· Cidade do Vaticano ·

Reflexões litúrgico-pastorais para o domingo XX do tempo comum

Na Palavra carne a narração de Deus

 Na Palavra carne a narração de Deus  POR-033
08 agosto 2024

Neste Domingo xx do Tempo Comum, temos a graça de escutar o texto que compõe a quinta secção (Jo 6, 52-59) [ver Domingo xix ] da quinta Parte (Jo 6, 25-59) do Capítulo 6.º do Quarto Evangelho [ver Domingo xvii ]. Na verdade, o Evangelho deste Domingo xx começa no v. 51 e termina no v. 58, estendendo-se assim por Jo 6, 51-58. Portanto, o v. 51, que abre o Evangelho deste Domingo xx fecha a quarta secção (Jo 6, 41-51), e já foi lido no passado Domingo xix . Mas, no v. 51, Jesus não está a responder à «multidão», como nos faz ler a versão oficial do texto que vai ser proclamado, mas aos «judeus», que entram em cena em João 6, 41. Curiosamente, a versão do Domingo xix está correta!

2. Já tivemos oportunidade de referir que cada uma das secções que compõem a quinta Parte deste Capítulo vi do Quarto Evangelho (Jo 6, 25-59) estão ritmadas segundo o modelo «pergunta-resposta», sendo a pergunta sempre formulada pela «multidão», ou pelos «judeus», e a resposta sempre oferecida por Jesus. A pergunta dos judeus: «Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: “Eu desci do céu?”» (Jo 6, 42), que abria a quarta secção (Jo 6, 41-51), despoletou a resposta de Jesus sobre a sua verdadeira identidade: «Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente» (Jo 6, 51a). Com estas palavras, Jesus retoma e resume o sentido que se deve dar ao sinal da «multiplicação» dos pães (Jo 6, 1-15). Conforme a explicação de Jesus, a que tivemos acesso no Domingo xviii , aqueles pães por Jesus partidos e repartidos não servem só para encher a barriga. São sinais vindos do céu que devem ser vistos e compreendidos por todos (Jo 6, 26-27). E Jesus é esse pão vindo do céu, vida celeste e divina, que nunca se esgota e sobra sempre (Jo 6, 12-13). Até este ponto (v. 51a), no discurso que faz, Jesus revela a sua identidade: «Eu sou o pão vivo descido do céu» (v. 51a). O v. 51b assinala uma rutura no discurso de Jesus. A partir daqui, Jesus passa o seu discurso para o futuro e revela ainda que o pão que dará é afinal a sua carne. Eis este pequeno extrato do discurso de Jesus: «O pão que Eu darei é a minha carne para a vida do mundo» (Jo 6, 51b). Ao assumir agora que o pão que dará é a sua própria carne, Jesus está a dizer que se dará Ele próprio na plenitude da sua existência humana. Estas palavras andam muito próximas das de Paulo em 1 Cor 11, 24. A única verdadeira diferença está em que, no lugar de «corpo» (sôma) (cf. Mt 26, 26; Mc 14, 22; Lc 22,19), o quarto Evangelho emprega o termo «carne» (sárx).

3. A seguir a esta afirmação (v. 51b), tem lugar imediatamente a pergunta que abre a quinta secção (Jo 6, 52-59) e que sai também da boca dos judeus, e que vem na continuidade da resposta dada por Jesus sobretudo na segunda metade do v. 51. A pergunta dos judeus soa assim: «Como pode este dar-nos a sua carne (sárx) a comer?» (Jo 6, 52). Quem está a seguir o texto atentamente ter-se-á apercebido de imediato que a pergunta formulada pelos judeus excede as frases até agora pronunciadas por Jesus, que nunca falou em «dar a sua carne a comer», mas disse simplesmente: «Quem comer deste pão», e «o pão que Eu darei é a minha carne». Mas o certo é que Jesus não só não corrigiu a leitura dos judeus, mas até lhe elevou o tom, dizendo solenemente: «Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós» (Jo 6, 53). E dá mais um passo em frente: «Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna» (Jo 6, 54). E ainda estende diante de nós esta notável fórmula de imanência: «Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em Mim e Eu nele» (Jo 6,56). E ainda: «Aquele que me come viverá por Mim» (Jo 6, 57).

4. Há muita vida nova a esclarecer. Há que notar em primeiro lugar que o verbo «comer» apareça conjugado com «carne» (sárx) (Jo 6, 52.53.54.56), com «pão» (ártos) (Jo 6,51.58) e «comigo» (me) [«o que me come»] (Jo 6, 57). A sequência destes dizeres e o respetivo paralelismo deixam claro que «comer o pão descido do céu» é «comer a carne do Filho do Homem», e que as duas expressões são equivalentes de «comer a pessoa» de Jesus, assinalada pelo pronome pessoal [«me»]. Trata-se, portanto, de comer ou assimilar a identidade de Jesus, o seu modo de viver. Imitação de Jesus. Mas como Jesus diz também que «quem comer a sua carne e beber o seu sangue tem a vida eterna» (Jo 6, 54), então não se trata apenas de extrair lições para esta vida humana terrena passageira, mas de saber também que, desde agora e para sempre, terá em si a vida divina, por graça recebida. Só assim, através desta assimilação ou convivência, a vida verdadeira, a vida eterna, a vida divina, a vida vivente, a vida que não morre, entra em nós e transforma a nossa vida humana, configurando-a com a de Jesus. Uma nova possibilidade entra na história humana. Tudo o que fica para trás, resume-se assim: «No deserto, os vossos pais comeram o maná, e morreram» (Jo 6, 49). Que a vida eterna, que é Jesus, entre em nós e transforme, transfigure e configure a nossa vida à vida de Jesus, fazendo-nos viver em modo de eternidade, eis a perspetiva novíssima que se abre no horizonte humano.

5. Também não podemos deixar passar em branco que à pergunta dos judeus «como pode este dar-nos a sua carne a comer?», Jesus não a tenha corrigido, mas reforçado: «se não comerdes a sua carne e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós» (Jo 6, 53). Jesus acrescenta ao «comer a sua carne» o «beber o seu sangue». O termo «sangue» (haîma) ocorre quatro vezes neste Capítulo sempre acompanhado pelo verbo «beber» (pínô) (vv. 53-56), e só o encontramos mais duas vezes no resto do Evangelho: em 1,13 para indicar a verdadeira geração dos crentes (ou de Jesus), e em 19, 34, quando é aberto o lado do Crucificado. O acrescento ou reforço de Jesus de ao «comer a sua carne» juntar o «beber o seu sangue» leva-nos até à Cruz, até à dádiva da vida de Jesus por amor, e abre diante de nós o desafio imenso de irmos também nós até ao ponto de darmos a nossa vida por amor. Só indo até este ponto se compreende e se vive em profundidade a fórmula de imanência pronunciada por Jesus: «Permanece em Mim e Eu nele». É a melhor e mais realista tradução da nossa comunhão eucarística. Até o verbo «comer» ganha nesta secção particular sabor e realismo. De facto, para dizer «comer», o grego do Novo Testamento usa habitualmente o verbo esthíô. Todavia, em Jo 6, 54.56.57.58, é usado um verbo «comer» muito mais forte, o verbo trôgô [= trincar, mastigar]. De forma significativa, este verbo só é usado nas passagens atrás assinaladas e em João 13,18, no contexto da ceia da Páscoa. (D. António Couto)