· Cidade do Vaticano ·

Reflexões litúrgico-pastorais para o domingo XIX do tempo comum

Contemplar o mistério da encarnação sem murmurar

 Contemplar o mistério da encarnação sem murmurar  POR-033
08 agosto 2024

Continuamos, neste Domingo xix do Tempo Comum, a revisitar o chão textual e a saborear o pão espiritual do grande Evangelho de João 6. Hoje temos a graça de escutar a secção de Jo 6, 41-51. Importa, desde já, lembrar o leitor que esta secção se enquadra na quinta Parte deste grande Capítulo, que se estende pelos versículos 25-59 (ver atrás, Domingo xvii ). Podemos agora mostrar, para efeitos de clareza e melhor compreensão, como se apresenta estruturada esta quinta Parte (Jo 6, 25-59), para nos ocuparmos depois, mais de perto, do texto deste Domingo (Jo 6, 41-51).

2. O corpo textual de Jo 6, 25-59 apresenta-se ritmado pelo esquema «pergunta-resposta». As perguntas saem da boca de uma «multidão» não identificada, ou dos «judeus», a que se seguem as respostas de Jesus. Seguindo este ritmo, o texto de Jo 6, 25-59 mostra-se organizado em cinco secções: Jo 6, 25-29 ( a ), Jo 6, 30-33 ( b ), Jo 6, 34-40 ( c ), Jo 6, 41-51 ( d ) e Jo 6, 52-59 (E).

3. Tendo em conta o esquema apresentado, o texto que nos ocupa neste Domingo forma, portanto, a quarta secção (Jo 6, 41-51) ( d ). O leitor atento começa logo por verificar que «a multidão» (ho óchlos) não identificada que até aqui seguia Jesus (Jo 6, 2.5.22.24) se transforma subitamente, e sem qualquer explicação, em «os judeus» (hoi ioudaîoi) (Jo 6, 41). É visível também que, com esta súbita transformação, cresce a hostilidade e a agressividade contra Jesus, aqui traduzida pela presença do verbo «murmurar» (goggýzô), que lembra o comportamento dos Israelitas no deserto (Ex 15, 24; 16, 2.7-8; 17, 3; Nm 14, 2.27.29.36). A «murmuração» (goggysmós) é uma espécie de rebelião interior, assente na insatisfação, desconfiança, inveja, ciúme e azedume contra as pessoas e contra Deus, neste caso, contra Jesus.

4. E qual é a razão desta «murmuração» dos judeus contra Jesus? Radica no facto de estes judeus conhecerem bem o «histórico» de Jesus, o seu pai e a sua mãe, as suas raízes familiares e humanas bem humildes, e de não poderem conciliar estes dados muito humanos com a sua origem divina (Jo 6, 42-43). Note-se também que a «murmuração» consiste em falar mal de alguém, não diretamente, tu a tu, mas indiretamente, em terceira pessoa: «Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: “Eu desci do céu?”» (Jo 6, 42). Salta à vista que se prendemos o olhar demasiado ao chão, dificilmente conseguimos ver o céu.

5. Os judeus dizem conhecer o pai de Jesus. Mas Jesus responde, apelando ao fim da murmuração: «Não murmureis entre vós» (Jo 6, 43), e apontando o seu verdadeiro Pai, que os judeus não conhecem (ironia joanina): «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (élkô)» (Jo 6, 44). Jesus põe, portanto, fim à murmuração, isto é, ao falar mal de alguém, em terceira pessoa, abrindo um discurso novo, direto, pessoal, tu a tu: «Vir a Mim» subverte completamente o «falar de Mim». Mas este «Vir a Mim» é obra, não dos homens, que não o sabem nem podem fazer por conta própria, mas de Deus: «Todos serão ensinados por Deus» (cf. Is 54, 13), e conclui: «Todo aquele que escutou do Pai, e aprendeu, vem a Mim» (Jo 6, 45). O narrador do iv Evangelho usa também o mal-entendido: os judeus falam do pai de Jesus, José. Mas Jesus fala do seu verdadeiro Pai, Deus. De pai para Pai. Jesus aponta o verdadeiro Pai, o único que nos leva a Jesus, o pão vivo descido do céu, que é a sua «carne», isto é, a sua forma de viver, a sua identidade. Claramente: é só identificando-nos com Jesus e aderindo à sua forma de viver, fazendo nossa a sua vida, que deixamos entrar em nós a vida eterna. Notável interligação: o iv Evangelho já nos tinha ensinado que é Jesus que explica o Pai (Jo 1, 18) e que conduz ao Pai (Jo 14, 6). Nesta passagem, é o Pai que explica Jesus e que conduz a Jesus.

6. Notar-se-á por debaixo do falar de Jesus o teclado do Antigo Testamento. Em dois momentos. Um deles é aquele: «Todos serão ensinados por Deus» (Jo 6, 45), que é uma citação de Is 54, 13. Todavia, a música é diferente: o texto de Isaías é restritivo, pois fala de «todos os teus filhos» (de Jerusalém). Jesus alarga a perspetiva, falando de todos em geral. O outro é aquele: «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (élkô)» (Jo 6, 44), que tem por debaixo Jr 31, 3 [38,3 lxx ], que põe Deus a falar assim: «Com um amor eterno, Eu te amei; por isso te arrastei (mashak tm ; élkô lxx ) com carinho». É demasiado pobre não reparar nisto. É demasiado belo reparar nisto. Há neste amor de Deus por nós uma paixão declarada, força ou coação que o verbo (hebraico e grego) traduz bem. Entenda-se: Deus não desiste de nós, já não pode passar sem nós!

7. Como os judeus cortam laços e cavam fossos, murmurando, também Elias (1 Rs 19, 4-8) se afasta de Deus e do mundo e de si mesmo. Murmurando. De acordo com a murmuração de Elias, Deus não age como devia agir, o mundo está todo pervertido, de pernas para o ar, já não faz sentido continuar a viver. Porque Deus não age como ele quer, porque o mundo não é como ele quer, Elias, desgostoso, desanimado e desmotivado, corre para a morte, que ele vê como a única saída para a sua vida sem Deus e sem sentido. Tudo somado, Elias não é, como confessa, mesmo melhor do que os seus pais (1 Rs 19, 4), os do tempo do Êxodo e da travessia do deserto, e, tal como eles, também murmura, falando mal de Deus, dos outros e do mundo. Mas Deus, o verdadeiro Deus, não fala mal de Elias, mas ama Elias, e vai conduzi-lo ao caminho certo. Não deixa morrer Elias, e vai dar-lhe lições de vida verdadeira. Manda o seu anjo, que lhe toca (como toca em nós um anjo?!), fala-lhe, alimenta-o, e abre-lhe um caminho imenso para uma nova nascente. Deus também não fala mal de nós, mas ama-nos.

8. Na linha do que bem faz hoje o Apóstolo Paulo para nós na Carta aos Efésios 4, 30-5,2: «Nada de azedumes, irritação, cólera, insultos, maledicências, maldade» (Ef 4, 31). Em vez disso, bons (chrêstoí, leitura viva: christoí) uns para com os outros, misericordiosos, perdoadores (Ef 4, 32), «imitadores (mimêtês) de Deus, como filhos amados» (Ef 5, 1). Outra vez: Deus não fala mal de nós, mas ama-nos! E vistas as coisas do nosso lado: «o amor não faz mal ao próximo» (Rm 13, 10).

9. O Salmo 34 põe nos lábios dos pobres a bênção (berakah), que os une a Deus para sempre, e o louvor jubiloso e intenso (tehillah), que é a sua verdadeira razão de viver (vv. 2-3). O pobre enche o olhar de Deus e fica radiante, luminoso (v. 6), sabe que Deus o escuta e o salva, e convida a saborear a bondade de Deus (v. 9), como cantamos hoje repetidamente no refrão: «Saboreai e vede que Bom é o Senhor». Versão grega dos lxx : «Geúsasthe kaì ídete hóti chrêstós ho Kýrios», ou, na pronúncia viva: «Geúsasthe kaì ídete hóti christós ho Kýrios», o que dá lugar a um jogo de palavras (chrêstós/christós) com resultados à vista na tradição patrística, que lê o texto em clave cristológica e eucarística, cujos primeiros resultados se podem ver já na Primeira Carta de S. Pedro: «Como crianças recém-nascidas, desejai o puro leite espiritual, para crescerdes com ele para a salvação, se é que já saboreastes que bom é o Senhor» (hóti chrêstòs ho kýrios) (1 Pe 2, 2-3). Em pronúncia viva: «que Cristo é o Senhor». Sim, vê-se daqui melhor a Bondade e o Amor fiel e comprometido, com Rosto e com Nome. Deus segue sempre o pobre de perto, cerca-o de amor (v. 8), protege até os seus ossos para não serem quebrados (v. 21), tal como é dito do cordeiro pascal, o mais alto símbolo de libertação. No seu Caminho de perfeição, Santa Teresa de Ávila deixa-nos, talvez, um dos mais belos e incisivos discursos sobre a pobreza: «A pobreza é um bem que contém em si todos os bens do mundo; ela confere um império imenso, torna-nos verdadeiramente donos de todos os bens cá de baixo desde o momento em que os faz cair aos pés».

D. António Couto
Bispo de Lamego