· Cidade do Vaticano ·

A leitura para permanecer humano

 La lettura per rimanere umani  QUO-177
08 agosto 2024

A Carta sobre o papel da literatura na formação que o Papa Francisco publicou a 4 de agosto, e dirigiu aos sacerdotes, a «todos os agentes pastorais», mas também a «qualquer cristão» é um texto rico, denso de ideias e conteúdos que merecem ser abordados e desenvolvidos. Segundo o Papa, quem tem um papel educativo deve frequentar a literatura, adquirir o gosto pela leitura. Há uma urgência no tom da carta porque há um problema, entre muitos, pelo qual o Papa Francisco muito se preocupa, que é o da “sensibilidade”.

Vale a pena, hoje, numa primeira leitura, centrarmo-nos sobre isto, que é o tema central do texto papal, um tema ligado à difícil relação entre o homem contemporâneo e o cristianismo, para o qual o problema atual «não é, em primeiro lugar, o de acreditar mais ou acreditar menos nas proposições doutrinais. É antes a incapacidade de tantos de se comoverem perante Deus, perante a sua criação, perante os outros seres humanos. Há, portanto, a tarefa de curar e enriquecer a nossa sensibilidade». E cita dois poetas, grandes e distantes, como T.S. Eliot e J. L. Borges para especificar os termos deste problema que o primeiro define “incapacidade emotiva” e que, à luz do segundo, o Papa indica como “surdez espiritual”. Há um terceiro autor, não mencionado no texto, mas que exprime a mesma urgência com o seu estilo inconfundível, Franz Kafka. Perante este “torpor” do homem de hoje, de facto é necessário ler os livros que, segundo Kafka, «mordem e picam» para receber «feridas largas» que permitam à consciência tornar-se mais sensível. Na sua carta a Oskar Pollak, em novembro de 1903, o romancista de Praga utiliza imagens duras e violentas: «Se o livro que estamos a ler não nos desperta como um punho a bater no crânio, por que o lemos? [...] Um livro deve ser um machado para quebrar o mar de gelo dentro de nós». Esta experiência forte e contundente faz com que os leitores, diz o Papa, se tornem «mais sensíveis à plena humanidade do Senhor Jesus». Esta carta sobre o papel da literatura, publicada a 4 de agosto, um dia depois do 60º aniversário da morte de Flannery O’Connor, que defendia a literatura como a “mais encarnatória” de todas as artes. O ponto crítico é: a evaporação da fé na encarnação. A preocupação de hoje é a mesma que o Papa exprimiu em 2013 na Evangelii Gaudium, que alertava para uma «forma de consumismo espiritual», a outra face de um individualismo doentio, pois «mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro» ( eg 89). Contra o consumismo espiritual desencarnado, o antídoto é a literatura. Em Contos do Anticristo, de 1899, Vladimir Soloviev fazia dizer ao Starec João, o único cristão capaz de resistir às seduções do Anticristo que propunha uma igreja “humanitária”, “bondosa” mas sem Cristo: «O que temos de mais caro no cristianismo é o próprio Cristo, ele mesmo e tudo o que dele provém, pois sabemos que nele habita corporalmente a plenitude da divindade».

Mas de que maneira a leitura de um texto narrativo pode concretizar esta resistência à eliminação do humano e, por conseguinte, do cristão? Citando uma reflexão de C.S. Lewis, o Papa observa que «ao ler um texto literário, somos capazes de “ver com os olhos dos outros”, adquirindo uma amplitude de perspetiva que alarga a nossa humanidade. Isto ativa em nós o poder empático da imaginação, que é veículo fundamental para aquela capacidade de identificação com o ponto de vista, a condição, o sentimento dos outros, sem a qual não há solidariedade, partilha, compaixão, misericórdia. Ao ler, descobrimos que o que sentimos não é só nosso, é universal, e por isso mesmo a pessoa mais abandonada não se sente só».

Treino para a sensibilidade, para a misericórdia, para um discernimento que não conduza a juízos sumários e “estilizados”, a literatura refina e humaniza, antes de mais, o olhar sobre a realidade, sobre o mundo e sobre os homens, demolindo «os ídolos das linguagens autorreferenciais, falsamente autossuficientes, estaticamente convencionais, que por vezes correm o risco de poluir até o nosso discurso eclesial, aprisionando a liberdade da Palavra». Trata-se, mais uma vez, do olhar, da educação do olhar que é o grande benefício da literatura; o Papa conclui: «O olhar da literatura educa o leitor para o descentramento, para o sentido do limite, para a renúncia ao domínio, cognitivo e crítico, da experiência, ensinando-lhe uma pobreza que é fonte de extraordinária riqueza. Ao reconhecer a inutilidade e talvez até a impossibilidade de reduzir o mistério do mundo e do ser humano a uma polaridade antinómica de verdadeiro/falso ou de justo/injusto, o leitor aceita o dever de julgar não como instrumento de domínio, mas como impulso para uma escuta incessante e como disponibilidade para se colocar em jogo nessa extraordinária riqueza da história devida à presença do Espírito, que se dá também como Graça: isto é, como acontecimento imprevisível e incompreensível que não depende da ação humana, mas redefine o ser humano como esperança de salvação».

Andrea Monda