· Cidade do Vaticano ·

Reflexão litúrgico-pastoral Para o domingo XV do tempo comum

Despojar-se para estar
com Ele

 Despojar-se para estar com Ele  POR-028
11 julho 2024

O Evangelho deste Domingo xv do Tempo Comum, que narra o envio em missão dos «Doze» (Marcos 6, 7-13), situa-se estrategicamente entre a rejeição de Jesus na sua pátria (Marcos 6, 1-6) e o martírio de João Batista (Marcos 6, 14-29). O contexto é, pois, claro, intenso e dramático acerca do destino dos Apóstolos, colocados entre a rejeição e o martírio. Mas este destino sai ainda acentuado se tivermos em conta que o martírio de João Batista (Marcos 6, 14-29) está colocado entre o envio em missão dos «Doze» por Jesus (Marcos 6, 7-13) e o seu regresso a Jesus (Marcos 6, 30). Dado o contexto traçado, não é possível evitar o entrelaçamento dos destinos de Jesus, de João Batista e dos Apóstolos. Em todos os casos, a rejeição e o martírio derivam do facto de as pessoas (nós) não acreditarem que a missão (claríssimo no caso de Jesus) provém de Deus!

2. Mas este envio em missão dos Apóstolos, dois a dois, também não pode deixar de ser visto no seguimento de Marcos 3, 13-15, em que, do cimo da montanha, Jesus chama os que quer (fórmula de eleição), deles faz «Doze» (belíssima fórmula de criação), para estarem com Ele (fórmula de aliança e de assistência), e, finalmente, para Ele os enviar (fórmula de missão). Bem se vê que o texto deste Domingo torna operativo este último aspeto (o envio em missão), sem anular, diminuir ou diluir aquele fortíssimo estar com Ele que, em caso algum pode ser retirado. Na verdade, quando regressarem da missão, todos se reúnem à volta de Jesus (Marcos 6, 30), que é assim apresentado como o marco e a referência fundamental da vida deles e da nossa. A vinculação de Jesus ao Pai é total: foi por Ele enviado em missão. A vinculação dos discípulos a Jesus é igualmente total: são por Ele enviados em missão. Com este envio em missão dos seus discípulos, Jesus assume sobre si a autoridade do Pai, e constitui os seus discípulos em apóstolos (apóstolloi), que significa enviados. Nenhum Apóstolo ou enviado o é por conta própria. O Apóstolo ou enviado fica sempre vinculado àquele que o envia. Esta é mesmo a sua principal caraterística. Fidelidade.

3. Quer através dos verbos narrativos, quer dos elocutivos, fica claro que a iniciativa da missão dos «Doze» é de Jesus, que é o verdadeiro Senhor da missão: é Ele que chama para a missão, que envia em missão, que dá autoridade (exousía) para o serviço da missão (Marcos 6, 7-8), que define a leveza do equipamento (Marcos 6, 8-10) e o comportamento a assumir no serviço da missão (Marcos 6, 10-11). Note-se bem aquelas levíssimas recomendações negativas: nada leveis para o caminho, nem pão, nem alforge, nem dinheiro, nem duas túnicas (Marcos 6, 8-9). Não devem levar nada de próprio. Só assim, entenda-se, se podem dedicar totalmente à mensagem de que foram incumbidos. É fácil de verificar, e não se trata de um dado de somenos importância, que estas disposições tornam os «Doze» mais pobres, materialmente falando, do que os destinatários a quem são enviados. Assumidamente, não é o volume e o peso das coisas a medida do mundo dos Apóstolos de Jesus por Ele enviados dois a dois. São feitos à imagem de Jesus, o qual, «sendo rico, se fez pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza». Também por isso, «não tem onde reclinar a cabeça» (Mateus 8, 20).

4. Este despojamento, ou empobrecimento, ou leveza, está na base da credibilidade da mensagem que devem transmitir. Reparemos ainda neste elocutivo: «Quando entrardes numa casa, permanecei nela até partirdes dali» (Marcos 6, 10). Entenda-se: não andeis à procura de melhor! O narrador anota no final que os «Doze» cumpriram as diretivas de Jesus (Marcos 6, 12-13). Bela maneira de testemunhar que o dizer de Jesus tem, sobre os missionários, caráter performativo: na verdade, não tendo nada de próprio para oferecer, devem limitar-se a desempenhar o encargo recebido e a transmitir a mensagem a eles confiada. O uso do verbo anunciar (kêrýssô), que significa transmitir, não a própria opinião, mas ser simplesmente arautos ou mensageiros transparentes do seu Senhor, a Ele completamente vinculados, define os «Doze» como totalmente dependentes na fidelidade a Jesus. E a exiguidade do equipamento é para realçar a absoluta importância da mensagem, e que não se podem ocupar de nenhum outro negócio.

5. Vem, portanto, ao de cima a condição de mensageiros fiéis (kêrykoi), e a importância decisiva da mensagem (kêrygma) que são incumbidos de anunciar (kêrýssô), exigindo dos destinatários a que se dirigem uma verdadeira atitude de acolhimento (déchomai) e de escuta atenta (akoúô). Se tal não acontecer, não devem os Apóstolos ou enviados ou anunciadores fugir como cães escorraçados, mas devem deixar clara a falta de acolhimento e de atenção daqueles a quem se dirigem, acentuando este comportamento fechado e negativo com a dupla atitude de se irem embora dali e de sacudir o pó dos seus pés como testemunho contra eles (Marcos 6, 11), significando este último gesto radical separação, que torna impossível qualquer relação entre anunciadores e destinatários. Quanto à sua pessoa, não deve mover os Apóstolos nenhuma pretensão ou defesa. Já no que se refere à mensagem, devem pôr em destaque todas as exigências. Por isso, devem os anunciadores reclamar a conversão (metánoia) dos destinatários a que se dirigem (Marcos 6, 12).

6. A lição do profeta Amós (7, 12-15), que hoje temos também a graça de escutar, ilustra bem o Evangelho de hoje. Amós era provavelmente um importante criador de gado e agricultor bem sucedido ao serviço do grande rei Ozias (787-736), sem dúvida o maior rei de Judá em termos de visão política e desenvolvimento, grande amante da terra, que em muito desenvolveu a agricultura, como se pode ver na descrição do Cronista (2 Crónicas 26, 10). Amós seria, como diz a maioria dos estudiosos de hoje, um alto funcionário agrícola de Ozias. Mas quando Deus «pegou» nele, também Amós se despiu da riqueza da sua vida regalada e bem sucedida, e foi para o Reino de Israel, do Sul para o Norte, equipado apenas com a mensagem que Deus o incumbiu de anunciar. Amós tinha, portanto, a sua profissão de grande agricultor e criador de gado, que lhe assegurava uma vida tranquila e sem percalços. Mas foi-lhe por Deus dada uma vocação e confiada uma missão. Nesse dia, acaba o profissional, o funcionário, e nasce o profeta. «Profeta» não é uma profissão, uma função ou uma herança. Não passa de pai para filho. É uma vocação e uma missão. E é a Palavra de Deus que, irrompendo sobre ele, marca um final e um começo novo, constituindo-o profeta: «Não era profeta eu, nem filho de profeta eu, mas o Senhor pegou em mim…» (Amós 7, 14-15).

7. Também São Paulo é modelo insigne de quem se sabe amado e escolhido por Deus desde a eternidade, desde antes de antes (Efésios 1, 3-14). Por isso, não resmunga, mas exulta e exalta o único verdadeiro Senhor da sua vida, de quem dá a conhecer os desígnios da sua vontade, para que também nós o possamos servir e amar de coração inteiro.

8. João Batista, Jesus, os «Doze», Amós, Paulo, os missionários. São todos figuras em contra-corrente de uma sociedade rica, insensível, anestesiada, medicada, dormente, indiferente, autossuficiente e autorreferente. Porque sabe que é rica, é que se sente agora em crise! Estranha crise. Os textos de hoje ensinam-nos que a boa e verdadeira crise é desencadeada em nós pela Palavra de Deus. Só, de facto, Deus, Primeiro e Último, pode pôr em crise o segundo e penúltimo. Infelizmente, a crise que por aí anda parte do penúltimo e quer pôr em crise o Último. O americano Edmund Pellegrino, médico e filósofo da medicina, falecido em 2013, já nos tinha advertido seriamente que, no campo da medicina, há excesso de meios e míngua de fins. Mas podemos, sem medo de errar, alargar a análise de Edmund Pellegrino a todas as áreas do saber e da prática da nossa sociedade de hoje, e dizer que vivemos na «noite do mundo», mergulhados numa cultura de excesso de meios e míngua de fins! Mas que falta faz Jesus no nosso mundo!

D. António Couto
Bispo de Lamego