O Papa Francisco em Trieste
Não falte aos leigos católicos italianos a capacidade
Ao “Generali Convention Center” de Trieste — sede da 50ª Semana social dos católicos na Itália — o Papa Francisco chegou na manhã de domingo 7 de julho, para se encontrar com 1.200 delegados provenientes de todo o país para participar nos trabalhos. Após as saudações do cardeal Matteo Maria Zuppi, arcebispo metropolitano de Bolonha e presidente da Conferência episcopal italiana, e de D. Luigi Renna, arcebispo de Catânia e presidente da Comissão organizadora das Semanas sociais, o Pontífice pronunciou o seguinte discurso.
Ilustres Autoridades
Prezados irmãos Bispos
Senhores Cardeais
irmãos e irmãs, bom dia!
Agradeço ao Cardeal Zuppi e a D. Baturi por me terem convidado a compartilhar convosco esta sessão conclusiva. Saúdo D. Renna e o Comité Científico e Organizador das Semanas Sociais. Em nome de todos, expresso gratidão a D. Trevisi pelo acolhimento da Diocese de Trieste.
A primeira vez que ouvi falar de Trieste foi graças ao meu avô, que em 1914 combateu no Piave. Ensinou-nos muitas canções e uma delas era sobre Trieste: «O general Cadorna escreveu à Rainha: “Se quiser ver Trieste, que a veja num postal”». E esta foi a primeira vez que ouvi falar da cidade.
Esta é a 50ª Semana Social. A história das “Semanas” cruza-se com a história da Itália, e isto já diz muito: fala de uma Igreja sensível às transformações sociais da sociedade e propensa a contribuir para o bem comum. Fortalecidos por esta experiência, quisestes aprofundar um tema de grande atualidade: “No coração da democracia. Participar entre história e futuro”.
O Beato Giuseppe Toniolo, que deu vida a esta iniciativa em 1907, afirmava que a democracia pode ser definida como «aquele ordenamento civil em que todas as forças sociais, jurídicas e económicas, na plenitude do seu desenvolvimento hierárquico, cooperam proporcionalmente para o bem comum, reverberando como resultado último predominantemente a favor das classes inferiores».1 Assim dizia Toniolo. À luz desta definição, é evidente que no mundo de hoje a democracia, digamos a verdade, não goza de boa saúde. Isso interessa-nos e preocupa-nos, porque está em jogo o bem do homem, e nada do que é humano nos pode ser alheio.2
Na Itália, o ordenamento democrático amadureceu depois da segunda guerra mundial, graças também à contribuição determinante dos católicos. Pode-se orgulhar desta história, sobre a qual incidiu também a experiência das Semanas Sociais; e, sem mitificar o passado, é preciso tirar lições para assumir a responsabilidade de construir algo de bom no nosso tempo. Esta atitude encontra-se na Nota pastoral com que, em 1988, o Episcopado italiano restabeleceu as Semanas Sociais. Cito as finalidades: «Dar sentido ao esforço de todos para a transformação da sociedade; prestar atenção às pessoas que permanecem fora ou à margem dos processos e dos mecanismos económicos bem-sucedidos; dar espaço à solidariedade social em todas as suas formas; apoiar o retorno de uma ética solícita do bem comum […]; dar significado ao desenvolvimento do país, compreendido […] como melhoramento global da qualidade de vida, da convivência coletiva, da participação democrática, da autêntica liberdade».3 Fim da citação!
Esta visão, arraigada na Doutrina Social da Igreja, abrange algumas dimensões do compromisso cristão e uma leitura evangélica dos fenómenos sociais que não valem somente para o contexto italiano, mas representam uma advertência para toda a sociedade humana e para o caminho de todos os povos. Com efeito, assim como a crise da democracia é transversal a várias realidades e nações, do mesmo modo a atitude de responsabilidade em relação às transformações sociais é um apelo dirigido a todos os cristãos, onde quer que vivam e atuem, em qualquer parte do mundo.
Há uma imagem que resume tudo isso e que escolhestes como símbolo desta edição: o coração. A partir desta imagem, proponho duas reflexões para alimentar o percurso futuro.
Na primeira, podemos imaginar a crise da democracia como um coração ferido. Aquilo que limita a participação está diante dos nossos olhos. Se a corrupção e a ilegalidade mostram um coração “infartado”, devem preocupar também as várias formas de exclusão social. Cada vez que alguém é marginalizado, todo o corpo social sofre. A cultura do descarte traça uma cidade onde não há lugar para os pobres, os nascituros, as pessoas frágeis, os doentes, as crianças, as mulheres, os jovens, os idosos. Esta é a cultura do descarte. O poder torna-se autorreferencial — trata-se de uma doença horrível! — incapaz de escuta e de serviço às pessoas. Aldo Moro recordava que «um Estado não é realmente democrático se não estiver ao serviço do homem, se não tiver como finalidade suprema a dignidade, a liberdade, a autonomia da pessoa humana, se não for respeitoso daquelas formações sociais em que a pessoa humana se realiza livremente e onde integra a própria personalidade».4 A própria palavra “democracia” não coincide simplesmente com o voto do povo. Entretanto, preocupa-me o reduzido número de pessoas que foram votar. O que significa isto? Não é apenas o voto do povo, mas exige que se criem as condições para que todos se possam expressar e participar. E a participação não se pode improvisar: aprende-se a partir da infância, da juventude, e deve ser “treinada”, também ao sentido crítico perante as tentações ideológicas e populistas. Nesta perspetiva, como tive a ocasião de recordar há vários anos, visitando o Parlamento europeu e o Conselho da Europa, é importante fazer emergir «a contribuição que o cristianismo pode oferecer hoje ao desenvolvimento cultural e social europeu no âmbito de uma correta relação entre religião e sociedade»,5 promovendo um diálogo fecundo com a comunidade civil e com as instituições políticas para que, iluminando-nos reciprocamente e libertando-nos das escórias da ideologia, possamos promover uma reflexão comum, de modo especial sobre os temas relacionados com a vida humana e a dignidade da pessoa.
As ideologias são sedutoras. Alguém já as comparava com Hamelin que toca flauta; seduzem, mas fazem-te afogar.
Para tal finalidade, permanecem fecundos os princípios de solidariedade e subsidiariedade. Com efeito, um povo mantém-se unido pelos laços que o constituem, e os laços são reforçados quando cada um é valorizado. Cada pessoa tem um valor; cada pessoa é importante! A democracia exige sempre a passagem do partidarismo para a participação, do “torcer” para o dialogar. «Enquanto o nosso sistema económico-social produzir nem que seja uma só vítima e enquanto houver uma só pessoa descartada, não poderá existir a festa da fraternidade universal. Uma sociedade humana e fraterna é capaz de trabalhar para garantir, de modo eficiente e estável, que todos sejam acompanhados no percurso da sua vida, não apenas para assegurar as suas necessidades básicas, mas para que possam dar o melhor de si próprios, ainda que o seu rendimento não seja o melhor, mesmo que sejam lentos, embora a sua eficiência não seja relevante».6 Todos devem sentir-se parte de um projeto de comunidade; ninguém deve sentir-se inútil. Algumas formas de assistencialismo que não reconhecem a dignidade das pessoas... Reflito sobre a palavra assistencialismo. O assistencialismo, por si só, é inimigo da democracia, inimigo do amor ao próximo. E certas formas de assistencialismo que não reconhecem a dignidade das pessoas são uma hipocrisia social. Não o esqueçamos. E o que está por detrás deste distanciamento da realidade social? Há indiferença, e a indiferença é um tumor da democracia, uma não-participação.
A segunda reflexão é um encorajamento a participar, para que a democracia se assemelhe a um coração curado. Eis: gosto de pensar que na vida social é realmente necessário curar os corações, curar os corações. Um coração curado! E para isto é preciso exercer a criatividade. Se olharmos ao nosso redor, vemos muitos sinais da ação do Espírito Santo na vida das famílias e das comunidades. Até nos campos da economia, da ideologia, da política, da sociedade. Pensemos em quem, numa atividade económica, criou espaço para pessoas com deficiência; nos trabalhadores que renunciaram a um seu direito para impedir que outros fossem despedidos; nas comunidades energéticas renováveis que promovem a ecologia integral, cuidando inclusive das famílias em pobreza energética; nos administradores que favorecem a natalidade, o trabalho, a escola, os serviços educacionais, as casas acessíveis, a mobilidade para todos, a integração dos migrantes. Todas estas coisas não se enquadram numa política sem participação. O coração da política é a participação. E são estas as coisas que a participação faz, um cuidar de tudo; não apenas beneficência, cuidar disto... não: de tudo!
A fraternidade faz florescer as relações sociais; e, por outro lado, cuidar uns dos outros requer a coragem de pensar como povo. É preciso ter coragem para pensar em si próprio como povo, não como eu ou o meu clã, a minha família, os meus amigos. Infelizmente, esta categoria — “povo” — é com frequência mal interpretada e, «poderia levar à eliminação da própria palavra “democracia” (“governo do povo”). Contudo, para afirmar que a sociedade é mais do que a mera soma de indivíduos, é necessário o termo “povo”»,7 que não significa populismo. Não, é algo diferente: o povo! Com efeito, «é muito difícil projetar algo de grande a longo prazo, se não se consegue torná-lo um sonho coletivo».8 Uma democracia com o coração curado continua a cultivar sonhos para o futuro, põe em jogo, chama à participação pessoal e comunitária. Não tenhais medo de sonhar o futuro!
Não nos deixemos enganar por soluções fáceis. Pelo contrário, apaixonemo-nos pelo bem comum. Compete-nos a tarefa de não manipular a palavra democracia nem de a deformar com títulos vazios de conteúdo, capazes de justificar qualquer ação. A democracia não é uma caixa vazia, mas está ligada aos valores da pessoa, da fraternidade e até da ecologia integral.
Como católicos, neste horizonte não podemos contentar-nos com uma fé marginal ou particular. Isso não significa tanto ser ouvido, mas sobretudo ter a coragem de fazer propostas de justiça e de paz no debate público. Temos algo a dizer, mas não para defender privilégios. Não! Devemos ser voz, voz que denuncia e propõe, numa sociedade muitas vezes áfona e onde demasiados não têm voz. Muitos, tantos não têm voz. Tantos! Este é o amor político,9 que não se contenta com a preocupação pelos efeitos, mas procura enfrentar as causas. Trata-se do amor político! É uma forma de caridade que permite à política estar à altura das suas responsabilidades e de sair das polarizações, das polarizações que empobrecem e não ajudam a entender e enfrentar os desafios. A esta caridade política é chamada toda a comunidade cristã, na distinção dos ministérios e dos carismas. Formemo-nos neste amor, para o colocar em circulação num mundo que carece de paixão civil. Devemos retomar a paixão civil dos grandes políticos que conhecemos. Aprendamos sempre mais e melhor a caminhar juntos como povo de Deus, para ser fermento de participação no meio do povo ao qual pertencemos. E isto é algo importante na nossa ação política, e também dos nossos pastores: conhecer o povo, aproximar-se do povo. O político pode ser como o pastor que vai à frente do povo, no meio do povo e atrás do povo. À frente do povo para indicar um pouco o caminho; no meio do povo, para ter o faro do povo; atrás do povo para ajudar quem se atrasa. O político que não tem o faro do povo é um teórico. Falta-lhe o principal.
Giorgio La Pira tinha pensado no protagonismo das cidades, que não têm o poder de fazer guerras, mas que pagam o seu preço mais alto. Assim, imaginava um sistema de “pontes” entre as cidades do mundo para criar ocasiões de unidade e diálogo. A exemplo de La Pira, não falte ao laicado católico italiano esta capacidade de “organizar a esperança”. Eis a vossa tarefa, organizar! Organizar também a paz e os projetos de boa política que podem nascer de baixo. Por que não relançar, apoiar e multiplicar os esforços para uma formação social e política que comece com os jovens? Por que não compartilhar a riqueza do ensinamento social da Igreja? Podemos prever lugares de debate e diálogo, favorecendo sinergias para o bem comum. Se o processo sinodal nos preparou para o discernimento comunitário, que o horizonte do Jubileu nos veja ativos, peregrinos de esperança, para a Itália de amanhã. Como discípulos do Ressuscitado, nunca deixemos de alimentar a confiança, convictos de que o tempo é superior ao espaço. Não nos esqueçamos disto. Muitas vezes pensamos que o trabalho político consiste em ocupar espaços: não! Trata-se de apostar no tempo, de iniciar processos, não de ocupar lugares. O tempo é superior ao espaço, e não nos esqueçamos de que iniciar processos é mais sensato do que ocupar espaços. Recomendo-vos que, na vossa vida social, tenhais a coragem de iniciar processos, sempre. É criatividade e também é a lei da vida. Quando dá à luz um filho, a mulher inicia um processo e acompanha-o. Também nós, na política, devemos fazer o mesmo.
Este é o papel da Igreja: envolver na esperança, pois sem ela administra-se o presente, mas não se constrói o futuro. Sem esperança seríamos administradores, equilibristas do presente, não profetas e construtores do futuro.
Irmãos e irmãs, obrigado pelo vosso compromisso. Abençoo-vos e desejo-vos que sejais artesãos de democracia e testemunhas contagiantes de participação. E peço-vos, por favor, que rezeis por mim, pois este trabalho não é fácil. Obrigado!
1] G. Toniolo, Democrazia cristiana. Concetti e indirizzi, i , Cidade do Vaticano 1949, 29.
2] Cf. Conc. Ecum. Vat. ii , Cost. past. Gaudium et spes, 1.
3] Conferenza Episcopale Italiana, Ripristino e rinnovamento delle Settimane Sociali dei cattolici italiani, 20 novembre 1988, n. 4.
4] A. Moro, Il fine è l’uomo, Edizioni di Comunità, Roma 2018, 25.
5] Discurso ao Conselho da Europa, Estrasburgo, 25 de novembro de 2014.
6] Carta enc. Fratelli tutti, 110.
7] Ibid, 157.
8] Ibid.
9] Ibid., 180-182.