os nossos migrantes no mare nostrum, o Senhor está com eles, não com aqueles que os rejeitam.

Irmãos e irmãs, todos poderíamos concordar com uma coisa: nesses mares e desertos mortais, os migrantes de hoje não deveriam estar — e infelizmente estão. Mas não é através de leis mais restritivas, não é mediante a militarização das fronteiras, não é através de rejeições que alcançaremos este resultado. Ao contrário, só o conseguiremos ampliando as rotas de entrada seguras e regulares para os migrantes, facilitando o refúgio para quantos fogem das guerras, da violência, da perseguição e de muitas calamidades; só o conseguiremos favorecendo, em todos os sentidos, uma governance global das migrações fundamentada na justiça, na fraternidade e na solidariedade. E unindo forças para combater o tráfico de seres humanos, para impedir os traficantes criminosos que exploram sem piedade a miséria dos outros.

Prezados irmãos e irmãs, pensai em tantas tragédias de migrantes: quantos morrem no Mediterrâneo! Pensai em Lampedusa, em Crotone... quantas coisas horríveis e tristes! E gostaria de concluir reconhecendo e louvando o esforço de tantos bons samaritanos, que fazem o possível para socorrer e salvar os migrantes feridos e abandonados nas rotas da esperança desesperada, nos cinco continentes. Estes homens e mulheres corajosos são sinal de uma humanidade que não se deixa contagiar pela cultura negativa da indiferença e do descarte: o que mata os migrantes é a nossa indiferença, a atitude de descarte. E quem não pode estar como eles “na linha da frente” – penso em tantas pessoas boas que estão na linha da frente, em Mediterranea Saving Humans e em tantas outras associações — não está excluído desta luta de civilização: não podemos estar na linha da frente, mas não estamos excluídos; há muitas formas de oferecer a própria contribuição, sobretudo com a oração. E pergunto-vos: rezais pelos migrantes, por aqueles que vêm para as nossas terras a fim de salvar a vida? E “vós” quereis rejeitá-los.

Caros irmãos e irmãs, unamos os corações e as forças, para que os mares e os desertos não sejam cemitérios, mas espaços onde Deus possa abrir caminhos de liberdade e fraternidade.

No final da audiência, o Pontífice saudou os vários grupos de fíeis presentes e voltou a invocar a paz sobretudo para a Palestina, Israel, Ucrânia, Myanmar e Kivu do Norte. A seguir, a saudação aos fiéis de língua portuguesa.

Saúdo cordialmente os fiéis de língua portuguesa, de modo especial aqueles vindos de Portugal e os peregrinos das Paróquias Cristo Bom Pastor e Nossa Senhora da Paz, de Porto Alegre. Ajudemos de todos os modos possíveis os migrantes de hoje, também com o sustento da nossa oração. Deus vos abençoe!