Estamos prontos
O Evangelho deste Domingo xiv do Tempo Comum (Mc 6, 1-6) enlaça no do Domingo passado ( xiii ), pondo Jesus a sair de «lá» (ekeîthen) (Mc 6, 1), isto é, de Cafarnaum, da casa de Jairo (Mc 5, 35-43), onde entrou no Domingo passado, mas a sair de «lá» também no sentido de deixar para trás um período de grande atividade, com Jesus a contar ao povo e a explicar aos seus discípulos várias versões da parábola da semente, que é a Palavra e que é o próprio Jesus (Mc 4, 1-34), a entrar com os seus discípulos na barca e a acalmar a tempestade (Mc 4, 35-41), a curar o endemoninhado (Mc 5, 1-20), a mulher que sofria de uma hemorragia e a retirar do sono da morte a filha de Jairo (Mc 5, 21-43). Jesus sai de «lá», de tudo isto, para se religar à linha temática de Mc 3, 21-22.31-35, quando deixou os seus familiares fora da porta. Agora, é Jesus que se dirige para a sua pátria (pátris) (Mc 6, 1), ao encontro dos seus parentes e conterrâneos, que desde há muito o conhecem, sendo o sábado e a sinagoga o tempo e lugar desse encontro (Mc 6, 2). Nazaré não é mencionada. Note-se também que aqui é Jesus que toma a iniciativa de se dirigir ao encontro do povo, quando em quase todos os episódios anteriores eram sobretudo as pessoas do povo necessitado que se dirigiam ao encontro de Jesus. Esta primeira ida de Jesus à sua pátria fica a marcar também, no Evangelho de Marcos, a última vez que Jesus ensina numa sinagoga (cf. Mc 1, 21.23.29.30; 3, 1; 6, 2); e o sábado apenas será mencionado mais uma vez, precisamente na madrugada da Páscoa, escrevendo então o narrador: «passado o sábado» (Mc 16, 1).
2. E, portanto, tudo neste texto, neste encontro, assume um caráter decisivo. Desde logo a escolha do termo «pátria», que carrega consigo um significado mais intenso e mais amplo do que o mais habitual de «povoação». Com esta forma de dizer, este decisivo encontro com Jesus não fica apenas circunscrito a uma pequena região da Galileia, mas prefigura já o encontro de Jesus com o inteiro Israel, e a mesma rejeição que lhe será movida por este. São mesmo já visíveis desde aqui as resistências ao Evangelho radicadas no nosso coração, e que o Quarto Evangelho porá a claro: «Veio para o que era seu, e os seus não o receberam» (Jo 1, 11). Mas também esta última vez a ensinar na sinagoga, e este sábado que aponta para aquele último «passado o sábado» (Mc 16, 1), devem gravar em nós evocações e apelos decisivos. Tudo o que soa a «último», «última vez», carrega, como sabemos, um particular peso específico.
3. Aventurando-nos um pouco mais dentro do texto, não ficaremos certamente admirados por vermos que estes conterrâneos de Jesus estejam a par das suas humildes e bem conhecidas raízes geográficas e familiares, as quais, segundo a mentalidade antiga, determinam a identidade e a capacidade da pessoa. Notaremos ainda, sem grande espanto, que os conterrâneos de Jesus sabem, em termos civis, muito mais do que o leitor sobre Jesus: dele sabem indicar a família, a profissão, a residência. O que nos deve espantar, isso sim, é que aqueles conterrâneos de Jesus não saibam dizer « de onde » (póthen) lhe vem aquela sabedoria única e aqueles divinos prodígios que realiza. Estabelecendo o paralelismo, quando Jesus entrou a primeira vez em Cafarnaum e deu ordens a um espírito impuro e foi logo por ele obedecido, as pessoas interrogaram-se, abrindo um debate: «O que vem a ser isto?» (Mc 1, 27a), para logo se manifestarem maravilhadas e qualificarem a ação de Jesus como «um novo ensinamento com autoridade» (Mc 1, 22.27b). Ao contrário, os conterrâneos de Jesus não ficam maravilhados, fazem perguntas carregadas de ironia, manifestam-se escandalizados por causa dele, e fecham-se à sua pessoa e à sua missão (Mc 6, 2-3). Vê-se já daqui: lá mais à frente, à vista da Cruz e do sofrimento, serão os discípulos a escandalizar-se de Jesus (Mc 14, 27), e o anjo do anúncio da Ressurreição não deixará de reunir os dois motivos do escândalo: «Jesus de Nazaré, o Crucificado» (Mc 16, 6).
4. É fácil verificar que, ao ouvirem Jesus, os seus conterrâneos se põem primeiro perguntas verdadeiras: «De onde lhe vêm estas coisas? E que sabedoria é esta que lhe foi dada? E os prodígios feitos pelas suas mãos?» (Mc 6, 2), para depois passarem a formular perguntas retóricas e irónicas, de que eles sabem bem as respostas: «Não é este o carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui connosco?» (Mc 6, 3). Tratam-no de forma pouco cortês por uma espécie de «quem julga este que é?» (Mc 6, 2.3), escandalizam-se por causa dele (Mc 6, 3), não querem reconhecer que venha da parte de Deus, assumem para com Ele um comportamento de não disfarçada indiferença: não pretendem matá-lo, como maquinam fariseus e herodianos (Mc 3, 6), mas tão-pouco querem saber da sua missão e da sua mensagem. Face a este «não querer saber» por parte dos seus conterrâneos, Jesus clarifica as águas e faz saber que «um profeta não é desprezado senão na sua pátria, entre os seus parentes e na sua casa» (Mc 6, 4). Com esta forma de dizer, Jesus está a apresentar-se como profeta não recebido, e Marcos põe em evidência, e só ele o faz, que Jesus «não podia» (ouk edýnato) fazer «ali» (ekeî) nenhum milagre (Mc 6, 5), e estava admirado (ethaúmazen) pela «falta de fé» (apistía) daquela gente (Mc 6, 6). A partir da frase do leproso: «Se quiseres, podes curar-me» (Mc 1, 40), fala-se sempre do poder de Jesus (Mc 1, 45; 8, 4; 9, 22; 15, 31). Jesus não perdeu esse poder em Nazaré, mas vê-se que se comporta com as pessoas de modo diferente do que faz com as forças da natureza. A estas impõe o seu poder, mas, no que diz respeito às pessoas, Jesus respeita as suas decisões.
5. Às vezes, por termos os olhos tão embrenhados na terra, nas coisas da terra, não conseguimos ver o céu! E limitamo-nos à ironia: « de onde a este vêm estas coisas?!...» (Mc 6, 2). Veja-se a iluminante cena da cura do cego de nascença (Jo 9). Em diálogo com o cego curado, os fariseus acabam por afirmar acerca de Jesus: «Esse não sabemos de onde (póthen) é» (Jo 9, 29), ao que o cego curado responde, apontando, com evidente ironia, a cegueira deles: «Isso é “espantoso” (tò thaumastón): vós não sabeis de onde (póthen) Ele é; e, no entanto, Ele abriu-me os olhos!» (Jo 9, 30). Que é como quem diz: só não vê quem não quer! Tal como o cego, e fazendo uso da mesma linguagem, também Jesus “estava espantado” (ethaúmazen) com a «falta de fé» (apistía) dos seus conterrâneos (Mc 6, 6). Note-se bem que a falta de fé aqui assinalada não é apenas a negação de Deus. É a rejeição de Jesus em nome de uma errada conceção de Deus. Podemos dizer mesmo: para salvar a honra de Deus! Veja-se bem até onde pode chegar a nossa cegueira! Sim, não é possível, pensam os conterrâneos de Jesus, que um carpinteiro, filho de Maria e membro daquela família, que todos conhecem bem, diga o que diz e faça o que faz! De facto, às vezes, para salvar a honra de Deus, rejeitamos tanta gente boa e humilde!
6. Numa altura em que se continua a falar da “receção” do Concílio Vaticano ii , dado que ainda estamos na esteira da celebração dos 50 anos da sua realização (1962-1965), podemos falar também, com as devidas distâncias, da “receção” de Jesus e do seu Evangelho. O texto diz-nos que os seus conterrâneos não o receberam, não se deixaram atravessar por Ele, pelo Céu que Ele indicava e trazia consigo. Ponte para o próximo Domingo ( xv ), em que ouviremos o episódio que se segue imediatamente ao de hoje (Mc 6, 7-13). Aí, Jesus enviará os seus Doze Apóstolos, dois a dois, despojados de meios ou de equipamento, para salientar bem a importância do Anúncio do Evangelho. Mas a ponte entre os dois textos e respetivos Domingos está em que ouviremos Jesus dizer aos seus Apóstolos: «Qualquer lugar (tópos) que não vos “receba” (déxetai)...» (Mc 6, 11). Os livros dizem que, em Marcos, o verbo «receber» (déchomai) está sempre referido a Jesus. Trata-se sempre de «receber», de «acolher» Jesus. É então também fácil ver qual é o «lugar» que não «recebeu» Jesus. Mas o problema é sempre este: e nós?
D. António Couto
Bispo de Lamego